«Era uma vez … nos tempos do primeiro Rei de Portugal, as hostes do rei Afonso,
vieram, em estugada marcha, do norte ao sul com o desejo de conquistar o Castelo de Leiria que aquele Rei havia edificado, anos antes, e os mouros tinham tomado depois da grande matança da gente portuguesa.
Quando todas as tropas estavam já prestes para a arrancada pousou um corvo, no alto de um pinheiro, que logo começou a agitar as asas com frenesim e a crocitar com alegria.
Tal facto muito contentou os guerreiros do Rei Afonso e mais os entusiasmou por verem nele um sinal de bom agoiro para a empresa que iam cometer: a conquista do Castelo de Leiria. Este acontecimento é hoje memoriado no brasão da cidade de Leiria, que mostra um corvo em cima dos dois pinheiros que ladeiam a sua torre central»
João Cabral
em A História do Teatro Amador em Leiria
1975
Esta lenda regional lembrada por João Cabral179 faz cogitar numa metáfora. Também na heráldica imaginária das memórias a figura do encenador Joaquim Manuel de Oliveira, o “Quiné”, do seu percurso enquanto criador teatral e lutador político, bem como as performances do grupo de teatro que criou em 1972 no Orfeão de Leiria, o GTOL (muito embora convidado desde 1964 a constituir um grupo cénico, chegando a trazer o encenador Fernando Gusmão181 a conferenciar no edifício histórico da Rua Latino Coelho), o GTOL, que incluía gente nova e vários dos antigos amadores do teatro na casa, constitui uma ruptura epistemológica cultural, institucional e local, esse sinal de bom agoiro da lenda.
O escritor e encenador Luís Mourão recorda o contributo societário do Quiné em Leiria, enquanto actor e encenador (depois do OLCA esteve ainda no Ateneu Desportivo de Leiria, como antes passara por companhias amadoras e profissionais, também a fazer teatro), como marcante da simbologia do teatro nesta fase.
Diz ele com doçura: «A chegada, tranquila, de Quiné à cidade marca um momento decisivo de agregação e recuperação dos núcleos centrais da paupérrima vida cultural de Leiria de início dos anos 60. Do seu corpo, agigantado por uma imparável paixão pela arte de representar, retiram-se então inspirações criativas revigorantes no Teatro e no Cinema e uma geração em debandada – para, fosse onde fosse fora daqui – encontra, precariamente é verdade, boas razões para ficar mais um pouco. O seu contributo, colectivo, para a formação das sucessivas gerações de homens e mulheres culto e críticos, empenhados seriamente na transformação das misérias, do inevitável, é inestimável. É-lhes cada vez mais acessível, aqui mesmo, propostas de espectáculo mais abertas e interessantes, Sean O'Casey para além de Gil Vicente ou as comédias inteligentes de Eugène Labiche como exorcismo dos horrores de Armando Tavares. Se olharmos com atenção, na génese desta extraordinária transformação silenciosa encontramos, com certeza, a curiosidade insaciável e o vigor operário do Quiné. Um vigor e uma curiosidade criativa que ele soube manter intactos até ao fim. Tinha, temos todos – criativos, gestores, espectadores – uma ideia de Teatro. O Quiné
transportou a sua mesmo quando parecia natural abdicar dela. E eu, que penso Teatro de uma forma bem diversa, percebo-o muito bem. A questão central é, relativamente, simples: O Teatro, as artes cénicas ou performativas em abstracto, são tanto mais Arte quanto a sua capacidade de transformar o outro, de lhe permitir pensar um futuro mais interessante, uma nova realidade que corresponda como um mapa tatuado no corpo aos seus anseios.
Transformar o outro foi aquilo que, com uma singeleza fantástica, o Quiné soube fazer melhor. Transformar – entre a mais aguda crítica, o despertar dos mais radicais sentimentos de justiça, o encantamento e o desvario. Esta é uma história quase toda por escrever. Mas, é história de parte fundamental da vida cultural de Leiria».
Se desde os primeiros instantes outras práticas artísticas se desenvolveram no Orfeão de Leiria, em determinado momento houve necessidade de alargar ainda mais as actividades internas. O contexto político suscitado pela “Revolução dos Cravos” como ficou conhecido o movimento militar que depôs o ancien regime, com o fim da censura às influências culturais e teatrais susceptíveis de minarem o status político, o lançar de peças nunca representadas, o alargamento das temáticas, o teatro assume a função de «veicular uma mensagem crítica e socialmente empenhada (…), revoluciona o formalismo estético (Carvalho, C. 2004), e acompanha e protagoniza a ânsia generalizada de mudança propondo-se como agente social transformador.
É assim que o GTOL (Cabral, J. 1980; Pinto, H. 2010 b), levou à cena peças como: “Diário de Anne Frank” (os ensaios vêm desde antes da queda do regime) com um impacto enorme, os horrores da violência extrema sobre o Homem do tema, trabalhado na adaptação do texto pelo Quiné, reforçavam as convicções democráticas; “O Dispensário”, história centrada no espaço gélido e austero de um dispensário médico da Irlanda do início do século XX, por onde desfilam aqueles para quem a vida mais não tem para oferecer que sofrimento, dor e morte; “O Pinto Calçudo”, quão bom é ter sempre qualquer coisa que nos defenda das dificuldades, que podem surgir, muitas vezes, quando menos se esperam, o problema das dificuldades do quotidiano; “Frei Bartolomeu dos Mártires” (obra que participou no I Encontro do Arquivo Histórico Dominicano, realizado no Mosteiro da Batalha em 1981, a convite desta entidade), da autoria do seu encenador, Joaquim Manuel de Oliveira “Quiné”, e posteriormente readaptada exactamente em 1983, tal como “A Viagem de Senhor Perichon”, de Labiche, comédia de costumes bem-humorada e contundente, entre outras. Em 1989 o Grupo de Teatro partiu para uma nova estética e estreou peças como Mário, Eu próprio, O Outro, de José Régio ou A Farsa de Mestre Pathelin, com a direcção artística de Luís Mourão.
