Jorge Leitão Ramos, cuja opinião costumo prezar bastante,
diz de A Viagem dos Cem Passos, de Lasse Hallström, «(…) até para conciliar o
que nem vale a pena querer fundir, as especiarias e o Béchamel, para mais
temperado como se fosse uma comédia romântica. Valha-o Deus!».
Valha-o Deus digo eu, não concordo em absoluto!
Que mal, que incongruência, que blasfémia poderá haver em
misturar o amor com qualquer atividade da vida? Na verdade, um sujeito pode ter
a maior capacidade de trabalho, de imaginação ou de sedução, mas se lhe falta o
amor fará o mesmo sauce français daqueles
a quem o romance bafeja?
E que inconsistência, que contradição, subsistirão na
mistura da alta cozinha francesa - elaboração, apresentação, requinte, arte,
produtos da maior qualidade, os molhos com que tanto se compraz – com a noz-moscada,
a canela, o afrodisíaco gengibre ou a pimenta do reino, manuseadas com idêntico
rigor?
A meu ver, meu caro Jorge, as duas perguntas têm uma única
resposta: nenhuma.
Também não acho que o filme valha tantos encómios só pela
excelente cena da prova da omeleta quando Helen Mirren, de costas, se empertiga
numa pose quase orgástica, de absoluto deleite. Vale, entre outros argumentos, porquanto,
bem feito, ser além do mais uma excelente mistura entre o prazer dos sentidos
suscitado pelos alimentos de todas as origens e o amor que dá a cor da vida a
quem os manipula com inata sensibilidade. Só que uma crónica negativa de alguém
com nome feito leva a que nenhum outro ilustre dê um cêntimo em público pelo
filme, temendo o ápodo de inculto. O contrário acontece por igual. Trata-se por
das vezes de vexar o primeiro crítico a escrever sobre o que quer que seja.
Que pena tenho faltar-me o ar e um belo filme como
ferramenta, tal e qual A Viagem dos Cem Passos, para desmoronar conceitos mais
banais sobre os alimentos, quando nomes conhecidos incensam em nome não sei de
quê o comércio do veneno, tanto nas dietas de efeito rápido como do que é exposto
em profusão em prateleiras de farmácias e celeiros, fora do controlo de
qualquer autoridade que não, quando assim não é, do ministério da agricultura!
Dietas bizarras e sem qualquer fundamento, proclamadas pela indústria, pela
publicidade enganosa, e por muitos nutricionistas, ganham espantosas taxas de
sucesso como o trabalho dietético bem feito não consegue por baixa adesão.
A novela inenarrável e triste que a publicidade
construiu sobre a comida saudável e o bom cinema
Um, filme com os dotes de A Viagem dos Cem Passos não me diz,
por exemplo, para quê medicamentos com fibra se as pessoas a podem colher das
nozes ou da couve-flor e de muitos outros condimentos naturais. Fico
envergonhado quando ouço na TV ou vejo nas farmácias a ode aos produtos que
«queimam gordura». Será que a sardinha (com os seus ácidos gordos Ómega 3), a
maçã, a canela, a toranja, o óleo de coco (e a função contra os triglicéridos)
ou os ovos (reduzindo o colesterol HDL), não produzem melhor
esse tal efeito? E
o mesmo se pode questionar sobre as prateleiras infindas de «drenantes» e
anticelulíticos. É moda agora dizer-se por aí «tem retenção de água». Que
estupidez! Mas, sendo necessário, porquê por de lado a couve-flor, os espargos,
os brócolos, as endívias ou o ruibarbo, ou mesmo o gengibre, em favor das
«drogas»? Quando ouço prescrições de «eliminar toxinas» ou necessidade avulsa de
suplementos, fico com os cabelos em pé.
Tenho pois muitos motivos para incensar o filme A Viagem dos
Cem Passos, uma boa comédia romântica produzida por Spielberg e Oprah. Mas
relevo a capacidade da obra em dar sentido à arte e ao amor na arte, através do
trabalhar até à excelência, sem os limites do preconceito, os produtos naturais
mais qualificados (note-se que nem todo o natural é necessariamente bom), em
detrimento do inútil e do sintético, e duma paixão que se lhe sobrepõe nascida
nos encontros e desencontros entre dois chefes de cozinha, ela francesa e ele
indiano.
A quem puder aconselho a não perder esta maravilha de bem
viver.
Leiria, 24 de Agosto de 2014
Henrique Pinto
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