segunda-feira, 24 de setembro de 2012

SOBREVIVER ACIMA DO ZERO, Henrique Pinto em entrevista ao Diário de Leiria

1 - O Orfeão de Leiria é uma instituição com uma forte reputação na região no que respeita ao ensino da música. A quem se deve esse trabalho?

O Orfeão de Leiria (OLCA) caminha para os 70 anos de idade. É uma longa e profícua experiência. Desde sempre o seu Coro foi um indicador de qualidade. Nos anos 50 a BBC de Londres identificava-o como estando entre os cinco melhores da Europa. Em Janeiro de 1983 tomei posse como presidente da casa com a proposta que apresentei na primeira reunião de direcção, uma estratégia assente na infra-estruturação, no ensino artístico e na realização dum grande evento cultural anual de referência, para servir de farol. Tudo foi conseguido com o nosso esforço. Nada nos foi dado a não ser a adesão das famílias e a consideração social e institucional e dos associados em geral. E uma multiplicidade de grupos artísticos que entretanto se foram criando no Orfeão, aliada à constante aposta na qualidade em todas as frentes, na profissionalização, numa gestão cuidada e com objectivos claros (coisa que se não viu em muitas autarquias, mormente em Leiria, por exemplo), e no rigor, com mestres de superior valia e dedicação aos seus alunos e a quem lhes paga, sem tergiversações, sem palhaçadas nem mentira como se vê por aí, com capacidade de correr riscos e tendência para não criar dívidas, todos estes factores, juntos, moldaram uma interacção muito produtiva no Ensino. Tudo o que existe nas escolas e fora delas, como os festivais e os concertos, se articula para lograr este ensino de alto nível. Aliás, tanto na Música como na Dança o OLCA é tido pelas entidades tutelares como uma excepção nacional de grande qualidade no Ensino. Alguns dos seus mestres, como Catarina Moreira, estão entre os portugueses mais distinguidos pelo mundo fora. Muitos destes professores, todos licenciados, são Mestres e Doutores, outros tantos são antigos alunos da casa. E é por termos este ambiente pedagógico e institucional único, que, mantendo o princípio da universalidade no acesso quanto aos alunos, vamos também apostar seriamente numa diferenciação positiva do ensino, com incentivos aliciantes – o estatuto de autonomia pedagógica que nos foi outorgado em todas as vertentes formativas permite-nos fazê-lo –, tendente a sensibilizar ainda mais um segmento de público com possibilidades de pagar essa benesse, sobretudo quando não se deseja, à partida, o enveredar por uma carreira artística, mas uma aprendizagem mais diletante. Temos a alternativa de qualidade também para este nicho de clientes.
2 - A instituição já viveu melhores dias em termos de apoios. Estes apoios têm vindo a diminuir nos últimos anos? Qual a principal razão para essa diminuição?

O financiamento mor do OLCA (para além duma gama imensa de fontes de menor dimensão) depende das contratualizações feitas com o Estado e com as autarquias e institutos públicos. Não se trata de subsídios. São contractos de prestação de serviços. Um Contracto é suposto se para se cumprir, dita-o a ética e a lei. Todavia, a meio do ano lectivo 2010-11 o Ministério da Educação (ME) da Dra. Isabel Alçada, numa manobra de desorçamentação ensaiada pelo governo para o Orçamento de Estado aprovado em 2010, fez, em Janeiro de 2011, transitar o financiamento de boa parte do ensino, e designadamente o artístico, para o Ministério do Trabalho (hoje da Economia), que gere os fundos europeus (POPH). Os secretários de Estado da Educação e do Emprego garantiram na altura que nenhuma entidade contratualizada seria prejudicada com a transição. Pura Mentira, o diferencial entre o que era e o que então passou a vigorar, passou a ser de 25% menos. Foi um corte de financiamento em 25% para as organizações que tinham o seu pessoal contratado. O OLCA tinha à altura um Quadro de Pessoal com Contrato Colectivo de Trabalho muito pesado, imposição da DREC, Direcção Regional do Centro do ME (nenhuma outra Direcção Regional o fazia, parece incrível é verdade!), numa percentagem de 90% dos seus recursos humanos. Ora, quem paga 14 meses de ordenado/ano na instituição tida como a maior Escola Artística privada/associativa do país, como o OLCA, foi colocado na mesma posição das casas que só pagam 12 ou mesmo 10 meses/ ano aos seus colaboradores e não têm responsabilidades fiscais. Foi uma injustiça muito grande coberta por um silêncio a todos os níveis ainda maior, e que durou até agora. Longo período em que batemos a todas as portas em dois governos. Para uma direcção não remunerada é obra!

