quinta-feira, 29 de maio de 2014

DAR A MÃO E A BENÇÃO

Não é preciso grande esforço intelectual para reconhecer que, em todos os tempos, há pessoas, para o bem e para o mal, mais influentes que muitos movimentos de opinião. Aqueles que nos dizem uma coisa aqui e outras acolá enquadram esse exército da inveja, o mal mais amplo de qualquer sociedade. Estão infiltrados por todo o lado. Um mal que afinal existe. Ao longo dos anos aprendi a distinguir uns de outros. Mas, mor das vezes, continuo a ser incompetente nessa tarefa.
É grande a tendência para descontextualizar situações e depois compará-las. Trata-se de erro de apreciação crasso por demais. É também enorme a propensão para deslustrar as capacidades de outrem e julgar mesmo que se tudo vai bem é porque este outrem trabalha a nadar em dinheiro. Nem lhes passa pela cabeça que as dificuldades de ontem são iguais às de hoje. É por isso que me enojam as comparações de todos os governantes em relação a quem os antecedeu. É por isso que a mentira sistemática nestas circunstâncias, quando não a ameaça, se me afigura o fel que alguns desses protagonistas beberão amanhã. Se bem que muitos, num universo de absoluto masoquismo social, nem pensem que o amanhã virá. Por via de tais e doutros exemplares cresce neste rincão, como em nenhum outro – a não ser em extremos de ímpia governança -, o número dos que creem nos amanhãs que cantam. Que é diretamente proporcional ao rol dos desencantados de toda a natureza.

Estou sempre disposto a dar a mão e a bênção a todos quantos me pareçam fugir deste padrão e, seriamente, fazem brilhar o tempo em que vivem e o analisam sem recorrerem a enviesamentos, ou  na falta de informação e longe do diálogo. Horrorizam-me os tabus e aprecio a discrição proactiva. Creio sempre ter feito jus à tolerância e a tal discrição. Até no admitir humildemente que a minha opinião possa ser solitária no cerne da multidão e possa ser aconselhável meditar um pouco mais, voltar atrás. 
Não é preciso grande esforço intelectual para reconhecer que, em todos os tempos, há pessoas, para o bem e para o mal, mais influentes que muitos movimentos de opinião. Aqueles que nos dizem uma coisa aqui e outras acolá enquadram esse exército da inveja, o mal mais amplo de qualquer sociedade. Estão infiltrados por todo o lado. Um mal que afinal existe. Ao longo dos anos aprendi a distinguir uns de outros. Mas, mor das vezes, continuo a ser incompetente nessa tarefa.
É grande a tendência para descontextualizar situações e depois compará-las. Trata-se de erro de apreciação crasso por demais. É também enorme a propensão para deslustrar as capacidades de outrem e julgar mesmo que se tudo vai bem é porque este outrem trabalha a nadar em dinheiro. Nem lhes passa pela cabeça que as dificuldades de ontem são iguais às de hoje. É por isso que me enojam as comparações de todos os governantes em relação a quem os antecedeu. É por isso que a mentira sistemática nestas circunstâncias, quando não a ameaça, se me afigura o fel que alguns desses protagonistas beberão amanhã. Se bem que muitos, num universo de absoluto masoquismo social, nem pensem que o amanhã virá. Por via de tais e doutros exemplares cresce neste rincão, como em nenhum outro – a não ser em extremos de ímpia governança -, o número dos que creem nos amanhãs que cantam. Que é diretamente proporcional ao rol dos desencantados de toda a natureza.
Estou sempre disposto a dar a mão e a bênção a todos quantos me pareçam fugir deste padrão e, seriamente, fazem brilhar o tempo em que vivem e o analisam sem recorrerem a enviesamentos, ou  na falta de informação e longe do diálogo. Horrorizam-me os tabus e aprecio a discrição proactiva. Creio sempre ter feito jus à tolerância e a tal discrição. Até no admitir humildemente que a minha opinião possa ser solitária no cerne da multidão e possa ser aconselhável meditar um pouco mais, voltar atrás. 
Maio 2014
Henrique Pinto


