O nosso querido amigo Dr. António Lebre Bragança Moreira de Figueiredo já está no limbo da saudade, que, de modo perene, nos irá tocar. A perfeição não é um dom dos homens, contraditórios e erráticos, mesmo se os seres mais perfeitos do universo. Todavia, ganham esse estatuto pleno a partir de momentos de partida, como este, em que a saudade fere.
Amigo do Dr. Moreira de Figueiredo desde que vivo em Leiria há quase quatro décadas, e me acolheu e apoiou como jovem médico interno no velho Hospital D. Manuel de Aguiar, em Leiria, ele que por mais de sessenta anos foi interventor consequente no Orfeão de Leiria para onde me levou, e a que presido, é meu dever enquanto responsável a este nível, dedicar-lhe, e á família querida, algumas das palavras que escrevi em Mombaça, em 2003, com as quais prefaciei o seu livro «Cão Sorna só Rosna».
E passo a citar:
«Há pessoas de quem se fica amigo para sempre, seja qual for a idade, a nossa e a deste género raro de seres humanos que suscitam tal empatia.
Já o poder-se pensar ou dizer deste ou daquele «conheço-o bem», com o sentido do absoluto, leva o seu tempo, às vezes toda uma vida.
Tantos anos depois de eu e a Maria da Graça chegarmos a Leiria onde não conhecíamos vivalma e desde logo sermos aceites pelo casal António e Helena Moreira de Figueiredo como dos seus, e quando julgo que os identifico de olhos vendados na sua singularidade psicológica e nas qualidades relacionais invulgares, estou seguro que para lá dessa estima mútua de grande afecto que sempre existiu, o meu profundo respeito por estes amigos não sofreu a menor alteração.
O expressar da minha admiração poderá tomar-se por pura representação social, enviesada pelo sentimento de proximidade discreta. Mas será de todo possível admitir esse despojamento da emoção depois dos trabalhos científicos e filosóficos dum outro casal singular, António e Maria Damásio, aceite sem controvérsia a linguagem da inteligência emocional, quando se trata de fazer um juízo pessoal, um retrato, um perfil? Estou à vontade e indiferente nas minhas certezas quanto à inviabilidade dessa equidistância asséptica.
Quando hoje à beira dum universo unipolar, o ruído da intolerância, arrogante, se sobrepõe ao imperativo do diálogo, e do respeito pelo Outro, recordo o sentido de abertura que – como quem busca a frescura com o estigma duma marca de fogo – fui admirando neste casal, de quão enganosa intensa dissonância na sua composição.
E no entanto, personalidades assaz diversas, uma inquebrável base comum a assemelhá-los, a cultura caseira das suas infâncias, que, ainda que de pressupostos e convivências bem distintas, lhes terá deixado um indizível lastro de flexibilidade e o terreno fértil para gerarem uma simbiose tão conseguida.
Ele, inteligentíssimo, sólido e firme a um tempo nas decisões de todos os dias, das vidas suas e alheias, da participação na comunidade, e quase menino no temor dos fantasmas em face do seu próprio destino. Cultor diplomado de graciosas e pícaras memórias para gáudio de amigos e súbito quebrar das barreiras defensivas, por mais coralinas, de qualquer desconhecido. A suscitar na esposa um tão irreprimível quanto carinhoso e cúmplice «Ó António, que disparate!». E mil vezes que a si mesmo se tome por ateu não lhe sai do genoma um sentido muito íntimo do sagrado, de inatingível determinismo.
Ela, espírito por demais sagaz, arguta, memória infinda, abelha-mestra e obreira no mesmo corpo frágil, trabalhadora até doer, a zelar pelos filhos mesmo na distância, com sábia e hábil discrição, mãe coragem, determinada, segurando as rédeas da vida, talvez também do amor, numa ambiência social menos agressiva mas quantas vezes só, por força das ausências do marido a cumprir as suas obrigações de médico estomatologista no exército, ora na Ásia ora em África, em Coimbra ou Tomar.
Porque tão marcada complementaridade, qual coincidência dos opostos, é mais do que um grande amor. «A paixão é violenta como o abismo e os seus ardores são setas de fogo», diz-se no Cântico dos Cânticos (VII).
Mas se o autor de Cão Sorna Só Rosna, terceiro dos livros que são um só, o da vida, poema de título irónico ao jeito repentista que lhe é peculiar, do Dr. Moreira de Figueiredo se trata, este percurso palavroso, espiral de carinhosa admiração a evocar o casal, assume inteira justificação no sentir a uma voz, porventura fruto dessa paixão correspondida, que acabei por descobrir com o tempo, «o grande escultor» como lembrava Yourcenar.