Julgo que em trinta anos no Orfeão de Leiria apoios foi o que as pessoas de boa vontade a todos os níveis, na região e no país, nos deram com o seu empenho, carinho e interesse artístico. A este esquema soma-se, seguramente, a inestimável colaboração da Fundação Calouste Gulbenkian com o Orfeão e com Leiria – e o seu patrono, Gulbenkian, nem sequer tem uma rua com o seu nome nesta cidade, quase uma excepção nacional –, bem como o apoio financeiro do sector empresarial para a realização de eventos, como os Festivais, apoio este que tem valores pecuniários superiores em Leiria em relação ao que se passa no resto do país. O que é um dado muito favorável para o crédito da prática do OLCA. Também a Área Metropolitana de Leiria tem apoiado o Estágio Internacional de Orquestra, mas o valor pecuniário tem vindo a diminuir. De resto, firmámos com o executivo anterior da Câmara de Leiria um Contrato Programa, um exemplo para o país, e neste ano em curso temos um Protocolo com o actual executivo, que muito me agrada pela forma e conteúdo, mas cuja continuidade parece ensombrada. O caracter discricionário do novo Regulamento autárquico, saído enquanto estive fora, suscita-me a maior apreensão. Num e noutro caso o financiamento do Orfeão dependia e depende do volume de trabalho contratualizado e feito.

Por isso mesmo nunca usei a linguagem de apoios ou subsídios. Não é a nossa prática.
 
3 - A gestão da instituição tem sido feita em função dos apoios e do pagamento das mensalidades dos alunos. É possível fazer mais com menos dinheiro?

Até ao fim do mês de Setembro em curso o OLCA terá todos os ordenados em dia e metade do 13º e 14º mês deste ano já pagos. E no entanto a injustiça do ME, que, por omissão, nos extorquiu mais de cem mil euros em ano e meio, os cortes em 38% no que nos era devido por parte da Secretaria de Estado da Cultura (igual para o país), a redução de montantes no Protocolo com a autarquia leiriense e tantos outros cortes contratuais, produziram efeitos. Além disso uma escola secundária de Leiria desinteressou-se do Ensino Profissional da Música que vínhamos ministrando, mesmo se esta é uma profissão com emprego garantido nos tempos actuais. Coisa que não é de somenos. Foram dois cursos que desapareceram. E, como a economia se faz de expectativas, houve menos inscrições neste ano lectivo que começa (sobretudo nos alunos que apenas pagavam o transporte em autocarro do OLCA, um custo baixíssimo), pelo que passou a haver menos trabalho. Sendo o Estado o maior cliente e pagando, em média, o correspondente a um terço do devido em cada trimestre, não se consegue pagar ordenados exactamente no fim de cada mês como até há um ano atrás. Tivemos de implementar uma política de maior contenção, eliminar os contractos a termo certo, negociar alguns despedimentos. E sectores como o Coro do Orfeão sofreram uma remodelação no seu Estatuto, passando os seus membros a contribuir com uma propina para a sua frequência. Preferimos esta solução, facilitadora da manutenção dum nível de qualidade alto – porque a cultura não se reproduz pela vulgaridade -, a recorrermos ao amadorismo puro. Temos já perspectivas para um amplo sucesso coral. Portanto, é óbvio que com pouco se pode fazer muito. Mas há limites para o possível. As políticas culturais liberais, tanto do governo da Nação como das autarquias (o novo regulamento para a cultura da Câmara de Leiria, propiciador da arbitrariedade mais elementar e sem quaisquer objectivos para o desenvolvimento cultural, é prova disso), conduzem a um retorno às piores fases do passado, praticamente ao Estado Novo. Nem mesmo um liberal acreditará que o país possa ser culto com os custos para os cidadãos que têm ingleses ou alemães. Já para nem falar no fosso em iliteracia que nos separa desses povos. Com outros argumentos, é certo, é o debate mais geral entre o tocar no fundo, inanimado, e o viver pobre mas com alma.
 
4 - A instituição que lidera debate-se com problemas financeiros, à semelhança do que sucede com outras da região? Como pretende ultrapassá-los?

