segunda-feira, 12 de maio de 2014

UM SALTO PARA A PÓS-MODERNIDADE

O tempo voou…

Vencida a deriva anárquica que se seguiu ao dia 25 de Abril de 1974 – mesmo assim com os mais belos momentos da minha vida num Portugal livre e democrático –, construiu-se um sistema político representativo, que, com o passar dos anos se descaraterizou pela cristalização, agrilhoado à pura defesa de interesses individuais e de grupo. Apesar do salto brilhante a todos os níveis na escolaridade e educação – um país medieval atinge o pós-modernismo -, o grau de incultura e de iliteracia é muito alto nos dias que correm. 
O 25 de Abril foi um exemplo para o mundo dado a transição pacífica de regime, absolutamente invulgar. A mudança posterior em Espanha torneou os erros cometidos aqui. Também a precipitação lusa para o atual resgate financeiro bem como o dispêndio seguido à adesão europeia, serviram de lição a muitos países, por serem caminhos ínvios e a não seguir. Na comemoração dos 40 anos desse dia luminoso de Abril o país está paupérrimo, triste como poucas vezes esteve, impotente e descrente.
Naquela noite desligámos o rádio um tudo nada antes das duas da madrugada. Não ouvimos o «Depois do Adeus» ou o Grândola …
Continuámos a estudar… Pouco passava das seis quando cheguei ao Hospital velho da universidade, galgadas as monumentais – tinha de arranjar vez para fazer umas consultas curriculares de ginecologia, a cadeira do Professor Ibérico Nogueira -, e deparei-me com a novidade e o caos. Eu, que me recusara a crer quando quatro dias antes soube do golpe iminente, exultei. Mas ninguém sabia detalhes, os doentes corriam pelas enfermarias como loucos e o pessoal dividia-se no cerne das opiniões. Lembro-me duma das doentes, com um mioma uterino, a dizer-me que lhe apetecera partir a telefonia com um sapato. E um dos meus professores no turno da noite, alguém deste distrito, quase gritava. «Eu fugia se pudesse mas não sei para onde!» dizia ele.
Ouvi Santiago Carrilho a dizer um dia a Mário Soares ignorar «o que passou pela cabeça de Cunhal para este crer que à Rússia de então interessava ter um regime satélite em Portugal». No entanto ele tudo fez para isso. O país viveu por muitos meses num frenesim. O dado por adquirido logo de manhã justificava a reedição dos jornais à tarde para novas versões. Veja-se bem quão díspar era o conhecimento dos fatos e das querelas entre os militares, a igreja, os partidos, as ocupações de terras devolutas (em nome de «a terra a quem a trabalha»), a infiltração de ministérios e associações, as manifestações de rua, os movimentos de libertação em África e em Timor a tornarem imperiosa a descolonização, as barbaridades do COPCOM de Otelo… Acima de tudo a liberdade tranquilizava como aroma de flor. Para quem vivia no medo permanente de ir para a guerra ou ter de desertar, o alívio foi substantivo. As colónias tornaram-se independentes.
Quarenta anos depois temos dificuldade em explicar aos jovens o que foi viver sob opressão e num país miserável. Há quem como eu se lamente não termos ganho um regime eleitoral aberto, como o instituído pelo liberalismo em Portugal no século XIX (com nuances, obviamente) e abolido pela República, semelhante ao que existe hoje noutros países europeus ou das américas. Um sistema ao menos impeditivo de se escolherem os piores. Quando hoje falamos do liberalismo corrente temos de ter em conta que nada tem a ver com a mesma designação do até 1910 entre nós ou com a dos EUA ainda hoje, este de cariz social democrata. O mundo mudou muito nestas quatro décadas. A globalização seria sempre imparável e sob muitos aspetos é um ganho civilizacional. Como a ignorância podia ter sido minorada. Esta última fase do capitalismo ou do liberalismo duros no mundo, é mais selvagem do que alguma vez foi. Aqui rasga literalmente o tecido social. Mina os alicerces da democracia.
