- Menino Pedro, levante-se da cama que o café está servido e a hora da escola já se aproxima! – dizia, de forma suave e generosa, a governanta da casa.
E o menino, nos seus gestos matinais, inocentes, espreguiçava-se longamente e, sempre vagaroso, lá ia obedecendo à velha serviçal, a demonstrar bem o cansaço próprio do final do ano lectivo.
- Já falta pouco, menino, e então poderá dormir e brincar, fazer tudo o que mais deseja – consolava-o ela.
O menino, que começara muito cedo os seus estudos, não entendia porque tinha de deixar de lado a diversão para se embrenhar numa rotina tão intensa, que incluía as aulas da escola, mas também aulas de língua estrangeira, piano, e tantas outras formações que não lhe pareciam nada úteis. O que ele mais queria era brincar. E quando reclamava, seu pai logo lhe dizia:
- Terás muito tempo para brincar, meu filho, agora é hora de te preparares para o futuro. Bem sabes que és o meu único herdeiro!
Diante de tão forte argumento, o menino já não reclamava mais. Mesmo que o desencanto às vezes doesse. E como doía, quando avistava pela janela as crianças que brincavam pelas ruas e estas sempre lhe sorriam e correspondiam aos seus acenos…!
(…)
Não muito longe dali, Luís, que tinha a mesma idade de Pedro, levantou-se ao ritmo do sol mas não para ir à escola. A escola era sempre para mais tarde. Àquela hora, com a luz do dia a lançar os primeiros fogachos pelas frinchas da porta, também ele se movia vagaroso, mostrando bem o desconforto da chamada:
A rotina era sempre a mesma. O menino tinha de ajudar na lida. E depois tinha ainda muito para caminhar até chegar à escola. Por fim, ao entardecer, quando o cansaço já era muito, as outras crianças ainda o desafiavam:
- Então Luís, tu não brincas nunca?
E ele:
- Hoje estou cansado demais, tenho de ir para casa.
Quando chegava a casa, o que mais lhe apetecia era sentar-se a escutar as histórias contadas por sua mãe, enquanto afagava o estômago com uma sopa bem recheada de legumes. E era seu pai, quem depois o carregava, adormecido, para a cama que ficava no mesmo quarto do casal.
(…)
- Menino Pedro, vamos lá levantar! Chegaram as férias, são horas de brincar! – assim falou a governanta Dolores, amorosamente como sempre, mas agora em tom alegre, como quem vem para dar a maior novidade do mundo.
- Não quero, Dolores – respondeu o menino, - sinto a minha cabeça rodando e muitos tremores de frio.
E logo gritou para a patroa:
- Acuda, minha senhora, que o menino não está bem!
(…)
Enquanto isto, na casa de Luís as coisas tinham um rumo semelhante. O pai selou a jumenta e foi, muito satisfeito, dizer ao filho que agora poderia cavalgar livremente. Por fim, tinha tempo para brincar.
- Como agora já não tens escola e o trabalho não é muito, pega na burra e vai dar uma volta. Junta-te com a outra rapaziada e podes brincar à vontade!
No entanto o menino deixou-se estar mudo e quedo. Não se levantou da cama. Dali a pouco voltou o pai:
Então rapaz, olha que o sol já se cansou de esperar por ti e já vai alto.
(…)
O que ali se escutava eram lamentos duma mulher que dizia:
- Não pode ser! Como pode esta doença maldita chegar até ao meu Pedro! Nunca me perdoarei por não o ter vacinado!
Ao escutar estes lamentos, a mãe de Luís aproximou-se para saber o que se passava também com aquele menino. Não conversaram por muito tempo, mas foi o suficiente para perceberem que os seus filhos sofriam do mesmo mal e que as duas, embora por razões bem diferentes, haviam cometido o mesmo erro.
(…)
Extractos do livro Caminhadas na Bruma
Conto de Simone de Fátima Gonçalves
Ilustrações de António Serer
NOTA. A Maria Antónia, esposa do Governador de Rotary International Manuel Cordeiro, teve a ideia tão bonita de – para conseguir reunir alguns fundos para apoiar a Campanha de Erradicação da Poliomielite do mundo – editar um livro infantil esboçando a saga da luta contra esta doença, dando a ênfase a alguns dos aspectos mais relevantes, desde o seu carácter mutilante irreversível à solução mágica da vacina como prevenção ou o facto de ser transversal nas sociedades.
Há quase 40 anos que não há um caso em Portugal graças à institucionalização da vacinação de rotina pelo Dr. Arnaldo Sampaio, meu querido amigo e mestre. Mas só agora, ao fim de 25 anos desta saga promovida por Rotary se está à beira do seu fim. Todavia, os fundos necessários continuam a ser avultados.
Lançou um apelo na net e autora do texto e ilustrador ofereceram-se para, graciosamente, elaborarem a obra. Saiu um livrinho interessante, bucólico, naïf, esclarecedor, pedagógico, lindo, do qual já vendeu mais de 4000 exemplares.
Bem-haja «Toninha»
Henrique Pinto
Fevereiro 2010
FOTOS: Carl-Wilhelm Stenhammar, Presidente Eleito dos Curadores da Fundação Rotária de Rotary International, respondendo a perguntas dos presentes na Assembleia Internacional de 2010, em San Diego, EUA, sobre o andamento do processo de erradicação da poliomielite e os fundos indispensáveis para a materialização do mesmo; ilustrações de Antonio Serer para o livro Caminhadas na Bruma; Manuel Cordeiro, governador 2009-10
de Rotary International
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