quarta-feira, 25 de junho de 2014

O CASO TUSKEGEE, ABORDAGEM ÉTICA

Introdução 
A análise do ponto de vista ético da Caso Tuskegee, conhecido em 1972, escândalo sobre um estudo absurdo, nos EUA até então secreto, afigura-se fascinante. Esta história tenebrosa envolveu 400 pessoas de raça negra portadoras de sífilis, que deixaram de ser tratadas com o objetivo de ser observada «a evolução natural da doença». E isto apesar de já haver tratamentos eficazes para a sífilis desde 1943, com a descoberta da Penicilina. Impõe-se-me ao expô-la que faça o meu próprio enquadramento teórico da tríade ética, moral e deontologia, e uma breve resenha histórico-concetual.
Ética e Moral 
As ideias Ética e Moral na linguagem comum aparecem muitas vezes fundidas. Todavia, no contexto filosófico, estes conceitos ganham significados diferentes. Os termos possuem origem etimológica bem distinta. A ética (vinda do termo grego «ethos», que significa «modo de ser» ou «caráter»), aparece associada ao estudo fundamentado dos valores morais que orientam o comportamento humano em sociedade. A moral (com origem na palavra latina «morales», a significar «respeitante aos costumes»), engloba os costumes, regras, tabus e convenções estabelecidas por cada sociedade. Ética é assim um conjunto de conhecimentos extraídos da investigação do comportamento humano no intuito de explicar as regras morais de forma racional, enquadradas nas asserções científicas e teóricas. Pode dizer-se ser uma reflexão sobre a moral. Esta é o acervo de normas aplicadas no quotidiano e usadas continuadamente por cada cidadão. Essas normas ou regras orientam cada indivíduo, norteando as suas ações e os seus julgamentos sobre o que é moral ou imoral, certo ou errado, bom ou mau.
No sentido prático, no senso comum, a finalidade da ética e da moral é bem semelhante. São ambas responsáveis pela construção das bases que vão guiar a conduta do homem, determinando o seu caráter, altruísmo e virtudes, e por ensinar a melhor forma de agir e de se comportar em sociedade.
Também é verdade que, diferindo concetualmente da moral, como vimos, a ética não deixou de sofrer influências morais, designadamente bíblicas, como por exemplo de Os dez mandamentos, ou o Decálogo, de Moisés, do Antigo Testamento.
As abordagens à ética, desde A Ética a Nicómaco, de Aristóteles, centrada nos princípios básicos da Justiça (legal ou igualitária, distributiva) e da amizade, têm-se enriquecido ao longo dos tempos, com os notáveis contributos de Stuart Mill e Kant e de vários outros pensadores já do século passado.
Sendo que o primeiro destes (1724-1804) assentava as suas opções nos princípios do dever de respeitar a Lei moral (categórico) e na Boa vontade de cumprir o Dever moral, Mill (1806-1873) apontava para o «Greatest happiness Principle» (o grande princípio da felicidade). Em 1803 o inglês Tomas Percival apresentou um Código de Ética Médica que teve imenso sucesso. É com base nesse texto que a Associação Médica Americana apresenta quarenta anos mais tarde as suas bases éticas para o exercício da clínica. Aqui, os fundamentos da ética médica (e mais tarde da Bioética), assentam sobre quatro pilares: autonomia; beneficência; não maleficência e Privacidade.
Quanto à Autonomia reconhece-se aos doentes o  deverem ter capacidade e o estarem cientes para aceitarem os procedimentos e atitudes médicas. O princípio da Beneficência defende o agir em benefício dos outros, o não causar o mal do doente ou a obrigação de maximizar-lhe os benefícios possíveis. A Não Maleficência, o princípio do não ferir alguém através do «modus operandi» da profissão médica ou a obrigação de não infligir dano intencional, aquando do tratamento, foi por demais tratada por Hipócrates (cerca de 430 anos ac). É esse o sentido da célebre citação Primum non nocere (o princípio do não ferir) que lhe é atribuída. No seu livro Epidemia diz claramente «Pratique duas coisas ao lidar com as doenças; auxilie ou não prejudique o paciente»
O Juramento de Hipócrates, hoje universalmente institucionalizado para na habilitação prática da generalidade dos médicos, insere obrigações de Não Maleficência e Beneficência. Quanto ao Princípio da Privacidade dele se infere o imperativo da limitação do acesso à informação respeitante a uma dada pessoa, do acesso à pessoa e à sua intimidade. São comummente admitidas exceções como por exemplo  nas Doenças de Internamento Compulsivo, nos maus tratos em crianças e adolescentes, no abuso de cônjuges ou idosos ou quanto a ferimentos, nomeadamente por armas de fogo.
