terça-feira, 10 de maio de 2011

COM OS OLHOS POSTOS NO FUTURO

Celebração dos 65 anos do OLCA

Ao celebrarmos o 65º aniversário da formação do Orfeão de Leiria Conservatório de Artes na forma que vigorou até aos nossos dias, parece-me que o momento não é tanto para fazer balanços mas tanto mais para a evocação e o simbolismo construtivo. Estes balanços foram feitos exaustivamente na última Assembleia Geral, chegarão a todos os associados e, orgulhamo-nos disso, a comunicação social tem sido pródiga em notícias a esse respeito.
Trata-se duma celebração da longevidade e pertinência na acção. Sabendo-se como o associativismo em Portugal é fraco, como por via disso o é um pouco a nossa sociedade civil, esta evocação ganha maior significado. Porquanto, ao invés do contínuo soçobrar ou da navegação à vista em torno de projectos importantes, mas em patamares baixos da qualidade, para lá do culpar os governos e as câmaras pela falta de subsídios, o OL CA – que não vive de subsídios mas da contratualização por serviços feitos à comunidade - é uma das instituições associativas da cultura e do ensino do maior relevo no país.
Assim sendo, julga-se mais importante fazer a ponte entre o passado longínquo e o passado próximo até ao presente porque o futuro dela resulta.
 No espectáculo de hoje entrosam-se o Coro Orfeão de Leiria, herdeiro da tradição criada em 1946, e que, salvo dois momentos de baixa na sua história, de ordem conjuntural e dos quais soube erguer-se, com toda a modernidade resultante duma instituição eminentemente virada para o ensino artístico. Nos componentes e direcção actuais do coro celebremos a dedicação de tantas centenas de homens e mulheres, e de mestres sábios e abnegados, que o têm corporizado com alma e brilho ao longo de quase sete décadas.
Com o Conservatório Sénior, singularidade nossa, há o preenchimento dum vazio da sociedade moderna, a atenção aos anos dourados da vida, com qualidade e rigor científico, na responsabilidade, absolutamente incontornáveis. O seu coral dá conta de tal sucesso.
Alguns dos nossos jovens alunos serão solistas neste concerto como no próprio Coro de Câmara da Escola de Música. Se é por demais agradável apreciar a beleza das vozes emanadas das classes de canto, um sucesso, é significativo o elo de continuidade que nos propusemos estabelecer entre os dois coros aqui presentes, numa complementaridade de bom augúrio.
As quatro coreografias da professora Catarina Moreira – seguramente a coreógrafa portuguesa mais premiada mundo fora – têm elas mesmas um forte sentido do querer ir mais longe e mais fundo na formação e na estética balética. Ela é tão premiada pelos seus trabalhos coreográficos, não tanto pelas produções para qualquer companhia profissional de dança, mas através do que constrói para as performances dos seus alunos em certames no estrangeiro. Professora ao mais alto nível no país mas ainda na nossa Escola de Dança, sempre, onde debutou como aluna ainda menina, ela personifica a modernidade e os propósitos de construir futuro que enforma a finalidade do OLCA, hoje a maior escola artística de Portugal.
Não há a intenção de abarcar hoje todas as áreas artísticas da casa porquanto o excelente videograma do Sérgio Claro dá boa conta disso. Mas a alegria que podeis constatar hoje em momentos tão diversos, a apresentação no hall, no intervalo, do primeiro dos 20 vídeos com que o Jornal Região de Leiria
assinala outros tantos anos da nossa Escola de Música oficial, ou a apresentação da nossa Jazz Band, prenúncio do retomar do ensino do Jazz no OLCA agora em curso, são elementos por demais motivadores da esperança de futuro para todas as gerações que julgamos estar a construir.
E o Dr. Carlos de Pontes Leça, musicólogo, ex director artístico do Festival Música em Leiria, faz esta semana no MIMO a Conferência A Música no Cinema, originalíssima, onde perpassarão Hitchcock, Renais, Fleming,Almodóvar, Spielberg, Bergman e tantos outros mestres.
Bem hajam pois todos os obreiros deste percurso que ousaram por tantos anos ter a mente e os feitos sempre uns passos para lá do presente na atenção ao outro e ao país.
Henrique Pinto
(Concerto do 65º Aniversário no Teatro José Lúcio da Silva, 12 de Maio)
FOTOS: Cartaz do concerto do 65º aniversário do OLCA; Dr. Carlos de Pontes Leça e Artur Pizzarro; Spielberg; Dr. Moreira de Figueiredo e Dr. Manuel Ivo Cruz, ambos recentemente falecidos; O Rapaz e o Burro, Coreografia de Catarina Moreira; Neuza Bettencourt, directora pedagógica da EMOL; Henrique Pinto e as colaboradoras do OLCA Sandrina Antunes, Sofia Rocha e Tereza Margarida

segunda-feira, 9 de maio de 2011

29º FESTIVAL DE MÚSICA APRESENTADO AO PAÍS

Mais de 500 Concertos depois – cerca de 100 com importantes artistas e grupos estrangeiros – celebra-se a efeméride do lançamento do Festival Música em Leiria apresentando em Conferência de Imprensa o programa da sua 29ª edição. Daí as minhas palavras de abertura nesta apresentação. Assim:


