sábado, 8 de fevereiro de 2014

NOVA CIDADELA, UMA VEZ E PARA SEMPRE

Morei desde menino no edifício vitoriano onde hoje está alojado o lindíssimo Centro Cultual de Cascais. Separa-o do mar apenas a imponente Cidadela de Cascais, à altura estritamente um aquartelamento militar. Adorava ouvir a ronda das sentinelas com a cantada ordem: «sentinela alerta», a resposta da sentinela seguinte «alerta está!», o ripostar da primeira «passa palavra», e o continuar do ciclo noite inteira. Mas só lá entrei três vezes: quando fui à inspeção militar; quando visitei a nova pousada e agora que tive o gosto de conhecer o Palácio Real.
O conjunto da Cidadela de Cascais, incluindo o Forte de Nossa Senhora da Luz, a Torre de Santo António de Cascais, e toda a parte fortificada que está compreendida entre a Ponta do Salmodo e o Clube Naval de Cascais, é imóvel de interesse público desde 1977. Herança da Torre Tarda de D. João II (1485), ampliada por Filipe I, rei da monumentalidade, as obras que prosseguiram com D. João IV (1681), teve depois várias adaptações. Cedida à Câmara de Cascais, a cidadela foi revitalizada, como a zona envolvente, e abriga agora a excelente Pousada Cascais.
Cascais era uma terreola de pescadores em meados do século XIX. O terramoto de 1755, com o subsequente maremoto, destruíra massivamente toda a zona baixa do lugar até à subida para Alvide e deixou marcas na cidadela altiva e no seu Palácio e Capela (dita de Santo António, patrono dos exércitos).
Por via da doença e do aconselhamento médico o Rei D. Luís vem passar parte do ano no Palácio da Cidadela (normalmente entre Abril e Novembro). Traz com ele a nobreza. É ali inaugurada a eletricidade em Portugal. 


Boa parte dos palacetes da vila (culturalmente continua a recusar-se como cidade) é dessa altura. A burguesia rica acompanhou o soberano e contribuiu para a modernidade da região, a que hoje concentra maior número de estrangeiros residentes no país e que atrai todo o visitante que demanda Lisboa.
A 15 de Outubro de 1879 é inaugurado o Sporting Club de Cascais, a Parada, que concentrava a elite do dinheiro e da intelectualidade, nomeadamente Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins. Ali se realizou ainda o primeiro jogo de futebol em Portugal promovido pelos irmãos Pinto Basto. A ideia peregrina de tal ter ocorrido na cidade do Porto nasce de Tese nada fundamentada.
Casado com D. Maria de Saboia (conhecida por Maria Pia face a uma vida de consolo aos desprotegidos, filha do rei Vitor Manuel I de Itália e cunhada de Napoleão II), depois dum ardoroso romance por correspondência e da esplendorosa chegada a Lisboa pelo Tejo (D. Luís acaba por não mais a procurar no leito, nascidos os filhos, procurando outras mulheres na corte, o grande desgosto da rainha que tanto censurara o pai por idêntico porte), o rei morre nos seus braços em 1889, exatamente na cidadela.
A estátua enorme de D. Carlos está sobranceira à baía e o passeio marítimo, que encima o clube naval, tem o nome de sua mãe D. Maria Pia.
O Palácio Real (onde viveram os presidentes da República até Craveiro Lopes) continua residência presidencial (mesmo se visitada como museu). Esta última restauração incluiu a adaptação de cozinhas modernas e ar condicionado, detalhes de que o visitante nem se apercebe.
O Primeiro monarca estrangeiro a passar ali férias depois da reabertura há pouco mais dum ano foi o atual Príncipe do Mónaco, Alberto. Que coincidência! O filho mais velho de D. Luís, D. Carlos (o último rei a habitar o palácio, era íntimo amigo de Rainier I do Mónaco, bisavô de Alberto). 
Juntos, cada um com os seus três iates, exploraram cientificamente os mares portugueses até aos Açores. Assim nasceu o Museu Oceanográfico de Monte Carlo (a sala de entrada só tem exemplares da fauna marítima portuguesa, incluindo a lula de nove metros apanhada nos Açores, e utensílios da caça à baleia no arquipélago). O Aquário Vasco da Gama criado por D. Carlos nasce também desta parceria régia. A visita de Alberto I é muito importante. Mas é ainda como que o preito simbólico ao monarca íntimo da sua família.
Santo António de Lisboa, dos maiores intelectuais franciscanos europeus da época (nascido em 1191 ou 1195) foi desde sempre adotado pelos militares. Teve uma brilhante carreira militar póstuma. Inúmeras cidades da Espanha, Portugal e Brasil conferiram-lhe títulos militares, condecorações, insígnias e outras honrarias, iniciando-se o curioso ritual quando o regente D. Pedro ordenou em 1668 que ele fosse recrutado e assentasse praça como soldado raso no II Regimento de Infantaria em Lagos, sendo promovido sucessivamente a capitão e coronel. Com o posto de tenente-coronel, sua imagem foi levada pelo XIX Regimento de Infantaria em Cascais à frente dos combates da Guerra Colonial, recebendo depois uma condecoração. A sua imagem está guardada em Mafra.
Há pouco mais de um século, devido aos maus acessos a partir de Lisboa, costumava dizer-se que a «Cascais, uma vez e nunca mais». Este dito prolongou-se por décadas. As orgias homossexuais da Avenida Emídio Navarro (anos 1950-60), mortos aparecidos na praia daí resultantes, ou o jogo azarento do Casino Estoril deram ânimo ao dichote. Apanhava-o nas conversas desde menino. E quando cheguei a Coimbra como estudante 
ainda o ouvi reiteradamente. Exatamente quando Cascais e Estoril tinham já o cosmopolitismo hoje atribuível ao Algarve, ali viviam muitos refugiados judeus fugidos ao terror nazi (a Casa da Laura é exemplo de boa memória a tal respeito), e o «glamour» do Estoril anos 40 estava vivo nas bocas do mundo (Casablanca foi um filme de enorme sucesso). Felizmente extinguiu-se esse agoiro. A vila de Cascais é, desde finais do século XIX, um dos destinos turísticos portugueses mais apreciados por nacionais e estrangeiros, uma vez que o visitante pode desfrutar de um clima ameno, das praias, das paisagens, duma das melhores ofertas culturais nacionais, e da oferta hoteleira e gastronómica variada.
Fevereiro 2014
Henrique Pinto




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