O Orfeão de Leiria (OLCA) caminha para os
70 anos de idade. É uma longa e profícua experiência. Desde sempre o seu Coro
foi um indicador de qualidade. Nos anos 50 a BBC de Londres identificava-o como
estando entre os cinco melhores da Europa. Em Janeiro de 1983 tomei posse como
presidente da casa com a proposta que apresentei na primeira reunião de
direcção, uma estratégia assente na infra-estruturação, no ensino artístico e
na realização dum grande evento cultural anual de referência, para servir de
farol. Tudo foi conseguido com o nosso esforço. Nada nos foi dado a não ser a
adesão das famílias e a consideração social e institucional e dos associados em
geral. E uma multiplicidade de grupos artísticos que entretanto se foram
criando no Orfeão, aliada à constante aposta na qualidade em todas as frentes,
na profissionalização, numa gestão cuidada e com objectivos claros (coisa que
se não viu em muitas autarquias, mormente em Leiria, por exemplo), e no rigor, com
mestres de superior valia e dedicação aos seus alunos e a quem lhes paga, sem
tergiversações, sem palhaçadas nem mentira como se vê por aí, com capacidade de
correr riscos e tendência para não criar dívidas, todos estes factores, juntos,
moldaram uma interacção muito produtiva no Ensino. Tudo o que existe nas
escolas e fora delas, como os festivais e os concertos, se articula para lograr
este ensino de alto nível. Aliás, tanto na Música como na Dança o OLCA é tido
pelas entidades tutelares como uma excepção nacional de grande qualidade no
Ensino. Alguns dos seus mestres, como Catarina Moreira, estão entre os
portugueses mais distinguidos pelo mundo fora. Muitos destes professores, todos
licenciados, são Mestres e Doutores, outros tantos são antigos alunos da casa. E
é por termos este ambiente pedagógico e institucional único, que, mantendo o
princípio da universalidade no acesso quanto aos alunos, vamos também apostar
seriamente numa diferenciação positiva do ensino, com incentivos aliciantes – o
estatuto de autonomia pedagógica que nos foi outorgado em todas as vertentes
formativas permite-nos fazê-lo –, tendente a sensibilizar ainda mais um
segmento de público com possibilidades de pagar essa benesse, sobretudo quando
não se deseja, à partida, o enveredar por uma carreira artística, mas uma
aprendizagem mais diletante. Temos a alternativa de qualidade também para este
nicho de clientes.
2 - A
instituição já viveu melhores dias em termos de apoios. Estes apoios têm vindo
a diminuir nos últimos anos? Qual a principal razão para essa diminuição?
O financiamento mor do OLCA (para além duma
gama imensa de fontes de menor dimensão) depende das contratualizações feitas
com o Estado e com as autarquias e institutos públicos. Não se trata de
subsídios. São contractos de prestação de serviços. Um Contracto é suposto se
para se cumprir, dita-o a ética e a lei. Todavia, a meio do ano lectivo 2010-11
o Ministério da Educação (ME) da Dra. Isabel Alçada, numa manobra de
desorçamentação ensaiada pelo governo para o Orçamento de Estado aprovado em
2010, fez, em Janeiro de 2011, transitar o financiamento de boa parte do
ensino, e designadamente o artístico, para o Ministério do Trabalho (hoje da
Economia), que gere os fundos europeus (POPH). Os secretários de Estado da Educação
e do Emprego garantiram na altura que nenhuma entidade contratualizada seria
prejudicada com a transição. Pura Mentira, o diferencial entre o que era e o
que então passou a vigorar, passou a ser de 25% menos. Foi um corte de
financiamento em 25% para as organizações que tinham o seu pessoal contratado.
O OLCA tinha à altura um Quadro de Pessoal com Contrato Colectivo de Trabalho
muito pesado, imposição da DREC, Direcção Regional do Centro do ME (nenhuma
outra Direcção Regional o fazia, parece incrível é verdade!), numa percentagem
de 90% dos seus recursos humanos. Ora, quem paga 14 meses de ordenado/ano na
instituição tida como a maior Escola Artística privada/associativa do país,
como o OLCA, foi colocado na mesma posição das casas que só pagam 12 ou mesmo
10 meses/ ano aos seus colaboradores e não têm responsabilidades fiscais. Foi uma
injustiça muito grande coberta por um silêncio a todos os níveis ainda maior, e
que durou até agora. Longo período em que batemos a todas as portas em dois
governos. Para uma direcção não remunerada é obra!