Exmos. senhores Presidentes de Câmara e demais autoridades;
Exmos. representantes das entidades patrocinadoras do Festival Música em Leiria, e particularmente o Dr. Pedro Espírito Santo da Cunha, vindo de Lisboa;
Queridos amigos, Dr. Miguel Sobral Cid, distinto Director Artístico, e director Adjunto José Luís Figueira;
Estimados colaboradores, e designadamente os mais envolvidos nesta iniciativa;
Queridos amigos.
O Festival Música em Leiria cujo Programa hoje vos anunciamos, iniciativa do Orfeão de Leiria Conservatório de Artes, entra na 29ª edição consecutiva.
Ao atingir o gradiente de qualidade artística invulgar, que apreciareis, torna-se também no Festival do género mais antigo em continuidade em Portugal. É também o único promovido por uma Associação Cultural e de Ensino.
O Festival Música em Leiria, já distinguido através dos seus artistas e das obras originais, em importantes certames mundiais, é o mais relevante de todos os eventos artísticos na zona centro do país, sendo o único com repercussão nacional significativa e incontroversa.
É porventura também o único cuja agenda é procurada em qualquer parte do país. E de tantas e afastadas urbes nacionais as pessoas reservam lugar e aqui acorrem, porque as propostas artísticas são belas e irrepetíveis!
Graças ao apoio continuado dos nossos mecenas públicos e privados, é possível à instituição Orfeão de Leiria, detentora da maior Escola Artística do país, contrariar a ideia feita mas fora de moda, que tudo o que é bom ou bem feito está nas capitais Lisboa e Porto.
Não temos a expectativa de acorrerem a Leiria, Batalha, Marinha Grande e Pombal, locais dos concertos, melómanos de todas as freguesias do continente e ilhas. Mas que aí estará patente em todas, bem visível, a divulgação do Festival e a reserva de bilhetes, isso está, mercê do contributo de apoiantes do Festival. E não menos importante, o Festival está acessível em boa parte da Comunicação social nacional e, igualmente assaz relevante, está disponível on line para os melómanos do mundo. Um tipo de comunicação de funcionamento comprovado pois, graças a ele, temos em Leiria estudantes de orquestra de todo o planeta a cada mês de Julho.
Seguramente que ninguém imaginaria fazer agora um apelo à ignorância e a senhas incultas invocando a crise financeira do país, muito embora já tenhamos visto pior, porque se investe numa área que é sempre onde se «corta».
Seguramente que a todos toca que se apelamos reiteradamente ao desenvolvimento, mesmo em maré económica pouco estimulante, desenvolvimento é muito mais que mero crescimento (por difícil que este esteja).
Desenvolvimento implica literacia, qualificação, peso artístico e intelectual. Se bem planeado e melhor gerido, como nos ufanamos de conseguir no Orfeão de Leiria, contando com o apoio dos nossos mecenas, mas também com as candidaturas a apoios que estão disponíveis para a sociedade civil, cujos concursos ganhámos, digo, o apoio financeiro mas também em bens e serviços, com pouco se pode fazer muitíssimo.
O apoio da Região de Turismo Leiria Fátima e do Turismo de Portugal é um exemplo qualificado na importância atribuída a Música em Leiria, um evento de Custo/benefício comprovadamente aceitável. Bem haja Dr. David Catarino, bem haja Dr. Luís Patrão. Tanto mais que apoios tais já ocorriam há muito em regiões de Portugal de menor peso específico cultural. E são norma no género mundo fora.
Entendemos apresentar a 29ª edição de Música em Leiria neste nosso edifício, ora em fase de ampliação apenas com recurso ao crédito bancário, porque nos importa que, sem imodéstia, todos possamos apercebermo-nos por um instante que estão aqui nesta casa os jovens e os mestres que ganham prémios mundo fora, que partiram daqui as dezenas de estudantes de música da região nas melhores universidades do mundo. E que o Festival Música em Leiria, que deu o mote para praticamente tudo o que se faz hoje no associativismo e nas autarquias, está também na raiz de toda essa qualidade premiada.
Porque o resto, que o OLCA é estrutura de dimensão e objectivos não comparáveis no universo regional ou nacional, apesar dos mimetismos sobrenadantes, já todos sabíamos com certeza.
Muito obrigado.
Bem hajam.
Henrique Pinto
Maio 2011
FOTOS: Cartaz do 29º Festival Música em Leiria; José Manuel Moreno em Leiria, 2004; Cartaz de Música em Leiria 2010; Drumming, em Leiria, 2004; Henrique Pinto, presidente do Orfeão de Leiria Conservatório de Artes; Grupo Música Antiga de Colónia, em Leiria 2004; Barbara Friedhoff, violeta, e Maria José Falcão e Clélia Vital com As Vivaldianas, Leiria, 2004

