O tempo voou…
Vencida a deriva
anárquica que se seguiu ao dia 25 de Abril de 1974 – mesmo assim com os mais
belos momentos da minha vida num Portugal livre e democrático –, construiu-se
um sistema político representativo, que, com o passar dos anos se
descaraterizou pela cristalização, agrilhoado à pura defesa de interesses
individuais e de grupo. Apesar do salto brilhante a todos os níveis na
escolaridade e educação – um país medieval atinge o pós-modernismo -, o grau de
incultura e de iliteracia é muito alto nos dias que correm.
O 25 de Abril foi
um exemplo para o mundo dado a transição pacífica de regime, absolutamente
invulgar. A mudança posterior em Espanha torneou os erros cometidos aqui. Também
a precipitação lusa para o atual resgate financeiro bem como o dispêndio
seguido à adesão europeia, serviram de lição a muitos países, por serem
caminhos ínvios e a não seguir. Na comemoração dos 40 anos desse dia luminoso
de Abril o país está paupérrimo, triste como poucas vezes esteve, impotente e
descrente.
Naquela noite
desligámos o rádio um tudo nada antes das duas da madrugada. Não ouvimos o
«Depois do Adeus» ou o Grândola …
Continuámos a
estudar… Pouco passava das seis quando cheguei ao Hospital velho da
universidade, galgadas as monumentais – tinha de arranjar vez para fazer umas
consultas curriculares de ginecologia, a cadeira do Professor Ibérico Nogueira
-, e deparei-me com a novidade e o caos. Eu, que me recusara a crer quando
quatro dias antes soube do golpe iminente, exultei. Mas ninguém sabia detalhes,
os doentes corriam pelas enfermarias como loucos e o pessoal dividia-se no
cerne das opiniões. Lembro-me duma das doentes, com um mioma uterino, a
dizer-me que lhe apetecera partir a telefonia com um sapato. E um dos meus
professores no turno da noite, alguém deste distrito, quase gritava. «Eu fugia
se pudesse mas não sei para onde!» dizia ele.
Ouvi Santiago
Carrilho a dizer um dia a Mário Soares ignorar «o que passou pela cabeça de
Cunhal para este crer que à Rússia de então interessava ter um regime satélite
em Portugal». No entanto ele tudo fez para isso. O país viveu por muitos meses
num frenesim. O dado por adquirido logo de manhã justificava a reedição dos
jornais à tarde para novas versões. Veja-se bem quão díspar era o conhecimento
dos fatos e das querelas entre os militares, a igreja, os partidos, as
ocupações de terras devolutas (em nome de «a terra a quem a trabalha»), a
infiltração de ministérios e associações, as manifestações de rua, os
movimentos de libertação em África e em Timor a tornarem imperiosa a
descolonização, as barbaridades do COPCOM de Otelo… Acima de tudo a liberdade
tranquilizava como aroma de flor. Para quem vivia no medo permanente de ir para
a guerra ou ter de desertar, o alívio foi substantivo. As colónias tornaram-se
independentes.
Quarenta anos
depois temos dificuldade em explicar aos jovens o que foi viver sob opressão e
num país miserável. Há quem como eu se lamente não termos ganho um regime
eleitoral aberto, como o instituído pelo liberalismo em Portugal no século XIX
(com nuances, obviamente) e abolido pela República, semelhante ao que existe
hoje noutros países europeus ou das américas. Um sistema ao menos impeditivo de
se escolherem os piores. Quando hoje falamos do liberalismo corrente temos de
ter em conta que nada tem a ver com a mesma designação do até 1910 entre nós ou
com a dos EUA ainda hoje, este de cariz social democrata. O mundo mudou muito
nestas quatro décadas. A globalização seria sempre imparável e sob muitos
aspetos é um ganho civilizacional. Como a ignorância podia ter sido minorada.
Esta última fase do capitalismo ou do liberalismo duros no mundo, é mais
selvagem do que alguma vez foi. Aqui rasga literalmente o tecido social. Mina
os alicerces da democracia.
