Música em
Leiria, 30 anos dum grande evento internacional
Tríade
de Vectores interdependentes
Tive o
ensejo de iniciar a minha actividade como presidente da direcção do Orfeão de
Leiria Conservatório de Artes (OLCA) propondo-me realizar na instituição, então
muito limitada em recursos de toda a ordem e práticas (embora prenhe de pessoas
magníficas), e com perfis de intervenção muito marcados pelo tempo, um projecto
que propus e colheu a anuência dos co-directores ao longo dos anos, assente
numa tríade de vectores interdependentes: animação cultural, designadamente
promovendo um grande evento de referência regional; promoção do ensino artístico;
infra-estruturação.
Esta
estratégia de cultura local, aplicada a uma instituição do associativismo, ou
do terceiro
sector numa lógica económica, com modestíssimos recursos humanos, materiais e financeiros,
e que foi bem sucedida, é afinal sobreponível à que o Observatório das
Actividades Culturais (OAC) aponta para o município de Cascais nas conclusões
do estudo feito por encomenda do executivo desta autarquia. Estudo este que,
realizado no período 2000-2004 (cobrindo parte do exercício de duas maiorias
eleitorais autárquicas diferentes (uma entre 1993 e 2001 afecta ao PS e outra
2001-2005 de simpatia PSD/CDS), incidindo num território que, tendo assimetrias
sociais de relevo não deixa por isso de ser um dos mais cosmopolitas e com um
taxa de turismo assaz elevada.
O
sociólogo Artur Santos Silva diz de tais conclusões que, para o OAC, alicerçam
a concepção político cultural do município de Cascais, poderiam ser generalizados
«para o que se chamaria então um programa comum de intervenção autárquica no
Portugal dos anos 2000, em municípios de localização central e intermédia e com
significativos recursos humanos e financeiros.
Mas também
o sociólogo Madureira Pinto, que assessorou a vereação cultural da segunda
cidade do país, o Porto, na definição estratégica e no acompanhamento dos processos
e produtos da sua materialização, enunciou, fundamentado nesta acção, aquilo
que chamou os «três princípios estratégicos de política cultural», conclusão assaz
semelhante à anterior.
Não se
conhecem outros estudos. Portanto, há que ter em conta que, dada a credibilidade
dos investigadores referidos, e o seu pós-modernismo, não apenas a política cultural
duma organização da sociedade civil (o OLCA), lançada vários anos antes destas
das câmaras municipais de Cascais e Porto (estas, obviamente, com recursos),
tinha um enquadramento
sociológico justificado, como o facto de ter um bom resultado no decurso das quase
três décadas após 1983, a perspectiva como caminho a seguir, eventualmente por outras
organizações, mas, seguramente, pelas estruturas autárquicas.
A absorção
pela cultura local da cultura global e a produção de resultados capaz de ter influência
regional e nacional, com repercussões fora do país, pelo OLCA, são
características que se identificam pelo redimensionar da escala dos factos
culturais, que se desnacionalizam e desinstitucionalizam, culturas regionais e
locais a tornarem-se códigos de valor para a satisfação das necessidades e para
a expressão da identidade.
De facto,
o gradiente elevado de desenvolvimento cultural local do projecto OLCA pós 1983, ao
possibilitar a longo prazo desenvolverem-se estratégias para estabelecer redes
de cooperação e intercâmbio que vão para além dos espaços local e nacional, foi
de encontro às mudanças operadas na sociedade contemporânea ao nível da
desterritorialização das relações sociais.
Maria
Fernanda Cidrais, Carlos de Pontes Leça e Miguel Sobral Cid
Conhecera
Madalena Perdigão em Coimbra numa visita ao Conservatório da cidade.Ela
dirigia o Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian. Quando cedo se
aprende que a diplomacia da cultura é absolutamente fundamental (o trajecto como
director do CELUC em Coimbra,
enquanto estudante universitário, fora bem elucidativo), para o seu sucesso
institucional, a responsabilidade não permite que se deixe tal mister perdido
em mãos alheias.