domingo, 8 de maio de 2011

MORREU MOREIRA DE FIGUEIREDO

Memórias de Andarilho

O nosso querido amigo Dr. António Lebre Bragança Moreira de Figueiredo já está no limbo da saudade, que, de modo perene, nos irá tocar. A perfeição não é um dom dos homens, contraditórios e erráticos, mesmo se os seres mais perfeitos do universo. Todavia, ganham esse estatuto pleno a partir de momentos de partida, como este, em que a saudade fere.
Amigo do Dr. Moreira de Figueiredo desde que vivo em Leiria há quase quatro décadas, e me acolheu e apoiou como jovem médico interno no velho Hospital D. Manuel de Aguiar, em Leiria, ele que por mais de sessenta anos foi interventor consequente no Orfeão de Leiria para onde me levou, e a que presido, é meu dever enquanto responsável a este nível, dedicar-lhe, e á família querida, algumas das palavras que escrevi em Mombaça, em 2003, com as quais prefaciei o seu livro «Cão Sorna só Rosna».
E passo a citar:
«Há pessoas de quem se fica amigo para sempre, seja qual for a idade, a nossa e a deste género raro de seres humanos que suscitam tal empatia.
Já o poder-se pensar ou dizer deste ou daquele «conheço-o bem», com o sentido do absoluto, leva o seu tempo, às vezes toda uma vida.
Tantos anos depois de eu e a Maria da Graça chegarmos a Leiria onde não conhecíamos vivalma e desde logo sermos aceites pelo casal António e Helena Moreira de Figueiredo como dos seus, e quando julgo que os identifico de olhos vendados na sua singularidade psicológica e nas qualidades relacionais invulgares, estou seguro que para lá dessa estima mútua de grande afecto que sempre existiu, o meu profundo respeito por estes amigos não sofreu a menor alteração.
O expressar da minha admiração poderá tomar-se por pura representação social, enviesada pelo sentimento de proximidade discreta. Mas será de todo possível admitir esse despojamento da emoção depois dos trabalhos científicos e filosóficos dum outro casal singular, António e Maria Damásio, aceite sem controvérsia a linguagem da inteligência emocional, quando se trata de fazer um juízo pessoal, um retrato, um perfil? Estou à vontade e indiferente nas minhas certezas quanto à inviabilidade dessa equidistância asséptica.
Quando hoje à beira dum universo unipolar, o ruído da intolerância, arrogante, se sobrepõe ao imperativo do diálogo, e do respeito pelo Outro, recordo o sentido de abertura que – como quem busca a frescura com o estigma duma marca de fogo – fui admirando neste casal, de quão enganosa intensa dissonância na sua composição.
E no entanto, personalidades assaz diversas, uma inquebrável base comum a assemelhá-los, a cultura caseira das suas infâncias, que, ainda que de pressupostos e convivências bem distintas, lhes terá deixado um indizível lastro de flexibilidade e o terreno fértil para gerarem uma simbiose tão conseguida.
Ele, inteligentíssimo, sólido e firme a um tempo nas decisões de todos os dias, das vidas suas e alheias, da participação na comunidade, e quase menino no temor dos fantasmas em face do seu próprio destino. Cultor diplomado de graciosas e pícaras memórias para gáudio de amigos e súbito quebrar das barreiras defensivas, por mais coralinas, de qualquer desconhecido. A suscitar na esposa um tão irreprimível quanto carinhoso e cúmplice «Ó António, que disparate!». E mil vezes que a si mesmo se tome por ateu não lhe sai do genoma um sentido muito íntimo do sagrado, de inatingível determinismo.
Ela, espírito por demais sagaz, arguta, memória infinda, abelha-mestra e obreira no mesmo corpo frágil, trabalhadora até doer, a zelar pelos filhos mesmo na distância, com sábia e hábil discrição, mãe coragem, determinada, segurando as rédeas da vida, talvez também do amor, numa ambiência social menos agressiva mas quantas vezes só, por força das ausências do marido a cumprir as suas obrigações de médico estomatologista no exército, ora na Ásia ora em África, em Coimbra ou Tomar.
Porque tão marcada complementaridade, qual coincidência dos opostos, é mais do que um grande amor. «A paixão é violenta como o abismo e os seus ardores são setas de fogo», diz-se no Cântico dos Cânticos (VII).