Prova Quádrupla
Uma das declarações relacionadas com a ética profissional mais conhecida mundialmente é a Prova Quádrupla de Rotary International. A prova foi criada pelo rotário Herbert J. Taylor em 1932, quando assumiu a direção de uma empresa de Chicago, a Club Aluminium Company, com o objetivo de salva-la da falência. Ele escreveu um código de ética para ser obedecido por todos os empregados da empresa. As perguntas da Prova Quádrupla devem ser do conhecimento hodierno de todos os membros da organização, e por eles obedecidas.  Mas é compreensivelmente extensível a toda a prática dos homens, et pour cause, no âmbito da saúde.  
Vejamos. Daquilo que nós pensamos, dizemos ou fazemos: É a Verdade?; É Justo para todos os interessados? Criará Boa Vontade e Melhores Amizades? Será Benéfico para todos os interessados?
Os dez princípios das Nações Unidas, consubstanciados em várias convenções como A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais (1998), a Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente (1992) e a Convenção da ONU contra a Corrupção (2009), introduziram normas éticas respeitantes aos direitos do homem e da criança, ao mundo do trabalho, ao meio ambiente e no combate à corrupção.
O acelerado desenvolvimento científico e tecnológico tem-se confrontado com ausência de políticas públicas eficazes, a deterioração dos serviços de saúde, relações de trabalho inadequadas e deficiências do ensino médico. E cada vez mais é necessário, tanto nas práticas de saúde, da prevenção ao tratamento, como na investigação, essencial ao progresso destas, buscar nos princípios intemporais da ética e nas suas visões mais recentes, a inspiração para boas práticas e resultados que tenham em conta o domínio alargado dos Direitos do Homem.
É assim que, no concernente à investigação em saúde, e ao direito a um tratamento justo e equitativo dirigido ao investigado, em todos os instantes, deve consubstanciar-se na prática toda a trajetória concetual da ética, a saber: Dignidade; Privacidade; Beneficência; Justiça; Legalidade; Não maleficência; Cientificidade; Autonomia; Verdade; Boa vontade
Deontologia
Deontologia é um conceito que integra a filosofia moral contemporânea, significando ciência do dever e da obrigação. Trata-se, pois, dum tratado dos deveres e da moral. É um vasto campo teórico e prático, pragmático mesmo, sobre as escolhas dos indivíduos, ou o que é moralmente necessário e útil para orientar o que realmente deve ser feito.
O termo Deontologia foi criado no ano de 1834 pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, para falar sobre o ramo da ética em que o objeto de estudo é o fundamento do dever e das normas. Com o decorrer do tempo a generalidade das profissões liberais adotou esta «Teoria do Dever», conjunto de princípios e regras de conduta ou deveres de uma determinada profissão, ou seja, a assunção que cada profissão dever ter a sua deontologia própria para regular o seu exercício, e de acordo com o Código de Ética de sua categoria, ou seja o seu próprio Código Deontológico.
Já Kant dera o seu contributo para a Deontologia, uma vez que a dividiu em dois conceitos: razão prática e liberdade. Para este pensador, agir por dever é a maneira de dar à ação o seu valor moral; e por sua vez, a perfeição moral só pode ser atingida por uma livre vontade.
