Fascinam-me as histórias sobre a pirataria nos Açores (s. 16 a 18) ou a espionagem no Estoril. Daí este meu escrito baseado em mil leituras.
O
Hotel Palácio, no Estoril, é um dos grandes hotéis europeus, que desde 1930
deslumbra sucessivas gerações vindas de todo o mundo possidente. O seu
desenvolvimento cruza-se com a história da Europa e do Mundo. No século XXI, o
Palácio mantém-se grande, moderno, integralmente renovado e actualizado. E com
a particularidade de, apesar da grandiosidade, ser acolhedor, um hotel «cosy», onde
se podem desfrutar as magníficas vistas sobre o Estoril e a Baía de Cascais.
O Hotel
Palácio de hoje mantém muitas das características dos anos trinta. A fachada
integralmente branca e os belíssimos jardins, elementos aliados à elegante
decoração clássica, actualizada de molde a perpetuar a matriz de
intemporalidade, luxo e sofisticação, inspiram quantos nele entram.
Daí
a atracção muito selecta que lhe enriquece o currículo. Durante a Segunda
Guerra Mundial, devido à neutralidade de Portugal, algumas famílias reais
exilaram-se no Estoril, tornando-se este conhecido como a «Costa dos Reis». O
Palácio foi casa de eleição para a estadia de inúmeros membros da realeza
europeia e, ao mesmo tempo, frequentado por espiões britânicos e alemães, que
muitas vezes se chocavam no seu bar.
Muitas das histórias de intriga e
espionagem ali vividas inspiraram famosos romancistas e cineastas. Em 1969 o Hotel
foi mesmo cenário de um dos filmes de James Bond, «Ao Serviço de Sua Majestade»,
porventura com o pior dos protagonistas de sempre, George Lazemby, mas com o imenso
charme de Diana Rigg e Telly Savalas.
O
Palácio foi segunda casa das famílias reais espanhola, italiana, francesa,
búlgara e romena e continua ainda hoje a ser o local de eleição dos seus
descendentes. Em sua homenagem foi criada em 2011 a Galeria Real, onde se podem
apreciar instantâneos de grandes personalidades da realeza que passaram pelo hotel.
De
braço dado com o encanto de Cascais e Estoril o Palácio acolhe chefes de
Estado, imperadores, reis e príncipes, a nobreza europeia, os grandes artistas
do mundo, escritores, campeões do desporto, realizadores de cinema, actores e
muitos políticos notáveis.
Se
nos reportarmos ao período 1939-45 e tendo em conta as possibilidades de
Portugal advindas da sua situação geográfica, o país funcionava como uma placa giratória económica, humana e até de
informações. Na capital imperavam as mais variadas línguas (desde francês,
inglês, russo, italiano, jugoslavo, alemão) e passeavam-se pessoas de muitos
países, como espiões duplos ou não. Os turistas, à época, eram uma pequeníssima
elite. Só haveria alguns espanhóis e convidados pelo governo português.
No
entanto, em Portugal, estes anos da II Guerra Mundial, e já antes, desde 1933, foram
de turismo forçado para muitos dos perseguidos e fugidos à guerra e ao
nacional-socialismo. Lembrarei sempre a minha amiga Mary, hospedada na Casa da
Laura, em Cascais, cujo filho morrera no campo de concentração de Auschewitz.
Na Costa Estoril-Cascais, além dos refugiados ricos, diplomatas e estrangeiros
de passagem, permaneceram também muitos agentes secretos dos dois campos
beligerantes, que em regra se encobriam sob a capa de adidos diplomáticos. Foi
isso que relatou o diplomata e escritor jugoslavo Miloch Tsrhanski, fugido de
Roma onde fora adido de imprensa do seu país, antes de este ser invadido pelas
forças do Eixo, em 1941, que esteve alojado no Hotel da Inglaterra (estilo arte
nova, atrás do Hotel Palácio), no Estoril.
É sedutor este assunto da
espionagem, mormente no Estoril. É dessa época a tentativa de rapto do Duque de
Windsor, que também peregrinou por Portugal depois de abdicar do trono inglês,
pelo espião alemão Schellenberg. A abdicação do antigo rei britânico Eduardo
VII (dá o nome a um dos mais importantes parques de Lisboa), em 11 de Dezembro
de 1936, está vulgarizada como a materialização do propósito de casar com a
americana divorciada Wallis Simpson, que a situação de monarca lhe interditava.
Mas o antigo monarca era um germanófilo convicto, e, por isso, impopular.
O agente secreto inglês
Ian (Lancaster) Fleming, em Maio de 1941, como muitos outros escritores e
cineastas, também se inspirou nesta atmosfera romanesca, quando
trabalhava para o Naval Intelligence Department britânico, para escrever «Casino Royale», que viria a originar um
dos primeiros filmes da saga James Bond, o 007.
É conhecido o poiso de muitos dos agentes
secretos a operarem então em Portugal. Em Outubro de 1940, alojou-se no Palácio
o iraniano Nubar Gulbenkian, que colaborou com o MI 6. De 19 a 24 desse mesmo mês
aí se instalou também Isaiah Berlin, então a trabalhar no British Information Service
de Nova Iorque. Curiosamente, a sua amiga Virginia Wolf caracterizou-o como um
«swarthy portuguese jew». «Kim» Philby e o futuro escritor Graham Greene, autor
de inúmeros livros de espionagem, são outros hóspedes ilustres.