Apresentado
o Programa de Trabalho à direcção do Orfeão de Leiria, a que presidia há poucos
dias, logo em Fevereiro 1983 se contactou aquela prestigiada ex líder da
Gulbenkian que, de pronto, remeteu a entrevista para Maria Fernanda Cidrais
Rodrigues, sua subdirectora. Foram breves momentos de simpatia quase mágica.
Ali ficou delineado o primeiro Grupo de Concertos do que, por sugestão da
directora Antonieta Brito, se chamaria Música em Leiria, e mais tarde, de
Festival Música em Leiria. Fernanda Cidrais foi a directora do Festival até à
sua morte, aquando da 10ª edição.
No
lançamento do certame a edição assentou apenas na cidade de Leiria, a Orquestra Contemporânea
de Lisboa orientada por Jorge Matta, amigo desde Coimbra, foi o must
do evento, que foi inteiramente pago pela Fundação Calouste
Gulbenkian.
Nas
edições seguintes o Festival estendeu-se a outros concelhos limítrofes da Alta Estremadura:
Alcobaça, Batalha, Marinha Grande, Ourém, Pombal e Porto de Mós. Em anos seguintes
foi sedimentando – não fazia sentido levar concertos onde, no resto do ano, não
se fazia mais nada com intenções pedagógicas – fixando-se há alguns anos em
Leiria, Batalha (o Mosteiro, jóia gótica e manuelina, tornou-se por isso num
grande centro de atracção para a música, lá actuaram desde Jordi Savall com o
Hespérion XXI até Vivaldianas ou a Orquestra Filarmonia das Beiras, entre
muitos outros grupos), Marinha Grande e Pombal.
Entre 1992
e 2001 foi Director Artístico Carlos de Pontes Leça e desde então Miguel Sobral
Cid (tanto um como o outro igualmente subdirectores do Serviço de Música da
Fundação Calouste Gulbenkian). Desde 1986 os Presidentes da República Mário
Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva, têm presidido à Comissão de Honra do
evento.
O
conservadorismo dominante na gestão autárquica do concelho de Leiria em 1983 nunca foi
obstáculo, quer a um apoio financeiro mínimo, quer à utilização gratuita do
Teatro Municipal. Se bem que todas as vereações da cultura em Leiria tenham
sido sempre amigas e muito cooperantes com as organizações do OLCA, Joaquim
Marques Confraria no início do
projecto e depois Victor Lourenço, souberam aproveitar a Obra da OLCA como eixo
e inspiração da «política» cultural autárquica, de início insípida como atrás
se refere ao contextualizá-la. E assim o Festival pôde beneficiar de logística
e da possibilidade de incluir regular e crescentemente o Ballet Gulbenkian
(antes um exclusivo da Câmara em actuações esporádicas) no corpo do certame.
Todos os
governos sem excepção e as personalidades mais destacadas do país, da política à
igreja, da cultura à educação, e outras áreas apoiaram expressa e fisicamente
um tal acontecimento.
De início
era necessário ir-se pessoalmente às redacções dos jornais à capital para publicarem
qualquer coisinha. Intelectuais como Francisco Belard, Joaquim Vieira
ou Alexandre
Pomar foram apoios incontornáveis nesse período.
A logística implicava fazer tudo do
princípio em cada rodada. Os meios eram fracos. Uma colaboradora como Gracinda Moniz
estava em todas, quase sem mais apoios profissionais, as recepções em cada
concerto, com jantar e convidados, ou um beberete bem servido (com os artistas,
colaboradores, patrocinadores, forças vivas, convidados especiais),
responsabilidade da directora Antonieta Brito (o
ministro Laborinho Lúcio comparou o seu
bacalhau com natas à Nona de Beethoven e Sequeira Costa
trazia de Lisboa recipiente adequado para levar outra especialidade,
o leite creme), eram elementos centrais no processo de identificação.
As
vereações culturais dignas desse nome só existiam em Leiria e depois na Batalha (agora
também em Pombal e Marinha Grande). Um “responsável pela cultura” dum município
vociferava certa vez, «mas se é um Quinteto com Piano não lhe chamem quinteto».
Um outro, à última hora, quis mudar um recital de violino para o palco da praça
(sem êxito, obviamente!).