Mesmo que o Código de Nuremberga, em 1948, tratasse já das investigações biomédicas em seres humanos, foi nos anos 60 que se tomou consciência do fato dessas mesmas investigações
biomédicas colocarem uma nova e imensa quantidade de problemas. Obstáculos que deveriam ser observados adequadamente à luz da ética em qualquer sociedade democrática.
Em 1972 André Hellegers cria o Instituto Kennedy de Bioética, na Universidade Georgetown, em Washington, EUA, tornando-se esta a primeira instituição acadêmica a recorrer à nova terminologia.
Perante o escândalo Tuskegee o Congresso Americano criou a «Comissão Nacional para Proteção dos Seres Humanos no Campo das Ciências Biomédicas e do Comportamento». Em 1978, essa mesma Comissão publicou o «Informe Belmont», estabelecendo diretrizes para a proteção dos seres humanos sujeitos de experimentações em Biomedicina, baseadas em três princípios essenciais da ética: autonomia, beneficência e justiça.
O escândalo Tuskegee 
Na segunda década e nos anos 20 do século passado a sífilis era endémica em vastas regiões dos EUA. Ao tratamento muito longo, à base de bismuto e mercúrio, exigindo pelo menos umas 20 consultas por ano quando o cidadão vulgar tinha dificuldade em pagar cinco dólares que fossem apenas por uma, atribuíam-se efeitos tóxicos e baixos índices de cura. Ainda muito antes do crash económico de 1929 o governo dos EUA, sem um serviço de saúde estruturado e já aliviado da pressão das necessidades de recursos humanos saudáveis para a guerra na Europa, retira todos os fundos federais para o tratamento das doenças venéreas. O governo, confrontado com a endemia persistente e a carestia de meios financeiros, na sequência do crash, recorreu anos mais tarde ao mecenato da Fundação Rosenwald para acorrer ao tratamento dos doentes com sífilis. Mas este mesmo fundo viria anos depois a retirar-se deste apoio alegando razões económicas idênticas.
É então que os médicos Talaferro e Vondelehr decidem continuar a acompanhar a evolução dos homens que não tinham sido tratados para a sífilis, mas sem tratamento, em regime que, se não observados os princípios da ética médica conhecidos à altura, consubstanciava grave ofensa a tais princípios.
Eugenismo
É premente realçar que por estes anos do caso Tuskegee o eugenismo era pensamento dominante entre a classe médica, desde os EUA a Inglaterra e à Alemanha, aqui ganhando contornos sinistros e também mais divulgados. Na verdade, desde finais do século XIX até ao estertor da segunda guerra mundial, este ideário teve uma posição intelectual  hegemónica, com versões diversas, abrangendo praticamente a totalidade do espectro político. O eugenismo é a doutrina que defende uma melhoria qualitativa, biológica, «natural», da população. Os mecanismos podem ser «positivos», pelo fomento da reprodução dos «mais aptos», ou negativos, pela incapacitação dos «menos aptos» para se reproduzirem. Os seus antecedentes são, em geral, todas as especulações pseudocientíficas da desigualdade humana, que justificam as pessoas conforme o que convenha ao conjunto social ou ao Estado.
A violação de todos os princípios éticos, deontológicos e morais
Ao não serem informados os doentes que se estava então a proceder a um estudo e não ao tratamento da enfermidade, para além da fraude, eventualmente passível de ser catalogada como ação dolosa, punham-se em causa os princípios éticos da Autonomia, da Dignidade, da Verdade, da Justiça, da Legalidade, da Beneficência e da Utilidade, além de estar longe de se criarem Boas vontades.
As populações alvo eram francamente débeis do ponto de vista económico e de literacia, aceitavam o suposto tratamento em troca dum prato de comida mais que tentador. Para que a adesão dos investigados fosse ainda mais favorável, o administrador do projeto Tuskegee, Motin, terá mesmo concordado com a sua continuidade na condição de ele integrar profissionais negros (à altura ainda imperava a segregação racial, inclusivamente com Faculdades por raça). O fim último desta condição exigida seria reforçar as possibilidades de empatia com os sujeitos estudados, onde preponderavam os negros. Uma dessas profissionais terá mesmo conseguido uma adesão das famílias, até 1952, para serem feitas quase 100% das autópsias.
