Morei
desde menino no edifício vitoriano onde hoje está alojado o lindíssimo Centro
Cultual de Cascais. Separa-o do mar apenas a imponente Cidadela de Cascais, à
altura estritamente um aquartelamento militar. Adorava ouvir a ronda das
sentinelas com a cantada ordem: «sentinela alerta», a resposta da sentinela
seguinte «alerta está!», o ripostar da primeira «passa palavra», e o continuar
do ciclo noite inteira. Mas só lá entrei três vezes: quando fui à inspeção
militar; quando visitei a nova pousada e agora que tive o gosto de conhecer o
Palácio Real.
O
conjunto da Cidadela de Cascais,
incluindo o Forte de Nossa Senhora
da Luz, a Torre de Santo
António de Cascais, e toda a parte fortificada que está compreendida
entre a Ponta do Salmodo e o Clube Naval de Cascais, é imóvel de interesse público desde
1977. Herança da Torre Tarda de D. João II (1485), ampliada por Filipe I, rei
da monumentalidade, as obras que prosseguiram com D. João IV (1681), teve
depois várias adaptações. Cedida à Câmara de Cascais, a cidadela foi
revitalizada, como a zona envolvente, e abriga agora a excelente Pousada
Cascais.
Cascais
era uma terreola de pescadores em meados do século XIX. O terramoto de 1755,
com o subsequente maremoto, destruíra massivamente toda a zona baixa do lugar
até à subida para Alvide e deixou marcas na cidadela altiva e no seu Palácio e
Capela (dita de Santo António, patrono dos exércitos).
Por
via da doença e do aconselhamento médico o Rei D. Luís vem passar parte do ano
no Palácio da Cidadela (normalmente entre Abril e Novembro). Traz com ele a
nobreza. É ali inaugurada a eletricidade em Portugal.
Boa parte dos palacetes
da vila (culturalmente continua a recusar-se como cidade) é dessa altura. A
burguesia rica acompanhou o soberano e contribuiu para a modernidade da região,
a que hoje concentra maior número de estrangeiros residentes no país e que atrai
todo o visitante que demanda Lisboa.
A
15 de Outubro de 1879 é inaugurado o Sporting Club de Cascais, a Parada, que
concentrava a elite do dinheiro e da intelectualidade, nomeadamente Eça de
Queirós, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins. Ali se realizou ainda o primeiro
jogo de futebol em Portugal promovido pelos irmãos Pinto Basto. A ideia
peregrina de tal ter ocorrido na cidade do Porto nasce de Tese nada
fundamentada.
Casado
com D. Maria de Saboia (conhecida por Maria Pia face a uma vida de consolo aos
desprotegidos, filha do rei Vitor Manuel I de Itália e cunhada de Napoleão II),
depois dum ardoroso romance por correspondência e da esplendorosa chegada a
Lisboa pelo Tejo (D. Luís acaba por não mais a procurar no leito, nascidos os
filhos, procurando outras mulheres na corte, o grande desgosto da rainha que
tanto censurara o pai por idêntico porte), o rei morre nos seus braços em 1889,
exatamente na cidadela.
A
estátua enorme de D. Carlos está sobranceira à baía e o passeio marítimo, que
encima o clube naval, tem o nome de sua mãe D. Maria Pia.
O
Palácio Real (onde viveram os presidentes da República até Craveiro Lopes)
continua residência presidencial (mesmo se visitada como museu). Esta última
restauração incluiu a adaptação de cozinhas modernas e ar condicionado,
detalhes de que o visitante nem se apercebe.
O
Primeiro monarca estrangeiro a passar ali férias depois da reabertura há pouco
mais dum ano foi o atual Príncipe do Mónaco, Alberto. Que coincidência! O filho
mais velho de D. Luís, D. Carlos (o último rei a habitar o palácio, era íntimo
amigo de Rainier I do Mónaco, bisavô de Alberto).
Juntos, cada um com os seus
três iates, exploraram cientificamente os mares portugueses até aos Açores.
Assim nasceu o Museu Oceanográfico de Monte Carlo (a sala de entrada só tem
exemplares da fauna marítima portuguesa, incluindo a lula de nove metros
apanhada nos Açores, e utensílios da caça à baleia no arquipélago). O Aquário
Vasco da Gama criado por D. Carlos nasce também desta parceria régia. A visita
de Alberto I é muito importante. Mas é ainda como que o preito simbólico ao
monarca íntimo da sua família.
Santo
António de Lisboa, dos maiores intelectuais franciscanos europeus da época
(nascido em 1191 ou 1195) foi desde sempre adotado pelos militares. Teve uma brilhante carreira militar póstuma.
Inúmeras cidades da Espanha, Portugal e Brasil conferiram-lhe títulos
militares, condecorações, insígnias e outras honrarias, iniciando-se o curioso ritual
quando o regente D. Pedro ordenou
em 1668 que ele fosse recrutado e assentasse praça como soldado raso no II
Regimento de Infantaria em Lagos,
sendo promovido sucessivamente a capitão e coronel. Com o posto de
tenente-coronel, sua imagem foi levada pelo XIX Regimento de Infantaria em
Cascais à frente dos combates da Guerra Colonial, recebendo depois uma
condecoração. A sua imagem está guardada
em Mafra.
Há pouco
mais de um século, devido aos
maus acessos a partir de Lisboa, costumava dizer-se que a «Cascais, uma vez e nunca
mais». Este dito prolongou-se por décadas. As orgias homossexuais da Avenida
Emídio Navarro (anos 1950-60), mortos aparecidos na praia daí resultantes, ou o
jogo azarento do Casino Estoril deram ânimo ao dichote. Apanhava-o nas
conversas desde menino. E quando cheguei a Coimbra como estudante
ainda o ouvi reiteradamente.
Exatamente quando Cascais e Estoril tinham já o cosmopolitismo hoje atribuível
ao Algarve, ali viviam muitos refugiados judeus fugidos ao terror nazi (a Casa
da Laura é exemplo de boa memória a tal respeito), e o «glamour» do Estoril
anos 40 estava vivo nas bocas do mundo (Casablanca foi um filme de enorme
sucesso). Felizmente extinguiu-se esse agoiro. A vila de Cascais é, desde
finais do século XIX, um dos
destinos turísticos portugueses mais apreciados por nacionais e estrangeiros,
uma vez que o visitante pode desfrutar de um clima ameno, das praias, das
paisagens, duma das melhores ofertas culturais nacionais, e da oferta hoteleira
e gastronómica variada.
Fevereiro
2014
Henrique
Pinto