Bons e maus momentos
1. A inauguração do edifício sede pelo senhor Presidente da
República Dr. Jorge Sampaio foi o momento que mais me tocou e emocionou nestes
anos. Tive o gosto da presença de três membros do governo e dos três deputados,
membros do governo anterior, exatamente as pessoas que dirimiram o assunto nos
dez anos passados até aí. O edifício estava inteiramente pago mas não acabado.
Levou mais dez anos até essa fase e, já depois, acrescentámos-lhe um outro
piso. Bastantes pessoas não puderam estar presentes na inauguração, as regras
de segurança impostas pela presidência não no-lo permitiram, mas foi o ato
social de maior repercussão até hoje feito na região. Viver com os orfeonistas
os momentos em que cantaram para o papa João Paulo II, em Roma, foi-me
igualmente por demais grato.
Aquando da transição da tutela do Ministério da
Educação para o da Economia, em 2011, no final do governo anterior, ao
contrário do então dito pelos governantes envolvidos, a mesma redundou num
corte inopinado de 25% do contratualizado por concurso e já a decorrer para
pagamento dos professores que ministram o ensino articulado, e não houve
resposta alguma do Estado nos dez meses imediatos. Esta pecha entrou por este
governo dentro. Tivemos de atrasar os salários ou pagar em partes. Um despacho
patético de final de 2011 da então Direção Regional de Coimbra, e inútil
porquanto pela lei apenas tínhamos de informar este órgão, causou-nos
seriíssimos problemas de gestão. O despacho vai para a Secretária de Estado da
Educação que resolve negar-nos o que nem tínhamos de pedir. No resto do país as
Direções Regionais não cometeram tais atropelos, ficou ferido o princípio da
igualdade. A medida que então propusemos, por nos ter sido outorgada autonomia
pedagógica, e que o país imitou, veio depois a ser extensiva ao país pela mão do
próprio ministro Dr. Nuno Crato, medida que, felizmente, impediu a falência das
escolas e conservatórios, privados e associativos, que asseguram 99% do ensino
artístico no país por contratualização (os conservatórios estatais não vão além
de 1% do ramo).
Só dois anos depois o senhor secretário de Estado da Educação, João
Granho, aceitou receber-me para discutir este assunto e pôr fim ao recurso
hierárquico que interpusemos e estava, contra a lei, sem qualquer resposta. Isto
foi conseguido por intermédio dos deputados do distrito pelo PSD, Dr. Pedro
Pimpão, Dra. Laura Esperança e Dr. Paulo Baptista, a quem estou penhoradamente
agradecido. Mas foram muitos meses da mais profunda angústia, que me
torturaram.
Foram 30 anos...
2. Foram fascinantes! Desiluda-se quem pensar que um projeto cultural
com implicações profundas no social se faz em dois dias. Pare e pense quem julgar
que as dificuldades para a cultura são apanágio dos dias que correm. Na verdade
as dificuldades sempre andaram por aí. Apenas foi mudando o tipo. Hoje estamos
em mais uma das muitas encruzilhadas da história. Mas uma autarquia com pessoas
cultas e «vontade política», tem até mais oportunidades soberanas para praticar
uma ação cultural mais intensa e pragmática. É até um ensejo para a sua
afirmação ou mesmo a internacionalização. Com muito pouco fizemos muito.
É francamente
importante promover eventos lúdicos massivos, as pessoas gostam. Mas uma Feira
Medieval, o produto mais banalizado nos verões portugueses, por melhor que
seja, pode ser realizado por uma secretária arguta com uma boa lista de
contatos. Estimular o desenvolvimento cultural é algo bem mais complexo e
demorado, faz parte das políticas culturais, nunca emergirá da mão de
tecnocratas. A cultura sensu lato
saiu sempre por cima em todos os períodos de encruzilhada na história dos
últimos sete séculos. Não vai soçobrar agora. Foi o estímulo constante e
diverso do criar conhecimento dinâmico que tivemos em agenda, dia a dia, em
todos estes anos. Tudo o que hoje se faz culturalmente na região, e é muito,
nas associações ou nas autarquias, bebeu a poção deste nosso estímulo.
O conjunto de vetores que
enformou a nossa política para a cultura (onde se insere a educação), viria
afinal a ser decalcado por vários sociólogos, o modelo coincide com o recomendado
pelo Observatório das Atividades Culturais aquando do período de elaboração dos
planos para a cultura encomendados pelas Câmaras Municipais de Cascais e do
Porto (de maiorias eleitorais diferentes à altura, entre Câmaras e dentro de
cada uma delas), no virar do século. Vinte anos depois de o termos posto em
prática, também o sociólogo Augusto Santos Silva (antigo ministro da Educação e
igualmente da Cultura, que esteve por várias vezes connosco), diria do modelo
ser «a política a seguir para as autarquias de média dimensão em Portugal no
século XXI».