Bartolomeu dos Mártires, mestre na escola dominicana do Mosteiro da Batalha, a sua doutrina deu brado, proclamar a liberdade congénita de todos os homens num mundo em guerra e no cume da escravatura, ou tomar as posições de vanguarda que assumiu como arcebispo de Braga (ele que se dizia Frei Ninguém) no Concílio de Trento183, é uma personagem singular, uma personalidade cativante e motivadora de atenção ao Outro (Oliveira “Quiné”, J. M. 1990).
Há pois no período imediatamente posterior a 25 de Abril, e particularmente em 1983 (ano do segundo resgate financeiro de Portugal pelo FMI184) e anos seguintes, a influência marcante no GTOL de Erwin Piscator185 (a acção teatral deveria instigar a mudança social), do teatro de Bertolt Brecht186, e do seu “distanciamento” de construção e representação (ele acreditava que o teatro poderia criar um clima intelectual propício à mudança social), fazendo sentido o Teatro Épico e Documental na vida quotidiana e em construções cénicas como Bartolomeu dos Mártires, ou ainda antes deste período, dum realismo de cores fortes,inconformista, de certo modo os resquícios do ideário social das luzes como também o dos séculos XIX e XX em Portugal, o neo-realismo, a esperança na “construção” dum homem mais digno e feliz (que vem desde o pós guerra de 1945 no século que passou).
O grande exemplo do naturalismo de Stanislavsky (antes do seu encontro com Anton Tchekov, que o faz acrescer-lhe, mesmo se com outro fim, a revelação psicológica da personagem, o realismo psicológico), presente na encenação de Na dne (No fundo) de Gorki, «onde aquela vida miudinha que nos outros espectáculos servira apenas de pano de fundo ao drama dos protagonistas, passava para primeiro plano: cada fala nascia no e do contexto de uma pequena acção quotidiana – jogar às cartas, cozer, cozinhar – em que se consumava a vida dos miseráveis retratados por Gorki (…)», (Molinari, C. 2010), está presente em boa parte dos trabalhos de “Quiné” anteriores a Bartolomeu dos Mártires. Mesmo se na cidade de Leiria chegou a existir gente a trabalhar na esteira de Stanislavsky, mas a um nível mais rebuscado.
Qual o significado propriamente dito que estes espectáculos [os de Piscator] podiam ter, em que o espectador devia sentir-se fatalmente esmagado por eventos maiores do que ele e condicionado por muitas evocações (…), por um determinismo férreo, é difícil de dizer. Contudo, tinham obviamente um grande valor no plano cognitivo (…), bem como no plano da tomada de consciência, na medida em que Piscator era genial ao encenar com extrema clareza o gigantesco material envolvido» (Molinari, C. 2010).
Em Portugal o teatro dito naturalista, teve sucesso em duas iniciativas profissionais na capital, no princípio do século XX, a do Teatro Livre e a do Teatro Moderno. «(…) Estas duas iniciativas, aplaudidas pela imprensa progressiva, atacadas pelos jornais conservadores, cuja «contiguidade ao movimento da propaganda republicana» Óscar Lopes acertadamente sublinhou e resultava não só da personalidade cívica dos seus mentores e aderentes como dos temas levados à cena (que punham em causa as desigualdades sociais, a moral e a justiça burguesas, o celibato dos padres), representaram um marco importante na evolução do nosso teatro, tanto pela revelação de novos autores, actores e encenadores, como pela afirmação polémica de uma atitude combativa frente ao marasmo da vida teatral portuguesa» (Rebello, L. F. 2000). Mas lograram também uma notável influência.
Afinal, é nos dramas didácticos que «Brecht dá os exemplos mais claros daquilo que entendia por teatro político: um instrumento de conhecimento dialéctico (…). Os dramas didácticos não são tão úteis aos espectadores quanto aos autores que, adoptando uma postura activa e consciente diante dum dado problema, conseguem apreender os seus termos efectivos e indicar as suas possíveis soluções que não são necessariamente as do autor (Molinari, C. 2010).
“Quiné”, um auto-didacta, ao ter a capacidade de trabalhar tanto o naturalismo (o de origem lusa, no dealbar do século, como o da influência do Stanislavsky da primeira fase), o neo-realismo ou o teatro político (inspiração de Piscator e Brecht), numa íntima relação com o diferente, qual celebração da heterogeneidade, é em sentido filosófico um pós-moderno precoce, e o resultado deste seu labor identifica a sua produção mais tardia no OLCA como eminentemente pós-moderna ou prefigurando já o pós-modernismo.
E as sociabilidades geradas pelo teatro de tal raiz no seio do associativismo, meio onde tinha um pendor catalisador e veiculador, estimulavam um saudável sentido transformador.
Mas pode ainda dizer-se que este «realismo de larga implicação social” (Cruz, D. I. 2001) ou a tradição de “drama de actualidade” ou “drama social”, caracterizado por uma estética realista naturalista, de temática social, aperfeiçoada ao longo do século XX, e em especial depois de Abril de 1974, é «um bom exemplo da evolução modernizante que este realismo de cariz social sofreu» (Carvalho, C. 2004).
Henrique Pinto
Novembro 2011
FOTOS: Joaquim Manuel de Oliveira “Quiné”; GTPL com Quiné ao centro; Cena de Bartolomeu dos Mártires; «Quiné e Guy Stoffel; Janela do Mosteiro da Batalha; Bertolt Brecht; Stanislavsky; Cesare Molinari (encenação do autor)