Tivemos uma grande vitória nos últimos dias. Como se a conjuntura não fosse já desfavorável para tudo e todos, eis que a DREC do ME (sempre privilegiámos o óptimo relacionamento com todos os poderes, a cultura não pode dar-se ao luxo de o não fazer, e o relacionamento anterior com esta estrutura, com outra gente independentemente da cor do governo, foi mesmo fantástico) resolve inviabilizar uma das medidas que adoptámos e comunicámos - que temos plena competência para implementar e que havia sido discutida por nós como possível com o próprio POPH ao mais alto nível -, para anular os efeitos deletérios da baixa em 25% do valor da contratualização com o ME. Parece ironia, alguém que não paga e ainda sufoca quem quer viver mesmo sem o pagamento devido. Ao fim de ano e meio de insistência junto do senhor ministro Nuno Crato e sobre todas as estruturas do ME, do governo, das associações, entre outras, demonstrando a ilegalidade da decisão de Coimbra (as escolas de outras regiões do país que se inspiraram na proposta do Orfeão, que aqui vieram beber a fórmula salvadora, não tiveram qualquer problema), eis que, depois de recurso do OLCA feito por um dos maiores escritórios de advogados do país, e da intervenção da AEPP, associação de escolas, o senhor ministro acaba por nos dar razão, e mais, estender a medida a todas as escolas do país (que já não é a primeira vez que ganham com as diligências do Orfeão). Foi um sufoco enorme gerir e pugnar a este nível, embora certos que nos assistia a razão. O resultante vai-nos permitir pagar todos os ordenados do ano lectivo com base nos alunos do ensino gratuito ou parcial (cujo ensino o Estado paga), assim como nos dos cursos livres, bem como no fornecimento de serviços. Tal implica mesmo assim um esforço muito grande de todos os trabalhadores, o que é inestimável.
5 - Em termos práticos, que reflexos tiveram na gestão da instituição os cortes anunciados pelo Governo?

Esta era a altura para as autarquias se afirmarem no país, definitivamente, com base na cultura e em articulação com os seus produtores culturais, como paulatinamente se vem fazendo desde os anos noventa. Elevar o nível cultural do país é tão importante como mantê-lo saudável. Mas o exemplo da vereação cultural de Leiria não augura uma tal perspectiva, esta vereação da cultura e educação é tão socialmente inculta e neoliberal (mesmo se socialista) como o ministro Victor Gaspar.

Os cortes anunciados pelo governo acentuarão ainda mais a descrença dos cidadãos, reinstala-se a ideia de que a cultura é um luxo e não uma ferramenta de trabalho, sobretudo se não houver um contrapeso importante, que poderia ser o trabalho cultural das autarquias. O desafio que lanço daqui a quem pode escolher os candidatos a eleitos no próximo ano é que acautelem decididamente essa escolha no que concerne a todas as áreas, mas particularmente à da cultura.
6 - A redução do número de professores encaixa no cenário da contenção e dos cortes?

Não, não há qualquer relação directa com os cortes ora anunciados pelo governo. Mas, para além da contenção salarial que nos propusemos fazer, incluindo a redução legal do contingente de trabalhadores (docentes e não docentes) e das outras medidas atrás expostas, não podendo fazer em 2012-13 os 327 espectáculos únicos de 2011-12, coisa extraordinária para qualquer instituição, vamos fazer algo inovador na programação, torna-la mais criativa, interactiva e construída na complementaridade, e apresentar ainda um amplo leque de produtos lúdicos no campo da cultura, pagos pelos utilizadores, enquadráveis num padrão de gosto/custos aceitável.
7 - Poderá haver perda de qualidade do ensino, se continuarem a verificarem-se cortes e uma progressiva diminuição de docentes?

Como disse, os cortes são susceptíveis de influenciar as expectativas dos consumidores, que poderão passar a privar-se do que até agora consideravam uma alternativa de formação para os seus filhos. Viu-se que neste ano a baixa na taxa de consumo em geral foi acentuada no país. Não haverá razões para isso na frequência do OLCA na medida em que há mais vagas no Ensino Articulado. Todavia, o Orfeão de Leiria tem agora os professores que necessita, e com a qualidade a que faz jus, para continuar sendo das maiores e melhores escolas artísticas do país.
8 - No limite poderá estar em causa o funcionamento do Orfeão ou encara o futuro com optimismo?