terça-feira, 27 de maio de 2014

ÁLVARO GOMES DISTINGUIDO NA LUTA CONTRA A PÓLIO NUM MOMENTO DE SÉRIA PREOCUPAÇÃO MUNDIAL

O meu bom amigo e companheiro em Rotary, Álvaro Gomes, membro do Rotary Club de Ovar, foi agora distinguido pelo Board de Rotary International, com uma das mais categorizadas condecorações em face do seu intenso labor no fundraising mundial para a erradicação da poliomielite. Esta saga está à beira do fim. Todavia, é graças ao esforço dedicado de pessoas como Álvaro Gomes que tem sido possível cobrir financeiramente os orçamentos anuais que facilitem também a ação dos restantes parceiros, designadamente a OMS, organismo das Nações Unidas.
Esta ação é tanto mais importante quanto o alerta recente da OMS junto dos seus Estados membros quanto à exportação de casos de doença a partir da Síria e do Afeganistão para dez outros países – a OMS tinha de informar os Estados, mesmo se isso implicasse algum alarmismo -, tem provocado as reações mais desencontradas por parte da opinião pública mundial. Sobretudo, tem imprimido grande desânimo nas hostes rotárias.
No entanto, não há razão para tal estado de alma. Todos sabemos que, cumprido o plano de financiamento previsto, a doença será suprimida do planeta o mais tardar até dezembro de 2018. Temos assim de prosseguir no esforço dentro e fora do movimento (nomeadamente junto dos governos e corporações) para cumprir este desiderato.
Por outro lado, se bem que preocupante esta passagem de fronteiras, os casos de doença importados são incomensuravelmente mais fáceis de tratar que os endémicos.
Todos sabemos ainda que circulam na internet milhares de falsas notícias e artigos infundados sobre esta e outras calamidades mundiais, autênticas cabalas difíceis de combater. Insistem sobre a SIDA, por exemplo, atribuindo-se a causa desta e doutras enfermidades, quer à ação de bruxarias ou de pessoas mal intencionadas – o antigo presidente da África do Sul, Mbecki, prestou um mau serviço ao seu país e ao mundo acreditando em tal -,ou à guerra biológica, decorrente, para não variar, da atividade da CIA ou de países ou grupos terroristas.
Obviamente que um tal fenómeno, a ser verdadeiro, provocaria sempre milhares de mortes e não umas tantas dezenas de afetados. Robert Scott, coordenador mundial da luta contra a pólio, que se reformará a 1 de Junho deste ano, teve de, com a maior tristeza e celeridade, alertar as equipas mundiais dando-lhes conta da carta de 6 de Maio, subscrita por Linda Mónaco, assistente do presidente Obama, dirigida a todos os diretores escolares dos EUA, assegurando que a CIA (Agência Central de Inteligência) «não usará programas de imunização para fins operacionais, principalmente aqueles que envolvem voluntários e trabalhadores da saúde», o que configura mais uma prova do governo quanto ao seu apoio à Iniciativa Global de Erradicação da Pólio. Esta norma enfatiza a ideia de que todas as crianças merecem ter acesso a vacinas e outras intervenções médicas quando necessário.

Esperamos que este anúncio fortaleça o suporte e a confiança das comunidades, e em particular dos rotários, relativa aos trabalhadores da saúde, que tanto fazem em prol da erradicação da paralisia infantil.
Claro que, como Conselheiro mundial para a erradicação da poliomielite 2002-2015 – com Bob Scott sou dos mais antigos -, subscrevi gostosamente a condecoração atribuída a Álvaro Gomes. Na Conferência do Distrito 1970, durante o Jantar alusivo a Paul Harris, a governadora Goreti Machado entregou-lhe a distinção em nome do presidente de RI, Ron Barton.
Continuaremos a trabalhar com os nossos parceiros na Iniciativa Global da Pólio, principalmente nos países afetados pela doença, para livrarmos o mundo deste mal, e para sempre. E para tal se espera o sofrido e continuado apoio dos membros do movimento rotário.
Parabéns companheiro Álvaro Gomes.
Maio 2014