As
temáticas
O director
Carlos de Pontes Leça introduziu a ideia de cada festival ser dedicado a um tema
diferente (As vozes dos Instrumentos, A Voz Humana, Música, Água, Mar, Fim de
Século, Bach/Brasil, etc.). Sobral Cid entendeu conceber um enredo simples a
dar coerência à sequência de concertos e representações baléticas, uma Linha
temática, fluida, praticamente uma metáfora. Em 2011 inspirou-o o simbolismo e
a grande riqueza do conceito de ilha, a Ilha de Vénus. «Desde
logo na apropriação de novos espaços para a realização dos espectáculos, também
eles “ilhas” de características peculiares, fortes referenciais da cidade e da
região – o teatro, mas também a praça, as igrejas, o claustro de Santa Maria da
Vitória, o museu, marcas fortes carregadas de individualidade, também ela
evocada na recepção da música que ali se fará. São estes espaços e ambientes
que fundamentam a proposta de Pedro Carneiro e
André Sier (Space untitled),
um espectáculo multimédia criado propositadamente para a ocasião. [É a desterritorialização
e a diversidade pós-modernas omnipresentes]. Mas é sobretudo nos programas dos
concertos, que se transmitem essas mesmas sensações, ora de forma mais ou menos
óbvia, ora subtilmente, conferindo uma identidade singular ao Festival. A ilha enquanto
espaço de isolamento e de preservação é aqui talvez a metáfora mais comum e
percorre transversalmente vários programas: um afastamento que contribuiu para
o desenvolvimento de características peculiares nas tradições e convenções musicais,
potenciando o aparecimento de repertórios, estilos e perspectivas
diferenciadas.
Casos como
os das tradições populares irlandesa e escocesa que Jordi Savall e Andrew
Lawrence King nos revelam, o
fascínio da música veneziana celebrada pelo Divino Sospiro,
os sedutores ritmos e melodias de Astor Piazzolla redescobertos
pelo Opus Ensemble
e a própria peculiaridade de Maria João e Mário Laginha
entre o mundo da
música
improvisada são apenas alguns destes casos. Ilha é também sinónimo de refúgio,
da evasão à agitação quotidiana, muitas vezes associada à noite, mas também ao
tema do amor, terreno ou celeste, transversal a toda a história da Música
(quiçá a toda a história da Humanidade).
Elemento
de transformação, potenciando a transcendência, o recolhimento reflecte-se no cunho
devocional de algumas das mais comoventes páginas da literatura musical sacra, como
as que aqui propõem os agrupamentos do Orfeão de Leiria, mas também no carácter
reservado de alguma da escrita para formações de câmara, esfera de intimidade onde
grande parte das vezes se encontra mais vincada a personalidade dos
compositores, por oposição à sumptuosidade das estruturas sinfónicas (…)»
(Sobral Cid, M. 2011). Eis os tão decantados fluxos culturais que se
importam/exportam numa cidadania local, regional e internacional.
No seu
primeiro festival como director artístico (escrevera notas para programas em várias
edições anteriores e crítica dos concertos na imprensa de Lisboa e Antena 2 da
RDP, Radiodifusão Portuguesa), Miguel Sobral Cid, inspirava-se em A imensurável
Criação: «A programação da presente edição do Festival Música em Leiria tem
como linha temática
orientadora a ideia da ilimitada dimensão da criação. Múltiplas perspectivas de
como pode ser proposto o objecto artístico, neste caso a obra musical, são aqui
apresentadas num convite à reflexão sobre o processo criativo e ao entendimento
mais alargado da criação musical, sem nunca perder de vista o objectivo
primeiro deste evento, a fruição musical propriamente dita. Ao longo de treze
programas diferentes (dezasseis espectáculos), diversas vertentes programáticas
serão reconhecidas, qualquer uma delas identificando-se de alguma forma com a
orientação proposta» (Sobral Cid, M. 2002).