Mas se o autor de Cão Sorna Só Rosna, terceiro dos livros que são um só, o da vida, poema de título irónico ao jeito repentista que lhe é peculiar, do Dr. Moreira de Figueiredo se trata, este percurso palavroso, espiral de carinhosa admiração a evocar o casal, assume inteira justificação no sentir a uma voz, porventura fruto dessa paixão correspondida, que acabei por descobrir com o tempo, «o grande escultor» como lembrava Yourcenar.
Para quem desde a universidade, ou até antes mesmo, talvez a germinar já nos bancos da escola, sempre alimentou tertúlias de convivência perene, sem abdicar do papel principal em todas as representações da vida, nem virando as costas a quem precisa a coberto de qualquer das grandes causas, a escrita saiu-lhe serôdia, como o remate duma agradável conversa, forte como a nota triunfal da música que amou.
Com ele aprendi que se se quer por a bulir ou a fermentar algo de importante nos trilhos da vida devem-se cruzar as acções de todos os instrumentos sociais cujo manejo nos pertence, com imaginação, num potenciar dos efeitos do conjunto, para lograr uma superior abrangência em relacionamentos interpessoais e ganhos económicos nos resultados, do Orfeão aos Rotários, das tertúlias à profissão. Como se, olhando a estrutura molecular e a interacção dos átomos, a essência da matéria transposta para a sociabilização, todos precisássemos de todos.
É esse bálsamo agridoce do julgar bem conhecer o Outro e do melhor saber como as pessoas certas nos envolvimentos possíveis, podem gerar um belo quadro, qual Maio de campos verdes se as sementes foram cuidadas, ou um Van Gogh em Arles acossado na tortuosa e ilimitada procura da cor, que se pode aspirar com volúpia em Cão Sorna Só Rosna.
No fundo quase me poderia servir das palavras que Simone Beauvoir buscou em Dostoievsy para nos apresentar O Sangue dos Outros, «Todos somos responsáveis por tudo perante todos», para dar um testemunho ainda mais elucidativo da sua forma sentida de agir, de pensar, de viver.
Ora quando alguém atinge os anos dourados com a consciência de que logrou tocar os semelhantes transmitindo-lhes tão raros e estultos ensinamentos, tudo ou quase tudo lhe deve ser permitido.
O orgulho, obviamente, a satisfação ou mesmo o narcisismo dum ego por demais sensível, que emergem nos muitos encontros casuais em que pessoas já fugidas da memória lhe dirigem com reverência algo tão singelo como «Senhor doutor, lembra-se de mim, ajudou-me nisto ou naquilo, nesta ou naquela altura, cruzámo-nos aqui ou ali?», são marcas naturais a pontuarem uma vida plena. Que o afectam mais como tónico regenerador que o reconhecimento dos ilustres ou a lembrança dos grandes do mundo que povoam o álbum das memórias de andarilho.
Eu próprio me desvaneço, e repito-lho em todas as ocasiões, quando, correndo o país, tantos são os companheiros, colegas de ofício e outras pessoas, quantas delas até aí desconhecidas para mim, que me evocam a sua postura, a sabedoria e a arte de conviver e a graça e o agrado com que sempre o fez.
Tive a honra de ele me ter apresentado ao Orfeão de Leiria e de nesta casa termos calcorreado o caminho que a alcandorou à condição de paradigma da produção cultural, no país e em boa parte do planeta, e de, com a sua bênção e convite, partilhadas pelo José Neto e pelo Luís Capinha, entrar para este movimento tão fabuloso quanto belo e único, pela paz e pela compreensão entre as nações, o Rotary International, de que fui Governador.
Nunca deixei de sentir em qualquer dos muitos instantes compensadores advindos desta condição, que, ele sim, o Dr. António Moreira de Figueiredo, deveria não ter abjurado tal possibilidade, como o fez.
Porque pessoas com uma noção do mundo como aquela a que chegou, «por tentativa e erro», sem a pretensão de o tornar perfeito, ao invés de muitos supostos donos da verdade, mas apenas co-habitável, sem fricções de violência nem ódios enraizados na dor da miséria ou na petulância da riqueza, com vidas saudáveis e qualificadas mas impregnadas pela inevitável coexistência das naturais virtudes e defeitos dos homens, não são muitas».
Pois bem, é assim que o Dr. Moreira de Figueiredo ficará para sempre nos nossos corações.
Henrique Pinto
(5 de Maio de 2011,Cerimónia fúnebre do Dr. António Lebre Bragança Moreira de Figueiredo)
FOTOS: O Dr. Moreira de Figueiredo e o Dr. Manuel Ivo Cruz na Cerimónia de Lançamento do actual edifício principal do Orfeão de Leiria Conservatório de Artes (OLCA); Moreira de Figueiredo presidindo a uma sessão de aniversário do OLCA