O desvio do presente – mesmo assim com antecedentes a justificarem-no -, será sempre mais difícil de vencer que os de 74-75. Temos tantas incertezas quantas as havidas na madrugada desse longínquo Abril. Mas a adversidade nunca calou a esperança. «Havemos de ir a Viana», como cantaria Amália. Sendo incontornável que, neste mundo e nesta Europa, ou noutra sem o ascendente alemão, 25 de Abril é a efeméride portuguesa mais significativa dos últimos cinco séculos, pela natureza, forma e resultados no que respeita a aspetos dos mais básicos da nossa existência. E como tal exige ser celebrada sempre com regozijo e reflexão.
No final dos anos setenta, nos tempos de Londres, jantava no East End em casa dum amigo, jornalista do «The Sun» a trabalhar em Portugal a 25 de Abril - depois ficou meses, apaixonado -, quando um dos convivas alvitrou, «estavas no país mais livre do mundo nessa altura». É verdade, sinto-o como tal ainda hoje, irrepetível e belo, sem ódios, o povo desconhecido a entrar pelo écran da televisão única, ofegante, mal vestido e pobre, democracia representativa por excelência, mesmo se nos limites da anarquia.
A 21 de Abril de 74, ao fim do dia, cheguei a Coimbra, escaldavam-me os lábios com a certeza e a mente com a dúvida. Ponderada força e credibilidade da informação com os companheiros de casa, a perturbação espiritual manteve-se por mais três dias. Amigo do peito bem informado dissera-me no Café Brisa, em Cascais, à hora da bica, «é nesta semana pá!». Confirmou o estar por dentro de Abril ainda há uns dias na TV. Durante anos os setores políticos olharam-me com o maior respeito, «o gajo sabia!». Mas então como é possível que Marcelo Caetano supostamente o ignorasse, já que a sua polícia política – ossatura dum dos regimes mais opressivos de sempre, prendeu gente na tarde de 26 em Coimbra e fez três mortos em Lisboa -, o desprezou por inteiro? Vê-se na angústia dos últimos escritos, suas convicções nunca foram as da democracia mas tinha a noção clara da queda a prazo do regime, o mundo estava contra nós, como aconteceu.
E se de tão importante que foi esse respirar livremente, não tardaria a haver constrangimentos, os menores dos quais não terão sido o enquadramento dos cidadãos por fações não interpenetráveis em que, infelizmente, os partidos degeneraram, como previra Chomsky, tal e qual o filme de ficção Divergentes ora em voga, marcou de forma perene e indelével a vida da juventude que tal ar sorveu.
Na tolerância quanto aos disparates há sempre a ter em conta consoante os ditos provenham de gente pouco literata ou se um bocadinho culta, de pessoas do centro ou das extremidades do pensamento político, de indivíduos encostados ou não a uma opinião padronizada. É vulgar «sentir-se o ferrete» nos tímpanos quando se ouvem elucubrações laudatórias ao regime político anterior à democracia, por oposição ao presente, mesmo nos media. Efetivamente, para além do respeito pelas crenças de cada um, próprio da democracia viva, perdura a tendência atávica, histórica e nostálgica, muito generalizada mesmo entre os supostamente cultos, de afirmarem o seu tempo como o pior de todas as épocas. Mas tal asserção é apenas um constructo sem fundamento.
Com essa madrugada luminosa o país mudou como da noite para o dia. Leiria acompanhou essa transformação positiva.
Se Portugal como país só ocasionalmente foi muito mais rico do que hoje o é, e se voltou a ter um novo ciclo emigratório, ainda a decorrer, como tantos outros, está efetivamente muito melhor sob quase todos os aspetos que há 40 anos.
Então ninguém conhecia o que se passava país fora. A informação era minimalista. A censura política eliminava as mais insignificantes ousadias da palavra, mesmo se simbólica. Se até as mensagens de Natal dos soldados em África, como «adeus minha mãe, estou bem, até ao meu regresso», vi serem às vezes sujeitas ao implacável lápis azul!