E numa
inspiração eminentemente pós-moderna, com todos os condimentos filosóficos
mas expurgada de exuberâncias, tal a orientação que tipifica esta Obra, exalta
a liberdade
criativa: «Ao associarmos o conceito de liberdade ao processo de criação
musical somos quase de imediato levados a pensar em espontaneidade e,
consequentemente, em improvisação. Na verdade, a improvisação, enquanto
processo em que o músico/intérprete se serve da sua espontaneidade para
elaborar, pelo menos na sua forma final, a obra musical, apresenta-se como o
mais paradigmático caso de liberdade criativa. Neste campo reconhece-se a preponderância
do Jazz, se bem que outras formas musicais, compreendam igualmente, práticas de
improvisação» (Sobral Cid, M. 2002).
Os mundos
da arte são constituídos por uma pluralidade de intervenientes onde se
destacam
dois lugares limite: os criadores que em percursos variáveis mais ou menos
versáteis e intermutáveis, procuram sempre a sua singularidade artística e os
outros que “criam” o criador dentro do campo da criação, como por exemplo os
críticos, os comissários ou os organizadores, os marchands, os programadores. Enfim,
toda uma série de intermediários culturais de quem os criadores dependem para a
visibilidade/viabilidade das suas carreiras e que, na sua função de divulgação,
consagram os artistas como se auto-consagram a si próprios (na singularidade
que também eles detêm enquanto decisores). Nestes protagonistas se centra boa
parte da mediação entre públicos e organizações. Sejam eles os próprios
directores artísticos, sejam associações, empresas ou sujeitos autónomos a
trabalharem formal ou informalmente em rede. Pois no Festival Música em Leiria,
como noutras vertentes da animação proporcionada pelo OLCA, o processo é também
este.
Houve
desde o primeiro instante a convicção de que se pode passar sem os grandes
auditórios se a comunidade alargada dispõe dum tão vasto acervo de espaços
naturais, igrejas, castelos, praças, recantos, etc., uma diversidade
eminentemente pós moderna.
Entretanto
o prestígio do Festival alargou-se, se os grandes nomes do mundo passaram “por
aqui” e querem voltar, as co-produções com instituições prestigiadas como o
Teatro Nacional de São Carlos, a Companhia Nacional de Bailado, o Hot Club de
Lisboa, a Casa da Música, e os acordos muito especiais com a Fundação Calouste
Gulbenkian (exultados aqui na primazia de Leiria na apresentação, por exemplo,
do fabuloso bailado AmarAmália, sobre a vida da diva do fado, Amália
Rodrigues), passaram a ser regra. Também a crítica internacional passou a estar
atenta. E o Festival viu obras de sua encomenda a serem premiadas mundo fora.
Sem
esquecer que, beneficiando do facto de ser um evento que ganhou os concursos do
Ministério da Cultura, tem o apoio das Câmaras Municipais e da Fundação Gulbenkian,
continua a ser eminentemente financiado pelo sector privado e público da
economia.
Ângela
Pereira vê assim esta obra: «O Orfeão de Leiria é música! O Orfeão de Leiria é dança! Tem
contribuído muito para uma divulgação e conhecimento da música e da dança, cuja
expressão mais concreta de actuação se materializa no Festival anual, Música
em Leiria. Levou-nos ao conhecimento dos
compositores de música erudita clássica, contemporânea e jazz. Deu espaço aos
intérpretes e músicos portugueses e proporcionou-nos momentos de prazer musical
e estético único. Jamais me esquecerei do espectáculo AmarAmália
que tocou tanta gente naquela noite maravilhosa. E a
oportunidade que criou ao incluir Leiria na digressão anual do Ballet
Gulbenkian. O Orfeão de Leiria é pertença da nossa
comunidade».
Se Paul Griffiths renomado musicólogo
norte-americano, escrevia no jornal The New York Times em 1997 que o
Festival Música em Leiria, pela sua temática, se encontrava entre os cinco
melhores da Europa, de par com Bergen ou Salzburgo, então está quase tudo dito. Nenhum
momento da história, nenhuma crise, justifica que se menorize o exercício
espiritual e estético. Ao celebrar-se a 30ª edição consecutiva de Música em
Leiria com o preito ao coro fundador, de que são herdeiras todas as estruturas
actuais do OLCA, o Festival situa-se entre as realizações mais antigas do país
em continuidade, sendo o acontecimento musical que mais forasteiros atrai a
toda a região.
Henrique Pinto
Maio 2012
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