terça-feira, 2 de março de 2010

EU VIVI

Tenho de vos confessar, foi acanhado e com franca emoção que recebi o convite do Senhor Basílio para estar hoje aqui. Fazer a apresentação da segunda edição do seu livro As Minhas Lembranças é uma distinção muito carinhosa, só admissível à luz da sua amizade, da sua estatura de humanista ímpar e de insigne cidadão.
Em 1994 no prefácio da primeira edição desta obra cujo relançamento revisto a Editora Magno entendeu por bem fazer e a Câmara Municipal teve a presciência de patrocinar – pelo que felicito ambas as instituições –, o professor Arnaldo Cunha enfatizava a grande riqueza de alma do autor referindo-se ao «Basílio, tal como sempre desejou ser tratado», como «uma cadeia que une a memória das últimas gerações leirienses».
Eu nunca consegui habituar-me a tratar com tanta familiaridade e de modo tão informal as pessoas com mais idade e que muito estimo. Tenho pelo Senhor Basílio uma admiração, uma amizade e um respeito enormes – um sentir que é com certeza comum à generalidade dos nossos concidadãos – e é como tal, com o Senhor de permeio, que se ele me não levar a mal continuarei a tratá-lo.
Ousaria dizer que, ao contrário do que se passa entre nós e em grande parte do mundo, em muitas universidades famosas da Europa e da América o Senhor Basílio seria convidado habitual para palestrar e animar seminários, pela sua capacidade imensa de informar e de estimular as gerações seguintes, desde as mais novas.
Tive esse exemplo em casa. Minha filha e as amigas do seu grupo de escola, então jovens adolescentes, ficaram fascinadas e embevecidas quando o entrevistaram para um trabalho académico. Tocou-as sobretudo a sua personalidade, o agrado na convivência, a capacidade imensa de se doar, dando de si tudo quanto pode para sentir os outros felizes, o incomensurável, singular mesmo, capital de referência da cidade e das suas pedras vivas, um repositório sem paralelo de valores humanistas.
É ele próprio que diz «Já ouvi muita gente, já escrevi acerca de modos cordiais, de desesperos, pressupondo coisas que formam um bom sentido, dando-lhe o melhor possível de luz e harmonia».
Os médicos da antiguidade oriental atribuíam à ingestão regular de cálcio com origem nos corais submersos um contributo enorme para a longevidade, facto a que a ciência moderna dá importância crescente.
O Senhor Basílio já viveu muito e muito queremos que viva, porque em grande medida ele é essencial às nossas vidas. Mas, talvez sem ter valorizado o facto, é ele mesmo quem aponta uma presumível causa da sua longevidade, um outro cálcio coralino. Ainda adolescente pediu ao pai que lhe comprasse um livro, após a rendida admiração que lhe tinham merecido as leituras romanescas de Emílio Salgari de mistura com as aventuras de Texas Jack.
Na verdade a qualidade de vida física e intelectual é tanto maior em todas as idades – e sê-lo-á progressivamente em exuberância e visibilidade –, quanto mais valor for atribuído em sentido pleno à vida física e intelectual de cada um, ao ensejo pela descoberta do conhecimento e ao empenho na convivialidade.
Ora o livro As Minhas Lembranças, mais do que a evocação histórica e simbólica do Castelo de Leiria em oito séculos – e não apenas na vigência das oportunidades que fruiu em vivê-lo, praticamente desde menino –, é um manual de relações humanas, um poema à harmonia social e familiar, um guia para a felicidade. E é também de certa maneira um tratado de filosofia política.
Basílio Pereira não precisa arredondar as frases ou ser irónico nem usar palavras doces ou amargas, para enaltecer ou criticar. Para demonstrar o envolvimento apaixonado ou o distanciar pela marcada injustiça, basta-lhe o exemplo desta ou daquela personagem, que não comenta, ou contar uma pequena história sempre com optimismo e sensatez, que ganha foros de metáfora. O mesmo lhe sucede face ao cepticismo ou ao deslumbramento, estados de espírito com os quais é confrontado, quantas vezes simultaneamente.
Há em As Minhas Lembranças, como no agir habitual nos dias que se perseguem de Basílio Pereira, um marcado respeito pelas pessoas que lhe vem do íntimo e jamais do servilismo, que sabemos ser-lhe abjecto. Pode à vontade referir a presença de António Ferro no Castelo de Leiria – um intelectual brilhante mas artífice do salazarismo –, aquando da entrega dos prémios dos Jogos Florais do país em 1948, sem qualquer azedume ou crítica. Basta-lhe o evocar despretensioso duns versos do poema vencedor, « (...) Cada qual é tão feliz/Quanto queira imaginar (...)», duma comovente ingenuidade. E com subtileza lá vai também chamando à atenção dos leitores para o evoluir do papel cultural que o Castelo de Leiria de que foi zelador durante décadas mereceu a espaços na segunda metade do século XX.