Se o senhor Ministro da Educação não tivesse agora reconhecido a razão que nos assiste o drama seria inevitável. Quando criada, a EMOL, escola de música do OLCA, foi a terceira ou quarta no país. Hoje existem 122 escolas com idêntica finalidade. Mas quanto mais antiga é a Escola mais pesada é a estrutura de recursos humanos, maior a carga salarial e fiscal, como vimos atrás. Como sabeis, ao contrário doutras práticas comerciais, o Estado só paga o que deve se os impostos do credor estiverem em dia. Uma estrutura de recursos humanos assente num Contrato Colectivo de Trabalho implica uma enorme carga fiscal que é assim paga à cabeça, antes de se receber o pagamento pelo trabalho. As escolinhas que por aí pululam não têm destes encargos. No entanto, custe o que custar a quem eventualmente denigra o nosso trabalho de criação e gestão, o OLCA, com toda a sua complexidade, é uma escola em boa gestão. Já passámos momentos muito difíceis como o mais recente (em empresas muitas e no associativismo em geral corresponderia à falência ou à debandada geral), mas a boa gestão, qualificada, digo-o sem rebuço algum, aliada a uma diplomacia exaustiva, a diplomacia da cultura assente no bom uso da informação, interna e externa, e no empenhamento assertivo de todos e particularmente dos órgãos de gestão actuais, reforça-nos o optimismo, a certeza que, com as mudanças necessárias e pés bem assentes na terra (o exemplo das do Coro principal é relevante), o OLCA viverá por longas eras. Quaisquer que venham a ser os seus dirigentes no futuro.
9 - Sente que os leirienses olham para a instituição como uma referência ou apenas como uma mera escola de música?

Em 63 anos de idade tenho 45 anos de trabalho no associativismo, incluindo o amador e o universitário. Abordei múltiplos processos de gestão, experimentei muitas fórmulas na busca dos melhores modelos de direcção e gestão, fui director mundial de áreas e projectos no campo social, fui consultor mundial em projectos muito sensíveis, fiz carreira académica em vários países e conjunturas. Construímos no OLCA imensas estruturas artísticas, dezenas delas mesmo, criámos com o Ministério da Cultura a Orquestra Filarmonia das Beiras, temos três festivais internacionais, dos quais, Música em Leiria, é já o mais antigo e persistente dos Festivais Nacionais (se dependesse do Estado, ou da autarquia, já se teria perdido!), ensinámos milhares de alunos ao longo dos anos, temos mais de três dezenas deles em universidades estrangeiras, cerca de cinco dezenas de crianças com menos posses estudam aqui sem pagar (em áreas que o Estado não cobre). As empresas que nos apoiam e se reconhecem nesta obra fazem-no também porque têm os seus indicadores de retorno do investimento cultural feito. Nós também temos alguns desses indicadores de retorno. Podemos dizer que neste momento o OLCA toca, directamente, cerca de 20000 pessoas. Fazemos um investimento à medida das nossas posses mas, bem assessorados, com muito bons resultados no processo de informação e comunicação de massas. Somos a Associação da região com mais associados, a merecerem crescentemente, uma atenção maior. Se depois disto os leirienses olhassem para o OLCA, não como uma referência, que efectivamente é, mas como mais uma escola de música, então talvez não tivesse valido a pena vivermos. Ora eu estou muitíssimo orgulhoso daquilo que ajudei a construir e do impacto que com tal já se conseguiu. A transformação do social faz-se pela cultura, compete a todos, sendo um processo longo e de persistência.
10 - A direcção está a trabalhar em algum projecto específico para manter a sustentabilidade da instituição, mantendo a qualidade do ensino?

Como já disse, a alteração de paradigma no Coro da instituição, uma decisão que assiste à direcção e só a esta, é uma medida de fundo (só por si insuficiente, é certo) para manter sustentáveis todos os sectores da casa. Mas vamos tornar todas as áreas sustentáveis, mesmo se com equilíbrios internos. Não queremos subsídios, pretendemos, sim, que nos comprem e contratualizem serviços. Agora que o QREN deixa de sustentar a programação dos teatros municipais, não me cabe discutir a justeza da medida, os programadores destas casas têm o dever artístico e ético de recorrer aos produtores culturais qualificados e reconhecidos, como o OLCA, para preencherem a sua programação. Claro que podem recorrer às Ágatas e Emanueis… Se o fizerem, ou se ignorarem a prática de cultura que está à mão, não merecem de forma alguma o estatuto de Programadores...

Há poucos anos a Segurança Social em França detectou que as mesmas crianças que eram filhos numa rua, já eram netos na seguinte e sobrinhos noutra. Na cultura também se verifica isso. Há entidades que se travestem desta forma, com uma exiguidade de recursos e apostando no plágio e na demagogia, apenas para mostrarem serviço (mesmo quando o seu suporte financeiro assenta no pagamento a empresas uninominais dos seus patronos, uma forma de ganharem a vidinha). As autarquias sabem disto muito bem e há até quem estimule esta prática para ter toda a gente na mão. Pouco nos importa isso. A sustentabilidade do OLCA assenta exactamente na diferença, na diversidade, na dimensão e na multiplicidade de propostas.
Henrique Pinto
Diário de Leiria, entrevista
24 de Setembro de 2012
 

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