Thomas Malcolm
Muggeridge, mais um dos elementos do Intelligence Service inglês, alojou-se na
Pensão Royal do Estoril, em Maio de 1942, enquanto o espião jugoslavo Bocko
Christitch se instalou no Grande Hotel do Monte Estoril, em Agosto de 1941. Os
espiões estrangeiros ficavam hospedados,
sobretudo, nos Hotéis Tivoli, Vitória, Suíço-Atlântico, Duas Nações e Avenida
Palace, em Lisboa, e no Hotel Atlântico, Grande Hotel do Monte Estoril e Hotel
do Parque, na Costa do Estoril-Cascais (os alemães). Os britânicos alojavam-se
nos Hotéis Avis e Metrópole, em Lisboa, e, na Linha do Estoril, no Grande Hotel
da Itália, no Hotel Palácio e noutros. Entretanto um amigo de Dusko Popov,
desde os tempos de juventude, o oficial alemão Johann Jebsen, que trabalhava em
Lisboa para os serviços secretos do Alto Comando Alemão (Abwehr), oferecera-se,
desde o verão de 1943, para colaborar com a rede britânica do espião duplo jugoslavo
Bocko. No final de Janeiro de 1944, Dusko Popov transmitiu a Londres, um
extenso relatório de Jebsen, revelando nomes de membros da Abwehr, entre os
quais figurava «Garbo». Preocupados com o facto de Jebsen ficar a saber que
«Garbo» era controlado pelo MI5 e, assim, apurar que as operações em curso poderiam
ser uma fraude, os ingleses tentaram obter a sua expulsão de Portugal para o
isolarem da Abwehr. Em 28 de Março de 1944, Jebsen informou os serviços
secretos ingleses de que a Abwehr tinha começado a suspeitar de certo espião. Afirmou
que ele próprio tinha conseguido desviar as atenções dos alemães, acrescentando
ir mesmo ser condecorado por estes. No dia seguinte, ao deslocar-se à Delegação
alemã em Lisboa para receber a referida condecoração, foi espancado,
violentamente interrogado e, em 1 de Abril, atirado manietado para um automóvel
com matrícula diplomática alemã, que atravessou a fronteira portuguesa.
Entregue à Gestapo, foi executado no campo de concentração de Orianenburg, em
Abril de 1945.
No Hotel Palácio do Estoril, também estiveram hospedados os actores Zsa Zsa
Gabor (conheci-a pessoalmente em 1966 quando ela rodou «Hammerhead» em Santa
Marta, Cascais), fugida da Hungria com a irmã Eva em 1944, e Leslie Howard, que
colaborou no esforço de guerra dos aliados. Leslie partiu de Portugal, onde
assistira à exibição do seu penúltimo filme, «Spitfire, the first of the few»,
em Junho de 1943, para a que seria sua última viagem, num avião da BOAC abatido
por caças alemães no golfo de Biscaia. O actor Leslie Howard trabalhava para a
espionagem britânica. Portanto, poderia ser ele o alvo dos alemães, embora
outro dos passageiros desse avião fosse Tyrell Shervington, director da empresa
Shell em Lisboa desde 1922 e igualmente espião do Secret Intelligence Service
(SIS), em Lisboa.
Portugal, de facto, não
participou na guerra. Mas a guerra chegou cá sob diversas formas. É a situação
geográfica, a aliança luso-britânica e a simpatia não expressa do governo pelo
regime nazi, que vão determinar os factos da 2ª Guerra Mundial em Portugal.
O país manteve relações
económicas com países beligerantes que se opunham entre si. Embora os
britânicos tenham decretado um bloqueio a Portugal e Espanha para impedirem os
contactos com a Alemanha, Salazar, ao abrigo da neutralidade que adoptou, pôde sustentar
relações comerciais com a Alemanha de Hitler (por sinal um natural austríaco),
para lhe fazer chegar roupas de Inverno, conservas e sobretudo o volfrâmio,
necessário para o armamento. Estes negócios, muitos deles clandestinos, quer
com os Aliados, quer com a Alemanha, possibilitaram o enriquecimento de alguns
portugueses. Mau grado tais negociatas a situação económico-financeira e social
degradou-se, com escassez e racionamento de géneros, fome, inflação a disparar,
desemprego, baixa de salários, revoltas sociais e corrupção. A eventualidade
duma invasão germânica ou espanhola obrigou a que se ensaiassem exercícios
militares de defesa em Lisboa e pelo país fora.
A Austrália e o Japão
invadem Timor, tropas portuguesas vão para os Açores, em protecção do
arquipélago, a base aérea açoriana das Lages é negociada, inicialmente com os
ingleses, para ficar depois, e até hoje, dos americanos. O espaço aéreo
português é violado, houve combates junto da costa de tal modo que caíram
aviões em Portugal e há soldados alemães e ingleses sepultados em território
português. Chegou a adiantar-se a hipótese de o governo português se fixar em
Angola ou Moçambique (à semelhança da ida da corte portuguesa para o Brasil,
aquando das Invasões Francesas).
É todo este caldo
histórico que vem conferir a esta zona balnear Estoril-Cascais o clima propício
ao desenvolvimento da espionagem internacional em 1939-1945.
10 de Outubro 2012
Henrique Pinto
FOTOS: Costa Cascais-Estoril (vista do Clube Naval de Cascais); Hotel Palácio do Estoril; o agente 007 interpretado por George Lazemby em «Casino Royal»; Eduardo e Wallis Simpson com o ditador nazi; Zsa Zsa Gabor; Graham Green; Hotel Palácio do Estoril; Termas do Estoril (Spa Banyan Tree) do Hotel Palácio (com o Hotel de Inglaterra à direita); o Campo de Concentração de Aucshewitz; Henrique Pinto; Hotel de Inglaterra, no Estoril; Reis de Espanha Juan Carlos e Sofia; Ian Fleming; Costa Cascais-Estoril vista da Praia da Conceição; Leslie Howard; Kim Philby; A Casa da Laura (quarta a partir da esquerda)