Um aceno que passa pelas citações polvilhadas em todo o texto da plêiade de ilustres, reis e chefes de estado, vedetas de Hollywood ou do espectro artístico nacional, investigadores e professores, que admiraram de modo fugaz ou permanente, a vetusta edificação do século XII que identifica o perfil estético e histórico da cidade. E tanto basta para lhe augurar um futuro com aquele desígnio, que acolhe com exaltação mas que ainda está, infelizmente, bem longe da plena assunção.
O Senhor Basílio está entre os eleitos que entendem ser «melhor acender uma vela que maldizer a escuridão». Procurou dizê-lo em muitas circunstâncias, mor das vezes quase mudo ainda que não menos eloquente que as personagens fabulosas de Charlie Chaplin, de que desde moço se tornou um admirador devoto. Foi assim sempre que por irrequieto procurou um emprego mais aprazível e mais condizente com a sua personalidade e quando a mecânica precária duma viatura dos bombeiros – o sangue que lhe alimentou a vida até para além da dor –, fazia jus ao tempo em serviço. Ou quando os êxitos ou as desventuras de desportista de mil facetas tolhiam a voz dos seus companheiros. O motivo que a outros minaria as suas convicções vira pedagogia. Dela nos dá conta, sem esforço ou forma rebuscada. E sentimo-nos intimamente gratos pela lição.
A memória colectiva é como a qualidade de vida. Subjaz ao que é de maior importância para o bem-estar duma comunidade. Entre os muitos protagonistas já desaparecidos que podemos ver no seu desempenho em pinceladas esparsas de óleo sobre tela, que acentuam o desejo veemente de melhor conhecê-las, tive o gosto de privar com alguns e com particular agrado, nestas quase três décadas que levo de afectuosamente adoptado pela cidade de Leiria. Comovo-me ao seguir a pena de Basílio Pereira com as preocupações de Carlos Eugénio, o rigor de Miguel Franco e de Rocha e Silva, a vocação de Armando Capinha, o gosto cosmopolita de Álvaro da Fonseca, ou o encanto pessoal e a arte de Afonso de Sousa. E sinto a mesma emoção na procura delirante de Ernesto Korrodi, que não conheci, como na inteligência e na capacidade de se transfigurar do actor e encenador, o meu amigo Quiné, ao ler esta prosa terna, transbordante de perspicácia e sabedoria.
Para o Senhor Basílio o «seu» Castelo de Leiria, que, com a esposa, tratou como porcelana de Limoges – e por mais tempo o não pôde fazer directamente por via de inimagináveis empecilhos burocráticos –, é a um tempo mais do que tudo e apenas a parte, tão vasta é a diversidade das vivências e daquilo que lhe prendeu a atenção e o gosto.
O associativismo cultural, recreativo e desportivo de Leiria em quase um século, ou desde o Orfeão ao Ateneu, mais recentemente, entre muitas instituições que tracejam o percurso da cidade, incluindo o de meras tertúlias como Os Marqueses, no qual se moveu como peixe na água, tal o somatório de aptidões que é o seu próprio trajecto, sai sobremaneira dignificado nesta obra. O que é tanto mais importante quanto os sociólogos assinalam um perfil individualista dominante no empreendimento típico regional, sendo que, uma evidente supremacia cultural nos países europeus mais desenvolvidos é atribuída ao peso mais ou menos forte do vector associativo.
O que se pode dizer em jeito de remate é que os felizardos que usufruírem o prazer de ler As Minhas Lembranças chamarão ainda mais seus ao Senhor Basílio e o agregado familiar, identificando-se e emocionando-se com eles. O espólio cultural da cidade cresce em substância com este documento ímpar, singelo e vivo, sem academismos nem estilos literários sedimentados. E o Senhor Basílio, como os seus familiares, tem todas as razões para se sentir orgulhoso e feliz. Muito obrigado Senhor Basílio.
Apresentação de As Minhas Lembranças.
Henrique Pinto
Leiria, Dezembro 2003
PS: O Senhor Basílio foi hoje a enterrar aos 96 anos de idade. Todas as pessoas são únicas. O Basílio era absolutamente singular. Sentir-nos-emos sempre animados pelo seu exemplo e pela sua saudade
Henrique Pinto
2 Março 2010
FOTOS: o novo Estádio Municipal Magalhães Pessoa (eu e outros amigos levávamo-lo a ver «a nossa União» e traziamo-lo a casa; Basílio Pereira há poucos anos no Orfeão de Leiria, onde cantou em 1936 e na estrutura actual em 1946; o Castelo de Leiria, onde sucedeu a seu pai como Alcaide; Leiria, praça de automóveis e sede do Turismo; recanto da Praça Rodrigues Lobo e o Quiosque, há muito extinto; Leiria, Casa do Bispo à direita, primweiros anos do século XX;  Leiria, castelo e coreto do Jardim em 1904, dez anos antes de o Senhor Basílio nascer; Mercado, Jardim e coreto, na mesma altura; Leiria, Alto da Senhora da Encarnação; Leiria, Ponte do Bairro dos Anjos, o Bairro do Senhor Basílio; Leiria, o Rio Lis serpenteando pela cidade; o Teatro D. Maria, incompreensivelmente demolido em 1958; Basílio Pereira aos 92 anos, no Café das Quintas do Orfeão de Leiria, para ouvir Mário Soares;Leiria, Mercado de Santana em 1937

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