Quando se pensa no estatuto da mulher, menorizada até esse Abril já longe, mesmo quem como eu viveu esse tempo consciente dele tem momentos de basbaque. As mulheres dependiam em tudo, administrativamente, da palavra do marido. Sair do país sozinhas estava-lhes vedado. Votar só alguma letrada e proprietária o podia fazer. As hospedeiras do ar e as enfermeiras não podiam casar…
Quando eu vim para Leiria – o distrito tinha já um significativo empreendedorismo económico -, passei a ser o 23º médico no velho Hospital D. Manuel de Aguiar, gerido pelo meu bom e saudoso amigo padre Pires.
Sem haver aconselhamento pré-natal digno do nome, quantos partos, deixada a hora para a última dor, não ocorriam quando a ambulância, trepidante, galgava os carris na passagem de nível da Barosa!? A instituição servia à altura uma população bem superior à que hoje depende das modernas estruturas clínicas da cidade. Agora há mais de meio milhar de colegas meus nos serviços hospitalares públicos e privados de Leiria burgo. 
A mortalidade infantil – um dos indicadores universais mais seguros de qualidade de vida e de bem estar - rasava os trinta mortos com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos, no distrito. Superava os 40 no concelho da Nazaré ainda que as mulheres locais não quisessem fazer o parto noutro local. No distrito de Vila Real ia para além dos 75 por mil. E no entanto o distrito de Leiria, graças à sua economia e vigilância proactiva em saúde pública, foi o primeiro do país a atingir os valores de líder mundial neste indicador. A Lepra, doença endémica caraterística ainda hoje das regiões mais miseráveis do planeta, mesmo a da fase lepromatosa como só vi depois em África ou em Katmandu, grassava no centro do país e particularmente neste distrito. Tal como na idade média, em que a Leirena capital chegou a ter uma leprosaria. Foi doença neutralizada no final dos anos noventa. 
E a cólera, enfermidade com o mesmo estigma de atraso, pouca higiene e fraca organização sanitária, deu no concelho de Leiria, já em 1975 – como eu vi -, o seu último e rude golpe.
Eu tenho a cultura como estando a montante de todas as práticas humanas. Daí o olhar para as suas oscilações como um símbolo. 
A emergência novecentista do associativismo cultural e desportivo ultrapassa os interesses individuais e coletivos. Na cidade do Lis existiram muitas associões desde 1860 a ao princípio da segunda metade do culo XX, aquando do aparecimento da televisão em Portugal. Das onze associações criadas em Leiria nesse período 
subsistem hoje três: Associação de Futebol de Leiria; Orfeão de Leiria Conservatório de Artes (1946) e Ateneu Desportivo de Leiria (1947).
O Ateneu trouxe uma nova componente para a sociedade leiriense, uma maior abertura liberal e de envolvimento de alguns estratos mais populares. Era a nova filosofia oficial para o desporto. Na vertente cultural foi também por demais importante aparecer uma organização a produzir cultura, enquadrando as camadas populares urbanas, que não destoasse do regime e se mostrasse acarinhada por ele, de aparente transversalidade política. Conquanto que permanecessem intocáveis os princípios do Estado Novo. Talvez por isto houve um leque curioso de gente nas primeiras direções e o «povo urban cantava, com a genuína dedicação de eminentes personalidades que transmitiram genuína qualidade e construíram elos de promoção inusitados. Estes objetivos suportaram o Orfeão de Leiria. Uma instituição que se agigantou depois de Abril e cresceu superlativamente nos últimos trinta anos. A ponto de ser hoje uma das mais importantes e ecléticas instituições culturais dum Portugal pós-moderno, tanto no ensino como na arte, imagem de marca de Leiria.

Henrique Pinto

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