3. Como seria se não tivesse existido?
Os tempos mudaram radicalmente como o país. No entanto, mesmo
tendo a região de Leiria uma tradição musical forte desde o final do século XIX
como é possível que o atraso fosse tão profundo há trinta anos atrás, sem
vereações culturais dignas desse nome, com poucas infraestruturas formais
(mesmo estrados para coro/orquestras, torres de iluminação de cena, ou mastros
de bandeiras, que hoje ainda toda a gente nos pede emprestado), sem alguém que
escrevesse uma linha nos jornais para além do professor Matias Crespo, de João
Guerreiro ou de Francisco Santos?
Vemos hoje que boa parte dos entusiastas pelo
teatro, por exemplo, com exceção do Teato e de Luís Mourão, não tem estado
visível, e ninguém recorda com nitidez alguma corrente específica de encenação
que tenham valorizado. Pois bem, o «Quiné» - uma das pessoas que mais me ajudou
no Orfeão, de par com Maria Antonieta Brito, Moreira de Figueiredo ou José
Ferreira Neto -, que dirigiu o GTOL, Grupo de Teatro que criou no Orfeão, foi
um oásis criativo, autodidata,
ao ter a capacidade de trabalhar tanto o naturalismo ou o neorrealismo como o
teatro político, numa íntima relação com o diferente, qual celebração da suprema
heterogeneidade. É em sentido filosófico um pós-moderno precoce, e o resultado
deste seu labor identifica a sua produção mais tardia no OLCA como eminentemente
pós-moderna ou prefigurando já o pós-modernismo. E será por longo tempo
lembrado por isso.
Pois bem, sem estes apoios tão qualificados talvez não
tivesse logrado vencer os inúmeros bloqueios existentes ou que foram surgindo.
O Orfeão, melhor ou pior, teria continuado o seu importante trabalho de sapa. O
que se fez assentou em objetivos bem definidos que foram inteiramente
cumpridos, com um envolvimento pessoal enorme, é certo, e um carinho muito
grande e transversal da generalidade das pessoas, das empresas e das
instituições que foram aderindo vista a obra. A Obra é singular e ainda hoje
não se lobrigam envolvimentos semelhantes.
4. E daqui a 30 anos?
Respondo
de modo enviesado. Certo dia, enquanto responsável da saúde, disse a um autarca,
a propósito da putativa legalização duma exploração animal, «não posso assinar isso
porque tal não é legal». Pois fique sabendo que o Orfeão não recebe mais um
tostão, foi a resposta que obtive. E não recebeu.
O OLCA fez neste período 20
digressões internacionais e esteve presente na maioria das geminações (e até na
génese de algumas), sem rogar um cêntimo público. Pois há anos que a
representatividade cultural nas geminações não conta com o Orfeão. Espero que
os tempos esfumem, tanto o autoritarismo como o amiguismo, tecnocrata e
inculto, promotores do banal e artificial, inibidores do bem-fazer e da
diversidade.
Fazer cultura, mesmo se aquém da fase organizada da criação
(designação da sociologia), requer pessoas cultas, que produzam cultura sobre a
cultura. O relacionamento internacional pleno será uma das tónicas dos próximos
30 anos, enxerta-se no ideal europeu que verá melhores dias, seguramente. Se
assim for, potenciar o rico acervo artístico, cultural, pedagógico e criativo ao
nível europeu está com certeza ao alcance do OLCA.
5. Paulo Lameiro... e o conflito
Trata-se
dum falso problema. Desconheço qualquer cisão dessa natureza. Obviamente,
Música para Bebés é um produto criado no Orfeão de Leiria, em coautoria, e isso
está documentado pelo próprio professor Paulo Lameiro.
Vivi esse período
criativo, guardamos a documentação alusiva. Nada tem de polémico. E se algum
sururu houve julgo-o fruto, em parte, do desconhecimento e mesmo de algum atrevimento
de certas pessoas ciosas de criarem suspense ou mesmo de colocarem uns contra
outros, como existe por todo o lado. Internacionalizámos esse nosso produto
logo no início, esteve na Suécia e em Inglaterra, e continuamos com ele sob
outras capas. É, além do mais, um «viveiro» de futuros melómanos. É hoje
replicado na Europa e na América Latina por uma miríade de grupos, indo nalguns
casos muito para lá do lúdico e atentando na vertente mais científica da sua
utilidade continuada para o mesmo escol de crianças.
O Estágio Internacional de
Orquestra, o Festival de Música, criações singulares como o Conservatório
Sénior, a política de entrosamento entre os nossos produtos culturais como meio
para a formação musical das crianças antes da idade escolar, etc., todas
igualmente «capital cultural» do OLCA, têm sido iniciativas replicadas não sei
quantas vezes por outrem, nalguns casos pelas mais distintas instituições do
país, e na maior fatia das ocasiões sem que nos digam algo a propósito.