Henrique Pinto

A ORDEM E O CAOS

Em medicina bem pode dizer-se que a tomada de algo de bom (medicamento ou alimento) é sempre passível de acarretar algo de mau. Se a máxima se pudesse generalizar (e não pode) a má política poderia sempre fazer-nos crer que a fragilidade da situação de muitas famílias (entre nós há uma imensa parte que não chegou a ser prejudicada) seria uma consequência da sua boa governança.
Pensei nisto ao visitar a exposição de Paula Rego (em conjunto com Bartolomeu Cid dos Santos, um exilado como ela, e Eduardo Batarda), na Casa das Histórias em Cascais. Chamam-lhe «1961, A Ordem e o Caos». Lembro-me bem desse ano, desses anos antes e depois. Muitos Homens e o País vogavam como náufragos, perdidos, erráticos, acefalamente mudos, abúlicos e tristemente quedos mesmo se espiritualmente inquietos. Sentimentos que emanam na obra exposta daqueles artistas relativa a esse período.
Todavia, a abulia e indiferença dos dias que correm (e que nos últimos tempos muita gente tem querido atribuir em exclusivo às políticas europeias quando poucos anos atrás a tal estado aplicaria a causalidade unicamente à gestão caseira), nada tem a ver com a privação das liberdades. Quem diria 
que a economia ultraliberal dos últimos tempos de Clinton, exacerbada por George W. Bush, centrada na desregulação do mercado, e depois a ganancia desse escol de jovens seguidores de Friedeman em Wall Street, intoxicaria tão francamente a vida, a sociedade, a economia e a política, primeiro dos EUA e logo da Europa do Estado Social? Quem estaria preparado para assistir ao advento dos novos nacionalismos, à ascensão da xenofobia em metade da Europa? Será possível continuarmos a olhar para o lado?
Maio 2014
Henrique Pinto

sexta-feira, 16 de maio de 2014

MISÉRIAS E GRANDEZAS DOS HOMENS

Uma excelente reportagem da amiga Sandra Felgueiras, a propósito duma portuguesa detida em Punta Cana, e depois absolvida (com pedido de desculpas do ministério público -, por controverso envolvimento numa tramoia de narcotraficantes, despertou-me para uma realidade bem cruel. 
Há quase 500 portugueses detidos pelo mundo (sobretudo em Espanha, Brasil e Perú) devido a tráfico de droga. As causas destas tristes situações de crime nunca são de sentido único. Impressionou-me ver a miséria por detrás de muitas delas.
Mas a TV a que normalmente pouco ligo dada a oficialização dos noticiários e a miséria humana no que se refere aos shows de entertainment dia fora, trouxe-me agora um outro dado que me emocionou. Tratou-se da inauguração do museu das Torres Gémeas em Nova Iorque. Bem lá no fundo do fosso onde se reergueu a arquitetura imponente, onde passa o metro, construiu-se um museu de preito às vítimas do atentado do terror em 2001, inaugurado pelo presidente Obama. É como que uma Ode à Paz, inspiradora.
Maio 2014
Henrique Pinto

quinta-feira, 15 de maio de 2014

OBVIAMENTE, GENERAL!


Ao ouvir uma entrevista televisiva à minha amiga Maria Inácia Rezola, a propósito do seu último livro «25 de Abril, uma revolução», acorreu-me ao pensamento a frase de Humberto Delgado sobre o ditador Oliveira Salazar, «obviamente demito-o».
O general era um dos homens mais cultivados do seu tempo, ocupando cargos e desempenhando funções da maior responsabilidade. Tinha sido um apoiante ativo do golpe de Estado militar de 1926, que abriu caminho ao Estado Novo do ditador Salazar, de quem foi um delfim predileto.
Curiosamente, deve-se-lhe o ter protagonizado a maior esperança democrática para os portugueses 16 anos antes de 25 de Abril, quando se candidatou à presidência da República em oposição à situação política então vigente. Pois a população de Cela, aldeia do concelho de Alcobaça, entendeu prestar-lhe uma importante homenagem construindo-lhe vultuoso monumento, objeto de romagem quotidiana ainda nos dias de hoje. Trata-se dum conjunto escultórico em dois blocos, em níveis diferentes do terreno, separados por perto de cem metros.
Satisfaz-me quando vejo os jovens de hoje a conhecerem o mundo, mesmo em muitas situações mais críticas de emigração, forçada pelas circunstâncias envolventes. Fico sempre esperançoso quanto aos possíveis resultados positivos para o país dessas vivências noutros contextos.
Humberto Delgado é a tal respeito um dos exemplos mais notáveis. Em 1952 foi nomeado adido militar na Embaixada de Portugal em Washington e membro do comité dos Representantes Militares da NATO. Promovido a general na sequência da realização do curso de altos comandos, passa a Chefe da Missão Militar junto da NATO. Quando voltou a Portugal foi nomeado Diretor Geral da Aeronáutica Civil.
Todavia, os cinco anos que viveu nos Estados Unidos modificaram substantivamente a sua forma de encarar a política portuguesa. Convidado por opositores ao regime de Salazar para se candidatar à Presidência da República, contra o candidato do regime, Américo Tomaz, aceita, reunindo em torno de si praticamente toda a oposição ao Estado Novo.
Existe a convicção generalizada de ter havido manipulação dos votos e daí o fato de ter perdido as eleições. Viveu a partir desse desfecho escorraçado pelo poder – que o levou ao exílio – e ostracizado pelos comunistas na diáspora, por quem nunca se deixou instrumentalizar. 
Torna-se a partir daí num herói romântico muito ativo no fomento ou patrocínio de ações importantes para mudar a política portuguesa. Por via da coragem que manifestou ao longo da campanha eleitoral e perante a repressão da polícia política – às mãos de quem foi assassinado -, ficou conhecido como o «General sem Medo». Lembro-me perfeitamente do profundo impacto que as ações policiais lograram junto da população descontente. Refiro muitas vezes este epíteto vigoroso quando saúdo publicamente o seu neto, meu bom amigo, o compositor Alexandre Delgado.
Maio de 2014
Henrique Pinto 