O desvio do
presente – mesmo assim com antecedentes a justificarem-no -, será sempre mais
difícil de vencer que os de 74-75. Temos tantas incertezas quantas as havidas
na madrugada desse longínquo Abril. Mas a adversidade nunca calou a esperança.
«Havemos de ir a Viana», como cantaria Amália. Sendo incontornável que, neste
mundo e nesta Europa, ou noutra sem o ascendente alemão, 25 de Abril é a
efeméride portuguesa mais significativa dos últimos cinco séculos, pela
natureza, forma e resultados no que respeita a aspetos dos mais básicos da
nossa existência. E como tal exige ser celebrada sempre com regozijo e
reflexão.
No final dos anos setenta, nos tempos de
Londres, jantava no East End em casa dum amigo, jornalista do «The Sun» a
trabalhar em Portugal a 25 de Abril - depois ficou meses, apaixonado -, quando
um dos convivas alvitrou, «estavas no país mais livre do mundo nessa altura». É
verdade, sinto-o como tal ainda hoje, irrepetível e belo, sem ódios, o povo
desconhecido a entrar pelo écran da televisão única, ofegante, mal vestido e
pobre, democracia representativa por excelência, mesmo se nos limites da
anarquia.
A 21 de Abril de 74, ao fim do dia,
cheguei a Coimbra, escaldavam-me os lábios com a certeza e a mente com a
dúvida. Ponderada força e credibilidade da informação com os companheiros de
casa, a perturbação espiritual manteve-se por mais três dias. Amigo do peito
bem informado dissera-me no Café Brisa, em Cascais, à hora da bica, «é nesta semana
pá!». Confirmou o estar por dentro de Abril ainda há uns dias na TV. Durante
anos os setores políticos olharam-me com o maior respeito, «o gajo sabia!». Mas
então como é possível que Marcelo Caetano supostamente o ignorasse, já que a
sua polícia política – ossatura dum dos regimes mais opressivos de sempre,
prendeu gente na tarde de 26 em Coimbra e fez três mortos em Lisboa -, o
desprezou por inteiro? Vê-se na angústia dos últimos escritos, suas convicções
nunca foram as da democracia mas tinha a noção clara da queda a prazo do
regime, o mundo estava contra nós, como aconteceu.
E se de tão importante que foi esse
respirar livremente, não tardaria a haver constrangimentos, os menores dos
quais não terão sido o enquadramento dos cidadãos por fações não interpenetráveis
em que, infelizmente, os partidos degeneraram, como previra Chomsky, tal e qual
o filme de ficção Divergentes ora em voga, marcou de forma perene e indelével a
vida da juventude que tal ar sorveu.
Na tolerância quanto aos disparates há
sempre a ter em conta consoante os ditos provenham de gente pouco literata ou se
um bocadinho culta, de pessoas do centro ou das extremidades do pensamento
político, de indivíduos encostados ou não a uma opinião padronizada. É vulgar «sentir-se
o ferrete» nos tímpanos quando se ouvem elucubrações laudatórias ao regime
político anterior à democracia, por oposição ao presente, mesmo nos media. Efetivamente,
para além do respeito pelas crenças de cada um, próprio da democracia viva, perdura
a tendência atávica, histórica e nostálgica, muito generalizada mesmo entre os
supostamente cultos, de afirmarem o seu tempo como o pior de todas as épocas.
Mas tal asserção é apenas um constructo sem fundamento.
Com essa madrugada luminosa o país mudou
como da noite para o dia. Leiria acompanhou essa transformação positiva.
Se Portugal como país só ocasionalmente foi
muito mais rico do que hoje o é, e se voltou a ter um novo ciclo emigratório,
ainda a decorrer, como tantos outros, está efetivamente muito melhor sob quase todos
os aspetos que há 40 anos.