Para quem desde a universidade, ou até antes mesmo, talvez a germinar já nos bancos da escola, sempre alimentou tertúlias de convivência perene, sem abdicar do papel principal em todas as representações da vida, nem virando as costas a quem precisa a coberto de qualquer das grandes causas, a escrita saiu-lhe serôdia, como o remate duma agradável conversa, forte como a nota triunfal da música que amou.
Com ele aprendi que se se quer por a bulir ou a fermentar algo de importante nos trilhos da vida devem-se cruzar as acções de todos os instrumentos sociais cujo manejo nos pertence, com imaginação, num potenciar dos efeitos do conjunto, para lograr uma superior abrangência em relacionamentos interpessoais e ganhos económicos nos resultados, do Orfeão aos Rotários, das tertúlias à profissão. Como se, olhando a estrutura molecular e a interacção dos átomos, a essência da matéria transposta para a sociabilização, todos precisássemos de todos.
É esse bálsamo agridoce do julgar bem conhecer o Outro e do melhor saber como as pessoas certas nos envolvimentos possíveis, podem gerar um belo quadro, qual Maio de campos verdes se as sementes foram cuidadas, ou um Van Gogh em Arles acossado na tortuosa e ilimitada procura da cor, que se pode aspirar com volúpia em Cão Sorna Só Rosna.
No fundo quase me poderia servir das palavras que Simone Beauvoir buscou em Dostoievsy para nos apresentar O Sangue dos Outros, «Todos somos responsáveis por tudo perante todos», para dar um testemunho ainda mais elucidativo da sua forma sentida de agir, de pensar, de viver.
Ora quando alguém atinge os anos dourados com a consciência de que logrou tocar os semelhantes transmitindo-lhes tão raros e estultos ensinamentos, tudo ou quase tudo lhe deve ser permitido.
O orgulho, obviamente, a satisfação ou mesmo o narcisismo dum ego por demais sensível, que emergem nos muitos encontros casuais em que pessoas já fugidas da memória lhe dirigem com reverência algo tão singelo como «Senhor doutor, lembra-se de mim, ajudou-me nisto ou naquilo, nesta ou naquela altura, cruzámo-nos aqui ou ali?», são marcas naturais a pontuarem uma vida plena. Que o afectam mais como tónico regenerador que o reconhecimento dos ilustres ou a lembrança dos grandes do mundo que povoam o álbum das memórias de andarilho.
Eu próprio me desvaneço, e repito-lho em todas as ocasiões, quando, correndo o país, tantos são os companheiros, colegas de ofício e outras pessoas, quantas delas até aí desconhecidas para mim, que me evocam a sua postura, a sabedoria e a arte de conviver e a graça e o agrado com que sempre o fez.
Tive a honra de ele me ter apresentado ao Orfeão de Leiria e de nesta casa termos calcorreado o caminho que a alcandorou à condição de paradigma da produção cultural, no país e em boa parte do planeta, e de, com a sua bênção e convite, partilhadas pelo José Neto e pelo Luís Capinha, entrar para este movimento tão fabuloso quanto belo e único, pela paz e pela compreensão entre as nações, o Rotary International, de que fui Governador.
Nunca deixei de sentir em qualquer dos muitos instantes compensadores advindos desta condição, que, ele sim, o Dr. António Moreira de Figueiredo, deveria não ter abjurado tal possibilidade, como o fez.
Porque pessoas com uma noção do mundo como aquela a que chegou, «por tentativa e erro», sem a pretensão de o tornar perfeito, ao invés de muitos supostos donos da verdade, mas apenas co-habitável, sem fricções de violência nem ódios enraizados na dor da miséria ou na petulância da riqueza, com vidas saudáveis e qualificadas mas impregnadas pela inevitável coexistência das naturais virtudes e defeitos dos homens, não são muitas».
Pois bem, é assim que o Dr. Moreira de Figueiredo ficará para sempre nos nossos corações.
Henrique Pinto
(5 de Maio de 2011,Cerimónia fúnebre do Dr. António Lebre Bragança Moreira de Figueiredo)
FOTOS: O Dr. Moreira de Figueiredo e o Dr. Manuel Ivo Cruz na Cerimónia de Lançamento do actual edifício principal do Orfeão de Leiria Conservatório de Artes (OLCA); Moreira de Figueiredo presidindo a uma sessão de aniversário do OLCA
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