segunda-feira, 12 de maio de 2014

UM SALTO PARA A PÓS-MODERNIDADE

O tempo voou…

Vencida a deriva anárquica que se seguiu ao dia 25 de Abril de 1974 – mesmo assim com os mais belos momentos da minha vida num Portugal livre e democrático –, construiu-se um sistema político representativo, que, com o passar dos anos se descaraterizou pela cristalização, agrilhoado à pura defesa de interesses individuais e de grupo. Apesar do salto brilhante a todos os níveis na escolaridade e educação – um país medieval atinge o pós-modernismo -, o grau de incultura e de iliteracia é muito alto nos dias que correm. 
O 25 de Abril foi um exemplo para o mundo dado a transição pacífica de regime, absolutamente invulgar. A mudança posterior em Espanha torneou os erros cometidos aqui. Também a precipitação lusa para o atual resgate financeiro bem como o dispêndio seguido à adesão europeia, serviram de lição a muitos países, por serem caminhos ínvios e a não seguir. Na comemoração dos 40 anos desse dia luminoso de Abril o país está paupérrimo, triste como poucas vezes esteve, impotente e descrente.
Naquela noite desligámos o rádio um tudo nada antes das duas da madrugada. Não ouvimos o «Depois do Adeus» ou o Grândola …
Continuámos a estudar… Pouco passava das seis quando cheguei ao Hospital velho da universidade, galgadas as monumentais – tinha de arranjar vez para fazer umas consultas curriculares de ginecologia, a cadeira do Professor Ibérico Nogueira -, e deparei-me com a novidade e o caos. Eu, que me recusara a crer quando quatro dias antes soube do golpe iminente, exultei. Mas ninguém sabia detalhes, os doentes corriam pelas enfermarias como loucos e o pessoal dividia-se no cerne das opiniões. Lembro-me duma das doentes, com um mioma uterino, a dizer-me que lhe apetecera partir a telefonia com um sapato. E um dos meus professores no turno da noite, alguém deste distrito, quase gritava. «Eu fugia se pudesse mas não sei para onde!» dizia ele.
Ouvi Santiago Carrilho a dizer um dia a Mário Soares ignorar «o que passou pela cabeça de Cunhal para este crer que à Rússia de então interessava ter um regime satélite em Portugal». No entanto ele tudo fez para isso. O país viveu por muitos meses num frenesim. O dado por adquirido logo de manhã justificava a reedição dos jornais à tarde para novas versões. Veja-se bem quão díspar era o conhecimento dos fatos e das querelas entre os militares, a igreja, os partidos, as ocupações de terras devolutas (em nome de «a terra a quem a trabalha»), a infiltração de ministérios e associações, as manifestações de rua, os movimentos de libertação em África e em Timor a tornarem imperiosa a descolonização, as barbaridades do COPCOM de Otelo… Acima de tudo a liberdade tranquilizava como aroma de flor. Para quem vivia no medo permanente de ir para a guerra ou ter de desertar, o alívio foi substantivo. As colónias tornaram-se independentes.
Quarenta anos depois temos dificuldade em explicar aos jovens o que foi viver sob opressão e num país miserável. Há quem como eu se lamente não termos ganho um regime eleitoral aberto, como o instituído pelo liberalismo em Portugal no século XIX (com nuances, obviamente) e abolido pela República, semelhante ao que existe hoje noutros países europeus ou das américas. Um sistema ao menos impeditivo de se escolherem os piores. Quando hoje falamos do liberalismo corrente temos de ter em conta que nada tem a ver com a mesma designação do até 1910 entre nós ou com a dos EUA ainda hoje, este de cariz social democrata. O mundo mudou muito nestas quatro décadas. A globalização seria sempre imparável e sob muitos aspetos é um ganho civilizacional. Como a ignorância podia ter sido minorada. Esta última fase do capitalismo ou do liberalismo duros no mundo, é mais selvagem do que alguma vez foi. Aqui rasga literalmente o tecido social. Mina os alicerces da democracia.