Julgo que em trinta anos no Orfeão de
Leiria apoios foi o que as pessoas de boa vontade a todos os níveis, na região
e no país, nos deram com o seu empenho, carinho e interesse artístico. A este
esquema soma-se, seguramente, a inestimável colaboração da Fundação Calouste
Gulbenkian com o Orfeão e com Leiria – e o seu patrono, Gulbenkian, nem sequer
tem uma rua com o seu nome nesta cidade, quase uma excepção nacional –, bem
como o apoio financeiro do sector empresarial para a realização de eventos,
como os Festivais, apoio este que tem valores pecuniários superiores em Leiria em
relação ao que se passa no resto do país. O que é um dado muito favorável para o
crédito da prática do OLCA. Também a Área Metropolitana de Leiria tem apoiado o
Estágio Internacional de Orquestra, mas o valor pecuniário tem vindo a
diminuir. De resto, firmámos com o executivo anterior da Câmara de Leiria um
Contrato Programa, um exemplo para o país, e neste ano em curso temos um Protocolo
com o actual executivo, que muito me agrada pela forma e conteúdo, mas cuja
continuidade parece ensombrada. O caracter discricionário do novo Regulamento
autárquico, saído enquanto estive fora, suscita-me a maior apreensão. Num e
noutro caso o financiamento do Orfeão dependia e depende do volume de trabalho
contratualizado e feito.
Por isso mesmo nunca usei a linguagem de
apoios ou subsídios. Não é a nossa prática.
3 - A
gestão da instituição tem sido feita em função dos apoios e do pagamento das
mensalidades dos alunos. É possível fazer mais com menos dinheiro?
Até ao fim do mês de Setembro em curso o
OLCA terá todos os ordenados em dia e metade do 13º e 14º mês deste ano já
pagos. E no entanto a injustiça do ME, que, por omissão, nos extorquiu mais de
cem mil euros em ano e meio, os cortes em 38% no que nos era devido por parte
da Secretaria de Estado da Cultura (igual para o país), a redução de montantes
no Protocolo com a autarquia leiriense e tantos outros cortes contratuais,
produziram efeitos. Além disso uma escola secundária de Leiria desinteressou-se
do Ensino Profissional da Música que vínhamos ministrando, mesmo se esta é uma
profissão com emprego garantido nos tempos actuais. Coisa que não é de somenos.
Foram dois cursos que desapareceram. E, como a economia se faz de expectativas,
houve menos inscrições neste ano lectivo que começa (sobretudo nos alunos que
apenas pagavam o transporte em autocarro do OLCA, um custo baixíssimo), pelo
que passou a haver menos trabalho. Sendo o Estado o maior cliente e pagando, em
média, o correspondente a um terço do devido em cada trimestre, não se consegue
pagar ordenados exactamente no fim de cada mês como até há um ano atrás.
Tivemos de implementar uma política de maior contenção, eliminar os contractos
a termo certo, negociar alguns despedimentos. E sectores como o Coro do Orfeão sofreram
uma remodelação no seu Estatuto, passando os seus membros a contribuir com uma
propina para a sua frequência. Preferimos esta solução, facilitadora da
manutenção dum nível de qualidade alto – porque a cultura não se reproduz pela
vulgaridade -, a recorrermos ao amadorismo puro. Temos já perspectivas para um
amplo sucesso coral. Portanto, é óbvio que com pouco se pode fazer muito. Mas
há limites para o possível. As políticas culturais liberais, tanto do governo da
Nação como das autarquias (o novo regulamento para a cultura da Câmara de
Leiria, propiciador da arbitrariedade mais elementar e sem quaisquer objectivos
para o desenvolvimento cultural, é prova disso), conduzem a um retorno às
piores fases do passado, praticamente ao Estado Novo. Nem mesmo um liberal
acreditará que o país possa ser culto com os custos para os cidadãos que têm
ingleses ou alemães. Já para nem falar no fosso em iliteracia que nos separa
desses povos. Com outros argumentos, é certo, é o debate mais geral entre o
tocar no fundo, inanimado, e o viver pobre mas com alma.
4 - A
instituição que lidera debate-se com problemas financeiros, à semelhança do que
sucede com outras da região? Como pretende ultrapassá-los?
