quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

LINGUAGEM ESCLAVAGISTA


A terminologia usada pelos «intelectuais da bola» logo tornada linguagem popular tem autênticos achados. Repare-se no peso das tiragens da imprensa futebolística por comparação com o das restantes publicações. A sua vantagem é mesmo francamente avassaladora quando se tem por padrão a imprensa tida de «referência», absoluta minoria. Quem não ouviu dizer nos últimos dias, Benfica, Sporting e Porto aproveitaram o mercado de inverno para se reforçarem, comprando estes e aqueles jogadores?
É uma linguagem de proprietários e mercadoria. Dado visar pessoas e não produtos hortícolas ou acções, configura a da escravatura. Uma vez por outra, se a transacção resulta duma parceria, lá se diz «a compra do passe de fulano ou beltrano». Os alvos desta fraseologia vão desde Ronaldo, o nosso príncipe, a ganhar bons cabedais, aos que «pagam» para dar uns chutos na bola.
No entanto, jamais ouvi uma palavra de repúdio ou de pedagogia quanto a tal linguajar por banda dos responsáveis sindicais ou dos homens ditos cultos dos programas futebolísticos das televisões, nomeadamente Rui Moreira, Oliveira e Costa, Rui Santos, Fernando Seara ou António Pedro Vasconcelos.
Portugal foi das primeiras nações abolicionistas. Todavia, o esclavagismo persiste em muitos países, estimando-se que cerca de 27 milhões de pessoas no mundo, oficialmente, tenham tal estatuto. Nos países árabes e noutros países muçulmanos existem escravos tradicionais. A caça para a captura de raparigas bonitas é vulgar no Sudão. O tráfico humano visando a prostituição forçada envolve milhões de mulheres, principalmente em regiões de franca pobreza como a Ucrânia, Moldávia, Rússia, África e Índia, bem como em países onde a venda do corpo tem muito peso, como a Tailândia e as Filipinas. A multidão de crianças a trabalharem como escravas (nem me refiro às crianças soldado) ou obrigadas a mendigar e à entrega aos seus donos de todo o produto da colheita, e até a que envolve mulheres e crianças propriedade de seus maridos e pais, por força da tradição, entre outras formas de escravidão, é assustadora. O essencial da economia chinesa assenta em quantos milhões de seres humanos desprovidos de quaisquer direitos?
Usar-se um léxico eminentemente esclavagista na Europa ocidental, no século 21, a propósito de actividades que empolgam meio planeta num só instante, e para mais nos meios de comunicação susceptíveis de atingirem franjas maiores de população, e sobretudo as de menor grau de literacia, é um mau sintoma de harmonia social.
Henrique Pinto
Janeiro 2010
FOTOS; Zaccardo em acção; Fernando Seara e esposa Judite de Sousa

3 comentários:

  1. Dignissimo Irmao Amigo e Comp. Henriques Pinto...

    Sua gentileza é imensa, pelo que nao temos proprios para lhe ser grato o suficiente.

    Saudacoes Fraternais.

    manuel de sousa

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  2. JOSÉ ANTÓNIO VARATOJO6 de janeiro de 2010 às 13:41

    Caro Amigo Dr. Henrique Pinto

    Desejo-lhe a si e família um Bom Ano pleno de saúde e tudo o que deseja.

    Agradeço-lhe muito sinceramente a gentileza das suas palavras que escreveu no seu blog acerca da minha pintura.
    Gostaria de lhe pedir autorização para poder inserir o texto num eventual próximo portefólio das minhas próximas exposições a New York e Alemanha.

    Aproveito para o convidar a visitar a minha próxima exposição "FIGURASnaORDEM" que se realiza na Ordem dos Médicos em Coimbra.

    Um abraço
    Varatojo

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  3. Victor Santos, como Carlos Pinhão (a filha não o faz esquecer) ou Carlos Miranda (também um apaixonado do ciclismo, escreveu resmas de papel sobre Joaquim Agostinho), foi um dos jornalistas do fenómeno indústria futebolística, fazedor de escrita da melhor qualidade.
    Findara já o liceu, talvez, quando surgiu o filme Fahrenheit 451, de François Truffaut, adaptação do romance homónimo de Ray Bradbury, a história duma futura sociedade totalitária onde os livros seriam proibidos. Oscar Werner, actor austríaco falecido novo, a Susel adorava-o, representa nessa obra um dos muitos bombeiros cujo trabalho era queimar todo o material impresso. Ao furtar e ler um livro mudou a sua visão do mundo.
    Pois Victor Santos, quem sabe se influenciado por esta obra, escreveu então mais ou menos isto, «se um dia acabarem todas as grandes obras da literatura e ficarem só os jornais desportivos, poder-se-á reconstituir a beleza da língua». Não se trata de saudosismo. É apenas uma nota quanto ao que hoje seria pura utopia.
    Mas há mais situações destas com muita graça. Andam por aí treinadores com uma conversa elegante, rebuscada, quase barroca. Manuel Machado é um bom exemplo quando não se zanga. Mas nada que faça esquecer o estilo gongórico do falecido Joaquim Meirim quando, uns anos depois da tirada de Victor Santos, dizia «(…) e o Ala Arriba, grito de guerra dos poveiros, ecoará por todos os estádios do país, onde o Varzim viverá tardes inolvidáveis de glória».

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