O desvio do presente – mesmo assim com antecedentes a justificarem-no -, será sempre mais difícil de vencer que os de 74-75. Temos tantas incertezas quantas as havidas na madrugada desse longínquo Abril. Mas a adversidade nunca calou a esperança. «Havemos de ir a Viana», como cantaria Amália. Sendo incontornável que, neste mundo e nesta Europa, ou noutra sem o ascendente alemão, 25 de Abril é a efeméride portuguesa mais significativa dos últimos cinco séculos, pela natureza, forma e resultados no que respeita a aspetos dos mais básicos da nossa existência. E como tal exige ser celebrada sempre com regozijo e reflexão.
No final dos anos setenta, nos tempos de Londres, jantava no East End em casa dum amigo, jornalista do «The Sun» a trabalhar em Portugal a 25 de Abril - depois ficou meses, apaixonado -, quando um dos convivas alvitrou, «estavas no país mais livre do mundo nessa altura». É verdade, sinto-o como tal ainda hoje, irrepetível e belo, sem ódios, o povo desconhecido a entrar pelo écran da televisão única, ofegante, mal vestido e pobre, democracia representativa por excelência, mesmo se nos limites da anarquia.
A 21 de Abril de 74, ao fim do dia, cheguei a Coimbra, escaldavam-me os lábios com a certeza e a mente com a dúvida. Ponderada força e credibilidade da informação com os companheiros de casa, a perturbação espiritual manteve-se por mais três dias. Amigo do peito bem informado dissera-me no Café Brisa, em Cascais, à hora da bica, «é nesta semana pá!». Confirmou o estar por dentro de Abril ainda há uns dias na TV. Durante anos os setores políticos olharam-me com o maior respeito, «o gajo sabia!». Mas então como é possível que Marcelo Caetano supostamente o ignorasse, já que a sua polícia política – ossatura dum dos regimes mais opressivos de sempre, prendeu gente na tarde de 26 em Coimbra e fez três mortos em Lisboa -, o desprezou por inteiro? Vê-se na angústia dos últimos escritos, suas convicções nunca foram as da democracia mas tinha a noção clara da queda a prazo do regime, o mundo estava contra nós, como aconteceu.
E se de tão importante que foi esse respirar livremente, não tardaria a haver constrangimentos, os menores dos quais não terão sido o enquadramento dos cidadãos por fações não interpenetráveis em que, infelizmente, os partidos degeneraram, como previra Chomsky, tal e qual o filme de ficção Divergentes ora em voga, marcou de forma perene e indelével a vida da juventude que tal ar sorveu.
Na tolerância quanto aos disparates há sempre a ter em conta consoante os ditos provenham de gente pouco literata ou se um bocadinho culta, de pessoas do centro ou das extremidades do pensamento político, de indivíduos encostados ou não a uma opinião padronizada. É vulgar «sentir-se o ferrete» nos tímpanos quando se ouvem elucubrações laudatórias ao regime político anterior à democracia, por oposição ao presente, mesmo nos media. Efetivamente, para além do respeito pelas crenças de cada um, próprio da democracia viva, perdura a tendência atávica, histórica e nostálgica, muito generalizada mesmo entre os supostamente cultos, de afirmarem o seu tempo como o pior de todas as épocas. Mas tal asserção é apenas um constructo sem fundamento.
Com essa madrugada luminosa o país mudou como da noite para o dia. Leiria acompanhou essa transformação positiva.
Se Portugal como país só ocasionalmente foi muito mais rico do que hoje o é, e se voltou a ter um novo ciclo emigratório, ainda a decorrer, como tantos outros, está efetivamente muito melhor sob quase todos os aspetos que há 40 anos.
Então ninguém conhecia o que se passava país fora. A informação era minimalista. A censura política eliminava as mais insignificantes ousadias da palavra, mesmo se simbólica. Se até as mensagens de Natal dos soldados em África, como «adeus minha mãe, estou bem, até ao meu regresso», vi serem às vezes sujeitas ao implacável lápis azul!