Tivemos uma grande vitória nos últimos
dias. Como se a conjuntura não fosse já desfavorável para tudo e todos, eis que
a DREC do ME (sempre privilegiámos o óptimo relacionamento com todos os
poderes, a cultura não pode dar-se ao luxo de o não fazer, e o relacionamento
anterior com esta estrutura, com outra gente independentemente da cor do
governo, foi mesmo fantástico) resolve inviabilizar uma das medidas que
adoptámos e comunicámos - que temos plena competência para implementar e que
havia sido discutida por nós como possível com o próprio POPH ao mais alto
nível -, para anular os efeitos deletérios da baixa em 25% do valor da
contratualização com o ME. Parece ironia, alguém que não paga e ainda sufoca
quem quer viver mesmo sem o pagamento devido. Ao fim de ano e meio de
insistência junto do senhor ministro Nuno Crato e sobre todas as estruturas do
ME, do governo, das associações, entre outras, demonstrando a ilegalidade da
decisão de Coimbra (as escolas de outras regiões do país que se inspiraram na
proposta do Orfeão, que aqui vieram beber a fórmula salvadora, não tiveram
qualquer problema), eis que, depois de recurso do OLCA feito por um dos maiores
escritórios de advogados do país, e da intervenção da AEPP, associação de
escolas, o senhor ministro acaba por nos dar razão, e mais, estender a medida a
todas as escolas do país (que já não é a primeira vez que ganham com as
diligências do Orfeão). Foi um sufoco enorme gerir e pugnar a este nível,
embora certos que nos assistia a razão. O resultante vai-nos permitir pagar
todos os ordenados do ano lectivo com base nos alunos do ensino gratuito ou
parcial (cujo ensino o Estado paga), assim como nos dos cursos livres, bem como
no fornecimento de serviços. Tal implica mesmo assim um esforço muito grande de
todos os trabalhadores, o que é inestimável.
5 -
Em termos práticos, que reflexos tiveram na gestão da instituição os cortes
anunciados pelo Governo?
Esta era a altura para as autarquias se
afirmarem no país, definitivamente, com base na cultura e em articulação com os
seus produtores culturais, como paulatinamente se vem fazendo desde os anos
noventa. Elevar o nível cultural do país é tão importante como mantê-lo
saudável. Mas o exemplo da vereação cultural de Leiria não augura uma tal
perspectiva, esta vereação da cultura e educação é tão socialmente inculta e
neoliberal (mesmo se socialista) como o ministro Victor Gaspar.
Os cortes anunciados pelo governo
acentuarão ainda mais a descrença dos cidadãos, reinstala-se a ideia de que a
cultura é um luxo e não uma ferramenta de trabalho, sobretudo se não houver um
contrapeso importante, que poderia ser o trabalho cultural das autarquias. O
desafio que lanço daqui a quem pode escolher os candidatos a eleitos no próximo
ano é que acautelem decididamente essa escolha no que concerne a todas as
áreas, mas particularmente à da cultura.
6 - A
redução do número de professores encaixa no cenário da contenção e dos cortes?
Não, não há qualquer relação directa com os
cortes ora anunciados pelo governo. Mas, para além da contenção salarial que
nos propusemos fazer, incluindo a redução legal do contingente de trabalhadores
(docentes e não docentes) e das outras medidas atrás expostas, não podendo
fazer em 2012-13 os 327 espectáculos únicos de 2011-12, coisa extraordinária
para qualquer instituição, vamos fazer algo inovador na programação, torna-la mais
criativa, interactiva e construída na complementaridade, e apresentar ainda um
amplo leque de produtos lúdicos no campo da cultura, pagos pelos utilizadores,
enquadráveis num padrão de gosto/custos aceitável.
7 -
Poderá haver perda de qualidade do ensino, se continuarem a verificarem-se
cortes e uma progressiva diminuição de docentes?
Como disse, os cortes são susceptíveis de
influenciar as expectativas dos consumidores, que poderão passar a privar-se do
que até agora consideravam uma alternativa de formação para os seus filhos.
Viu-se que neste ano a baixa na taxa de consumo em geral foi acentuada no país.
Não haverá razões para isso na frequência do OLCA na medida em que há mais
vagas no Ensino Articulado. Todavia, o Orfeão de Leiria tem agora os
professores que necessita, e com a qualidade a que faz jus, para continuar
sendo das maiores e melhores escolas artísticas do país.
8 -
No limite poderá estar em causa o funcionamento do Orfeão ou encara o futuro
com optimismo?
Se o senhor Ministro da Educação não
tivesse agora reconhecido a razão que nos assiste o drama seria inevitável.