Pois
bem, conquanto que quem replicou isto ou aquilo tenha posto valor cultural ou
educativo acrescentado nos produtos, a réplica só por si nunca mereceu nem
deverá merecer qualquer posição pública nossa em contrário. E é bom para a
cultura se uma produção se torna rentável do ponto de vista financeiro. Mas
outra coisa, que quero julgar apenas como hipótese, seria o pôr-se em causa a
nossa dignidade pessoal e institucional.
6. Os que poderiam ter vindo
Quem
não gostaria de ter nas suas edições grandes nomes do Jazz como Diana Krall ou
o trompetista Dave Douglas, por exemplo, ou ainda a London Symphonia e tantas
outras hipóteses de excelente programação?
Mas nós temos tido do melhor, falo
de todos os melhores grupos de música antiga do mundo, de Maria João Pires,
Artur Pizarro, Jordi Savall (e por duas vezes), de todas as melhores orquestras
e grupos baléticos portugueses…
Importante é não cair em tentações espúrias, manter
a proximidade do empreendedorismo empresarial e de serviços e prosseguir fazendo
entender aos responsáveis das urbes locais a importância de marcas como «Música
em Leiria» e «Estágio Internacional de Orquestra», por exemplo, etc.
7. O senhor que se segue
O
senhor arquiteto Carlos Vitorino, um homem de cultura que eu escolhi para esta
incumbência, é uma boa pessoa, experiente profissionalmente,
como autarca, como
gestor. Manter a sustentabilidade e a autossuficiência da instituição,
implementando ainda os novos programas já antes na calha ou a incluir nela,
para se adaptar aos tempos e conseguir mais clientes, já é um desafio
absorvente e grato de vencer. Mas tenho plena convicção que, com a boa equipa
de que disporá, ele levará o OLCA cada vez mais longe e com a maior
abrangência.
8. Ensino superior artístico em Leiria
Claro
que pode crescer muito mais mas sempre «fazendo o sapato à medida do pé», servindo-me
duma das minhas consignas de trabalho.
Não acredito na asserção dialética da
transformação da quantidade em qualidade mas defendo a melhor política cultural
e educativa em cada instante. O ensino superior da música poderia já estar em
Leiria e por mais razões que noutras regiões de Portugal. Bati-me por isso
desde quando existiam apenas duas escolas superiores até hoje que já são nove.
O IPL poderia ter avançado por aí, inclusive com o nosso apoio, a
empregabilidade destes licenciados continua alta, estamos na região que tem o
segundo maior per capita de músicos
no país. Mas não o fez e sozinhos não o podíamos conseguir. Contudo, nos dias
de hoje aposto mais em que, mantendo a estrutura Conservatório existente, se
concluam as diligências para, em simultâneo, ter uma Escola profissional de
música e dança, mesmo se não comparticipada pelo Estado,
porquanto se enquadra
nas necessidades nacionais e o custo/eficácia é menor para resultados mais
exigentes.
9. E agora José?
Recebo
muitos telefonemas de pessoas que se indignam por não as atender no OLCA a esta
ou àquela hora. Ou seja, sobretudo depois de ter saído dos serviços de saúde
portugueses, e de estar tantas vezes nos média por questões ligadas à sanidade
pública (estava no topo da carreira e podia, se eu quisesse, ter continuado
ainda uns dez anos mais), muita gente identifica-me como se eu fosse alguém
cujo emprego é ser o presidente do Orfeão. Porque apareço amiúde como
presidente na comunicação. Mas estar no OLCA é um hobby, uma ocupação não remunerada, é Servir a comunidade, das
coisas mais importantes na vida.
Portanto, decorrente deste compromisso pessoal há muito assumido, bastante
honrado e superlativamente orgulhoso do que ajudei a construir, feliz por ter
tido a colaboração de pessoas maravilhosas, sem qualquer pena ou
constrangimento, com a consciência tranquila de neste posto bem ter servido a
instituição OLCA, a causa da cultura, a comunidade e o país, terminei as
funções inerentes ao cargo de presidente da direção, depois de ter assegurado
uma transição saudável e promissora.
Mas, para além de continuar a colaborar no OLCA, designadamente no
projeto em comum com o Região de Leiria, O Café das Quintas, vou prosseguir
fazendo o que já faço e aproveitando a riquíssima experiência bem conseguida de
gestão pública e privada.
Darei um pouco mais de atenção aos restantes projetos
culturais, de cidadania e solidários em que estou envolvido, particularmente em
Rotary International. Tenho tido bons resultados no fundraising (lograr fundos) para causas da OMS. Sou conselheiro
mundial dalguns projetos de saúde, o que me apaixona vivamente. Estive agora em
Bruxelas no âmbito dum deles. Faço uma a duas conferências por mês. Tenho um
livro para sair em Outubro e vários deles na cabeça, prontos para passar ao
papel. Sempre gostei de fazer e faço clínica… E para tudo isto é imperioso
continuar estudando…
Henrique Pinto
6 de Agosto de 2013