Eu sempre exerci funções públicas e privadas. Hoje é mesmo este
último setor o único berço da minha prática. Posso assim dizer aquilo que tenho
por útil sem qualquer pedra no sapato. Ao evocar os 35 anos do Serviço Nacional
de Saúde (SNS) vêm-me à memória episódios burlescos do seu lançamento. Eu
participei ativamente nessa construção. Mais do que ideológicos os entraves
começaram por estar no juntar dos diferentes serviços. A um lado reinavam os poderosos
serviços médico-sociais (SMS, herdeiros da antiga Caixa de Previdência), no
outro sobrevivia a Direção Geral de Saúde (a ostentar a bandeira dos cuidados de
saúde primários, recém hasteada em Alma Ata). De dentro dos corredores do
governo chegavam à periferia ordens contrárias, impeditivas, umas, proactivas outras.
O liberalismo médico, corporizado na figura dum colega
ilustre, bastonário – dou-me muito bem com ele, não me interpretem precipitados
-, defendia então outros modelos de inspiração para o sistema, eminentemente
centrados no lucro. O ramo farmacêutico, liderado por um interveniente meu
conterrâneo, labutador e ousado, mesmo se de espírito social controverso, que
praticamente tomou o Estado nas mãos (medicamentos cada vez mais caros, travão
aos genéricos, dívidas do ministério às farmácias na ordem dos nove meses de
atraso, rígida regulamentação para a abertura de farmácias, formação dum Banco
à custa destes retardamentos), arruinava qualquer orçamento.
À medida das nossas possibilidades (e não das seletivas
Holanda ou Alemanha, onde os idosos não têm qualquer apoio, regimes musa para a
oposição ao SNS), ergueu-se um sistema universal e quase gratuito, a que o
tempo conferiu caraterísticas singulares de gigantesco avanço social histórico.
Praticamente todos os nossos governos (não me citem
exceções!) tentaram destruí-lo. Tal desiderato só não terá vingado por inteiro
porque a generalidade das opções alternativas era bastante mais cara. As taxas
moderadoras introduzidas, retiradas e novamente ativadas, tinham, de início, como
o próprio nome sugere, uma intenção boa, a de frear o imenso consumismo de
consultas advindo das «consultas a metro» dos SMS. Nos dias que correm, em que
os consultórios estão às moscas e as consultas hospitalares em queda, essas
taxas são um imposto direto.
Poderia ter havido um melhor entrosamento dos setores público
e privado e simultaneamente uma separação das águas ao nível da prática
profissional (o pleno emprego da classe médica em Portugal, algo bom, era em
paralelo um obstáculo, os profissionais não eram suficientes). Esse entrecruzar
acabou por fazer-se da maneira mais ínvia e sobretudo no âmbito financeiro.
Hoje, mais de 70% do rendimento com exames complementares, subvencionado pelo
Estado, vai para a área não pública. Alguns hospitais públicos são
administrados pelo setor financeiro/segurador. E o receituário oficial
generalizou-se. Mas continua a não haver médicos. E, quando temos à volta de
1,5 enfermeiros para um médico (longe dos 7,5/1 dos países do norte, o
desemprego campeia nesta área.
Henrique Pinto
Setembro 2014
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