Então ninguém conhecia o que se passava
país fora. A informação era minimalista. A censura política eliminava as mais
insignificantes ousadias da palavra, mesmo se simbólica. Se até as mensagens de
Natal dos soldados em África, como «adeus minha mãe, estou bem, até ao meu
regresso», vi serem às vezes sujeitas ao implacável lápis azul!
Quando se pensa no estatuto da mulher,
menorizada até esse Abril já longe, mesmo quem como eu viveu esse tempo
consciente dele tem momentos de basbaque. As mulheres dependiam em tudo,
administrativamente, da palavra do marido. Sair do país sozinhas estava-lhes
vedado. Votar só alguma letrada e proprietária o podia fazer. As hospedeiras do
ar e as enfermeiras não podiam casar…
Quando eu vim para Leiria – o distrito
tinha já um significativo empreendedorismo económico -, passei a ser o 23º
médico no velho Hospital D. Manuel de Aguiar, gerido pelo meu bom e saudoso
amigo padre Pires.
Sem haver aconselhamento pré-natal digno
do nome, quantos partos, deixada a hora para a última dor, não ocorriam quando
a ambulância, trepidante, galgava os carris na passagem de nível da Barosa!? A instituição
servia à altura uma população bem superior à que hoje depende das modernas estruturas
clínicas da cidade. Agora há mais de meio milhar de colegas meus nos serviços
hospitalares públicos e privados de Leiria burgo.
A mortalidade infantil – um
dos indicadores universais mais seguros de qualidade de vida e de bem estar -
rasava os trinta mortos com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos,
no distrito. Superava os 40 no concelho da Nazaré ainda que as mulheres locais
não quisessem fazer o parto noutro local. No distrito de Vila Real ia para além
dos 75 por mil. E no entanto o distrito de Leiria, graças à sua economia e
vigilância proactiva em saúde pública, foi o primeiro do país a atingir os valores
de líder mundial neste indicador. A Lepra, doença endémica caraterística ainda
hoje das regiões mais miseráveis do planeta, mesmo a da fase lepromatosa como
só vi depois em África ou em Katmandu, grassava no centro do país e
particularmente neste distrito. Tal como na idade média, em que a Leirena capital
chegou a ter uma leprosaria. Foi doença neutralizada no final dos anos noventa.
E a cólera, enfermidade com o mesmo estigma de atraso, pouca higiene e fraca
organização sanitária, deu no concelho de Leiria, já em 1975 – como eu vi -, o
seu último e rude golpe.
Eu tenho a cultura como
estando a montante de todas as práticas humanas. Daí o olhar para as suas
oscilações como um símbolo.
A emergência novecentista do
associativismo cultural e desportivo ultrapassa os interesses individuais e
coletivos. Na cidade do Lis existiram muitas associações desde 1860 até ao princípio da
segunda metade do século XX, aquando
do aparecimento da televisão em Portugal. Das onze associações criadas em Leiria nesse período
subsistem hoje três: Associação de Futebol de Leiria; Orfeão de Leiria Conservatório de Artes (1946) e Ateneu Desportivo de Leiria (1947).
O Ateneu trouxe uma nova componente para a sociedade leiriense, uma maior abertura liberal e de envolvimento de alguns estratos mais populares. Era
a nova filosofia oficial para o desporto. Na vertente cultural foi também por demais importante aparecer uma organização a produzir cultura, enquadrando as camadas populares urbanas, que não destoasse do regime e se mostrasse acarinhada por ele, de aparente transversalidade política. Conquanto que permanecessem intocáveis os princípios do Estado Novo. Talvez por isto houve um leque curioso de gente nas primeiras direções e
o «povo urbano» cantava, com a genuína dedicação de eminentes personalidades que transmitiram genuína qualidade e construíram elos de promoção inusitados. Estes objetivos suportaram
o Orfeão de Leiria. Uma instituição que se agigantou
depois de Abril e cresceu superlativamente nos últimos trinta anos. A ponto de
ser hoje uma das mais importantes e ecléticas instituições culturais dum
Portugal pós-moderno, tanto no ensino como na arte, imagem de marca de Leiria.
Henrique Pinto