O André, aluno de guitarra clássica da professora Ilda Coelho no Orfeão de Leiria Conservatório de Artes (OLCA), ganhou agora em Espanha dois importantes prémios de nível internacional. Para mais, duas distinções nunca antes atribuídas ao mesmo concorrente. A ministra da cultura Gabriela Canavilhas foi célere a felicitar pessoalmente o jovem galardoado. Um gesto bonito que é muitíssimo importante para o distinguido, para os mestres e para o natural orgulho de quantos se revêem no sucesso do ensino das artes.
Na chuva de entrevistas que entretanto lhe rogaram o André lá foi dizendo do seu entusiasmo e da vontade de seguir o ensino superior da música.
Na Região Autónoma dos Açores existe o per capita de 1 músico para 50 habitantes. A região que mais se aproxima deste valor no continente é exactamente a de Leiria. Todavia, ano após ano, são às centenas os alunos de música daqui oriundos a rumarem às cidades onde se ministra o ensino superior ou profissional desta área artística. É cada vez mais uma opção de futuro. Este último modelo de ensino está agora a começar na cidade de Rodrigues Lobo através da parceria do OLCA com a Escola Secundária Domingues Sequeira, financiado pelo QREN. Que dizer dum curso universitário para a música?
Se fosse autorizado ampliar o leque de instituições universitárias no país, o OLCA, com mais de quatro mil alunos no momento, ter-se-ia há muito candidatado a tal exercício, e disso tem dado reiteradas mostras. No Instituto Politécnico de Leiria, quiçá cogitando no fiasco do ensino da música na Escola Superior de Educação (ESEL), como em todos os estabelecimentos similares do país, têm-se posto travões a fundo no que respeita às propostas exteriores para se ministrarem cursos de nível superior. Como se o exercício da antiga ESEL, no que à música respeita, tivesse algo a ver com o ensino da disciplina ao nível mais alto! Seguramente, esta é uma proposta de sucesso, geradora de empregabilidade garantida e porventura mais elevada que muitos dos cursos de engenharia.
Daí que se espere possa vingar num futuro chegado.
Se todos os males do ensino artístico residissem aqui o seu futuro em Portugal não correria tantos riscos como se prevê venha a acontecer. Mas o mínimo que se pode dizer é que a legislação de Junho último tolhe rudemente o acesso democrático ao ensino da música e da dança. Como é possível?
Satisfazendo um «desejo» incontido dum lobby de professores de música – sempre o corporativismo entorpecente - de encontrarem um Mozart em cada esquina, a carga horária nos conservatórios foi acrescida em três horas. Instalada a não sincronia com o ensino regular por via de tal desfasamento, deixou também de ser possível substituir disciplinas do ensino regular pelas do artístico. Por outro lado, reduz-se em um terço a oferta de professores, já de si francamente débil, porquanto são necessários para leccionar aquele acréscimo curricular, um luxo absolutamente desnecessário no ensino artístico até aos quinze anos.
E qual a solução encontrada para resolver esta falsa solução de futuro? São criados os Agrupamentos de Escolas de referência para o ensino artístico. Como se este ramo do ensino tivesse as mesmas características das escolas de referência para surdos, por exemplo, onde todos os portadores da deficiência se vão inevitavelmente inscrever. Quer isto dizer que, para ter acesso ao ensino gratuito e dentro dos horários normais os alunos de todo um concelho terão de se matricular num destes agrupamentos, necessariamente poucos, articulando-se estes com as Escolas de Música.
Quem tenha a infelicidade de ter um filho com uma deficiência fará tudo o que lhe for possível para ter a criança numa dessas turmas especiais. Mas se mesmo quando se democratizou o acesso ao ensino artístico – uma falsa esperança porquanto agora vira um logro - foi necessário sensibilizar pais, professores, dirigentes de filarmónicas e muito mais agentes para fazer crescer o número de alunos, será que alguém espera igual resultado de sucesso a partir de Junho próximo? O mínimo que se poderá dizer é que os jovens que aproveitarão desta legislação serão os únicos no mundo a escolherem uma profissão aos dez anos de idade. Ou então dir-se-á, «se queres aprender música – porque tal é essencial ao desenvolvimento intelectual e porque gostas -, então paga». E como os agrupamentos de Escolas de referência são entidades públicas, então os alunos das Escolas particulares, mesmo as que têm contrato de Associação com o Estado, e onde o ensino regular é gratuito, deixam também de ter acesso ao ensino da música e dança nas condições de «articulado». Se dentro dum mesmo concelho esta restrição, ao arrepio da tradição portuguesa de apego às suas instituições, não faz sentido, será que com um Agrupamento escolar próximo de casa as pessoas vão inscrever os filhos noutro concelho, porque aí está uma Escola de referência para a música?
Os portugueses que tanto criticaram a concentração de maternidades – uma medida absolutamente lógica para melhorar a qualidade do parto – vão agora aceitar igual concentração, decorrente dum reformismo às avessas.
Como é possível fazer-se uma Reforma esquecendo por inteiro a logística para a tornar operacional, o facto de a iliteracia funcional atingir mais de 60% dos portugueses, e, como se fora pouco, passando por cima da injustiça social que a mesma vem instituir?
Responda quem entender.
Henrique Pinto
Fevereiro 2010
FOTOS: Walter Lemos, ex secretário de Estado da Educação, promoveu a publicação deste diploma, um potencial gerador de exclusão; instrumentos de arco, colecção do Museu da Música, La Vilette, Paris; a presente «reforma» induziu os pais em erro; Maria de Lurdes Rodrigues, ministra da éducação responsável pela «reforma» em questão; programa de concertos da Fundação Gulbenkian; meninos tocando violino 1; crianças, com pleno direito a serem tratadas por igual e a terem acesso irrestrito ao ensino da música para além das AEC, pelo potencial demonstrado no desenvolvimento intelectual; crianças tocando violino; uma classe de bailado do OLCA.
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