Quando se pensa no estatuto da mulher, menorizada até esse Abril já longe, mesmo quem como eu viveu esse tempo consciente dele tem momentos de basbaque. As mulheres dependiam em tudo, administrativamente, da palavra do marido. Sair do país sozinhas estava-lhes vedado. Votar só alguma letrada e proprietária o podia fazer. As hospedeiras do ar e as enfermeiras não podiam casar…
Quando eu vim para Leiria – o distrito tinha já um significativo empreendedorismo económico -, passei a ser o 23º médico no velho Hospital D. Manuel de Aguiar, gerido pelo meu bom e saudoso amigo padre Pires.
Sem haver aconselhamento pré-natal digno do nome, quantos partos, deixada a hora para a última dor, não ocorriam quando a ambulância, trepidante, galgava os carris na passagem de nível da Barosa!? A instituição servia à altura uma população bem superior à que hoje depende das modernas estruturas clínicas da cidade. Agora há mais de meio milhar de colegas meus nos serviços hospitalares públicos e privados de Leiria burgo. 
A mortalidade infantil – um dos indicadores universais mais seguros de qualidade de vida e de bem estar - rasava os trinta mortos com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos, no distrito. Superava os 40 no concelho da Nazaré ainda que as mulheres locais não quisessem fazer o parto noutro local. No distrito de Vila Real ia para além dos 75 por mil. E no entanto o distrito de Leiria, graças à sua economia e vigilância proactiva em saúde pública, foi o primeiro do país a atingir os valores de líder mundial neste indicador. A Lepra, doença endémica caraterística ainda hoje das regiões mais miseráveis do planeta, mesmo a da fase lepromatosa como só vi depois em África ou em Katmandu, grassava no centro do país e particularmente neste distrito. Tal como na idade média, em que a Leirena capital chegou a ter uma leprosaria. Foi doença neutralizada no final dos anos noventa. 
E a cólera, enfermidade com o mesmo estigma de atraso, pouca higiene e fraca organização sanitária, deu no concelho de Leiria, já em 1975 – como eu vi -, o seu último e rude golpe.
Eu tenho a cultura como estando a montante de todas as práticas humanas. Daí o olhar para as suas oscilações como um símbolo. 
A emergência novecentista do associativismo cultural e desportivo ultrapassa os interesses individuais e coletivos. Na cidade do Lis existiram muitas associões desde 1860 a ao princípio da segunda metade do culo XX, aquando do aparecimento da televisão em Portugal. Das onze associações criadas em Leiria nesse período 
subsistem hoje três: Associação de Futebol de Leiria; Orfeão de Leiria Conservatório de Artes (1946) e Ateneu Desportivo de Leiria (1947).
O Ateneu trouxe uma nova componente para a sociedade leiriense, uma maior abertura liberal e de envolvimento de alguns estratos mais populares. Era a nova filosofia oficial para o desporto. Na vertente cultural foi também por demais importante aparecer uma organização a produzir cultura, enquadrando as camadas populares urbanas, que não destoasse do regime e se mostrasse acarinhada por ele, de aparente transversalidade política. Conquanto que permanecessem intocáveis os princípios do Estado Novo. Talvez por isto houve um leque curioso de gente nas primeiras direções e o «povo urban cantava, com a genuína dedicação de eminentes personalidades que transmitiram genuína qualidade e construíram elos de promoção inusitados. Estes objetivos suportaram o Orfeão de Leiria. Uma instituição que se agigantou depois de Abril e cresceu superlativamente nos últimos trinta anos. A ponto de ser hoje uma das mais importantes e ecléticas instituições culturais dum Portugal pós-moderno, tanto no ensino como na arte, imagem de marca de Leiria.

Henrique Pinto