Quando criada, a EMOL, escola de música do OLCA, foi a terceira ou quarta no
país. Hoje existem 122 escolas com idêntica finalidade. Mas quanto mais antiga é
a Escola mais pesada é a estrutura de recursos humanos, maior a carga salarial
e fiscal, como vimos atrás. Como sabeis, ao contrário doutras práticas
comerciais, o Estado só paga o que deve se os impostos do credor estiverem em
dia. Uma estrutura de recursos humanos assente num Contrato Colectivo de
Trabalho implica uma enorme carga fiscal que é assim paga à cabeça, antes de se
receber o pagamento pelo trabalho. As escolinhas que por aí pululam não têm
destes encargos. No entanto, custe o que custar a quem eventualmente denigra o
nosso trabalho de criação e gestão, o OLCA, com toda a sua complexidade, é uma
escola em boa gestão. Já passámos momentos muito difíceis como o mais recente
(em empresas muitas e no associativismo em geral corresponderia à falência ou à
debandada geral), mas a boa gestão, qualificada, digo-o sem rebuço algum,
aliada a uma diplomacia exaustiva, a diplomacia da cultura assente no bom uso
da informação, interna e externa, e no empenhamento assertivo de todos e
particularmente dos órgãos de gestão actuais, reforça-nos o optimismo, a
certeza que, com as mudanças necessárias e pés bem assentes na terra (o exemplo
das do Coro principal é relevante), o OLCA viverá por longas eras. Quaisquer
que venham a ser os seus dirigentes no futuro.
9 -
Sente que os leirienses olham para a instituição como uma referência ou apenas
como uma mera escola de música?
Em 63 anos de idade tenho 45 anos de
trabalho no associativismo, incluindo o amador e o universitário. Abordei
múltiplos processos de gestão, experimentei muitas fórmulas na busca dos
melhores modelos de direcção e gestão, fui director mundial de áreas e
projectos no campo social, fui consultor mundial em projectos muito sensíveis,
fiz carreira académica em vários países e conjunturas. Construímos no OLCA
imensas estruturas artísticas, dezenas delas mesmo, criámos com o Ministério da
Cultura a Orquestra Filarmonia das Beiras, temos três festivais internacionais,
dos quais, Música em Leiria, é já o mais antigo e persistente dos Festivais
Nacionais (se dependesse do Estado, ou da autarquia, já se teria perdido!),
ensinámos milhares de alunos ao longo dos anos, temos mais de três dezenas
deles em universidades estrangeiras, cerca de cinco dezenas de crianças com
menos posses estudam aqui sem pagar (em áreas que o Estado não cobre). As
empresas que nos apoiam e se reconhecem nesta obra fazem-no também porque têm
os seus indicadores de retorno do investimento cultural feito. Nós também temos
alguns desses indicadores de retorno. Podemos dizer que neste momento o OLCA
toca, directamente, cerca de 20000 pessoas. Fazemos um investimento à medida
das nossas posses mas, bem assessorados, com muito bons resultados no processo
de informação e comunicação de massas. Somos a Associação da região com mais
associados, a merecerem crescentemente, uma atenção maior. Se depois disto os
leirienses olhassem para o OLCA, não como uma referência, que efectivamente é,
mas como mais uma escola de música, então talvez não tivesse valido a pena
vivermos. Ora eu estou muitíssimo orgulhoso daquilo que ajudei a construir e do
impacto que com tal já se conseguiu. A transformação do social faz-se pela
cultura, compete a todos, sendo um processo longo e de persistência.
10 -
A direcção está a trabalhar em algum projecto específico para manter a
sustentabilidade da instituição, mantendo a qualidade do ensino?
Como já disse, a alteração de paradigma no
Coro da instituição, uma decisão que assiste à direcção e só a esta, é uma
medida de fundo (só por si insuficiente, é certo) para manter sustentáveis
todos os sectores da casa. Mas vamos tornar todas as áreas sustentáveis, mesmo
se com equilíbrios internos. Não queremos subsídios, pretendemos, sim, que nos
comprem e contratualizem serviços. Agora que o QREN deixa de sustentar a
programação dos teatros municipais, não me cabe discutir a justeza da medida, os
programadores destas casas têm o dever artístico e ético de recorrer aos
produtores culturais qualificados e reconhecidos, como o OLCA, para preencherem
a sua programação. Claro que podem recorrer às Ágatas e Emanueis… Se o fizerem,
ou se ignorarem a prática de cultura que está à mão, não merecem de forma
alguma o estatuto de Programadores...
Há poucos anos a Segurança Social em França
detectou que as mesmas crianças que eram filhos numa rua, já eram netos na
seguinte e sobrinhos noutra. Na cultura também se verifica isso. Há entidades
que se travestem desta forma, com uma exiguidade de recursos e apostando no
plágio e na demagogia, apenas para mostrarem serviço (mesmo quando o seu
suporte financeiro assenta no pagamento a empresas uninominais dos seus
patronos, uma forma de ganharem a vidinha). As autarquias sabem disto muito bem
e há até quem estimule esta prática para ter toda a gente na mão. Pouco nos
importa isso. A sustentabilidade do OLCA assenta exactamente na diferença, na
diversidade, na dimensão e na multiplicidade de propostas.
Henrique Pinto
Diário de Leiria, entrevista
24 de Setembro de 2012
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