Atente-se que nesta altura, não apenas existia tratamento para a sífilis, desde 1945, como já eram conhecidos, pela imprensa e pelo impacto a todos os níveis dos Julgamentos de Nuremberga (de novembro de 1945 a outubro de 1946) sobre o nazismo e as atrocidades da experimentação médica forçada nos campos de extermínio. Também os EUA, recuperados financeiramente da crise de 1929, materializavam em 1948 o Plano Marshall de ajuda financeira à recuperação da Europa no pós- guerra. Nada justificava financeiramente uma situação penosa como a deste «estudo».
E mais, mesmo sem estarem ainda instituídas Comissões de ética para a investigação médica (embora o assunto fosse já alvo de artigos científicos), que pudessem autorizar ou vetar o «estudo», foi possível saber-se que logo nas primeiras intervenções invasivas o grosso dos doentes se recusou a aceitá-las (foi feita apenas uma punção lombar em 20 anos), o que deveria ter sido suficiente, sem descontextualizar o conhecimento, para, ética e cientificamente, impedir a prossecução do «estudo».
É fácil concluir que os sujeitos «observados», para mais pessoas vulneráveis, foram submetidos a danos seguramente previstos, logo evitáveis. Em 1947 todos os sujeitos de experimentação «continuavam sem receber tratamento por decisão formal do grupo de pesquisadores». É de crer que estes mesmos sujeitos não tenham recebido a mais ínfima informação sobre os riscos e eventuais benefícios neste processo.
Estão pois em causa outros tantos princípios da ética, designadamente o da Cientificidade (ausência de qualquer prática de rigor, inutilidade absoluta do «estudo», com resultados muito duvidosos do “follow up” e admissíveis falsas conclusões), da Não maleficência (existem «feridas» de vária natureza, física e espiritual), da Dignidade (o ultraje do prato de comida e do funeral pago), da Justiça, da Utilidade e da verdade (inclusive com o recurso à falsa empatia para garantir pelo embuste o “compliance” com um estudo fraudulento), e tanto mais quanto a doença era passível de cura em boa parte desse período e os serviços de saúde pública americanos dispunham de unidades próprias para tratamento desde o final dos anos vinte.
Investigação baseada na evidência e na ética
A partir do momento em que qualquer investigação inclua o ser humano como «objeto» de estudo, seja um ensaio clínico ou um estudo de natureza epidemiológica, ela carece de ser previamente exposta ao Parecer das Comissões de Ética específicas. Há passos fundamentais a serem observados neste caminho, designadamente:
- Uma declaração quanto ao tipo de estudo a empreender
- Uma explicação dos propósitos da pesquisa, mormente quanto à duração esperada da participação do sujeito na mesma
- Uma descrição exaustiva de riscos e constrangimentos razoavelmente previsíveis
- Uma descrição dos benefícios para os sujeitos de previsibilidade dentro do razoável.
- Uma declaração quanto ao anonimato e confidencialidade e dando conta de a participação ser absolutamente voluntária.
Juntando conhecimentos adquiridos da informática aplicada à medicina e da investigação epidemiológica, a medicina baseada na evidência tem como objetivo major o doente. Assim, na análise do conhecimento emergente, previamente ao seu uso terapêutico, à medicina baseada na evidências importam os ensaios clínicos, aleatórios, com o recurso a grupos de casos de controlo e a amostras de tamanho adequado, estatisticamente de comprovada validade interna e externa. Tal como tem de ser clara a validade clínica. As variáveis de «outcome» têm de ser isentas de qualquer ambiguidade. Quando os ensaios clínicos apresentam conclusões não coerentes, à medicina baseada na evidência impõe-se  o socorrer-se da revisão sistemática, a metanálise, que é tratada com as técnicas próprias da estatística. O recurso a tais instrumentos de investigação confere maior objetividade, caráter deontológico e ética à utilização na clínica dos tratamentos estudados. É uma norma incontornável das sociedades pós-modernas.
Henrique Pinto

Junho 2014

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