Introdução
A análise do ponto de vista ético da Caso
Tuskegee, conhecido em 1972, escândalo sobre um estudo absurdo, nos EUA até
então secreto, afigura-se fascinante. Esta história tenebrosa envolveu 400
pessoas de raça negra portadoras de sífilis, que deixaram de ser tratadas com o
objetivo de ser observada «a evolução natural da doença». E isto apesar de já
haver tratamentos eficazes para a sífilis desde 1943, com a descoberta da
Penicilina. Impõe-se-me ao expô-la que faça o meu próprio
enquadramento teórico da tríade ética, moral e deontologia, e uma breve resenha
histórico-concetual.
Ética e Moral
As ideias Ética e Moral na linguagem comum aparecem muitas vezes fundidas.
Todavia, no contexto filosófico, estes conceitos ganham significados diferentes. Os termos possuem origem
etimológica bem distinta. A ética (vinda do termo grego «ethos», que significa
«modo de ser» ou «caráter»), aparece associada ao estudo fundamentado dos
valores morais que orientam o comportamento humano em sociedade. A moral (com
origem na palavra latina «morales», a significar «respeitante aos costumes»), engloba os costumes,
regras, tabus e convenções estabelecidas por cada sociedade. Ética é assim um conjunto
de conhecimentos extraídos da investigação do comportamento humano no intuito
de explicar as regras morais de forma racional, enquadradas nas asserções
científicas e teóricas. Pode dizer-se ser uma reflexão sobre a moral. Esta é o acervo de normas
aplicadas no quotidiano e usadas continuadamente por cada cidadão. Essas normas
ou regras orientam cada indivíduo, norteando as suas ações e os seus
julgamentos sobre o que é moral ou imoral, certo ou errado, bom ou mau.
No sentido prático, no senso comum, a finalidade da ética e da moral é bem
semelhante. São ambas responsáveis pela construção das bases que vão guiar a
conduta do homem, determinando o seu caráter, altruísmo e virtudes, e por
ensinar a melhor forma de agir e de se comportar em sociedade.
Também é verdade que, diferindo concetualmente da moral, como vimos, a
ética não deixou de sofrer influências morais, designadamente bíblicas, como
por exemplo de Os dez mandamentos, ou o Decálogo, de Moisés, do Antigo
Testamento.
As abordagens à ética, desde A Ética a Nicómaco, de Aristóteles, centrada
nos princípios básicos da Justiça (legal ou igualitária, distributiva) e da
amizade, têm-se enriquecido ao longo dos tempos, com os notáveis contributos de
Stuart Mill e Kant e de vários outros pensadores já do século passado.
Sendo que o primeiro destes (1724-1804) assentava as suas opções nos
princípios do dever de respeitar a Lei moral (categórico) e na Boa vontade de
cumprir o Dever moral, Mill (1806-1873) apontava para o «Greatest happiness
Principle» (o grande princípio da felicidade). Em 1803 o inglês Tomas Percival
apresentou um Código de Ética Médica que teve imenso sucesso. É com base nesse
texto que a Associação Médica Americana apresenta quarenta anos mais tarde as
suas bases éticas para o exercício da clínica. Aqui, os fundamentos da ética
médica (e mais tarde da Bioética), assentam sobre quatro pilares: autonomia;
beneficência; não maleficência e Privacidade.
Quanto à Autonomia reconhece-se aos doentes o deverem ter capacidade e o estarem cientes
para aceitarem os procedimentos e atitudes médicas. O princípio da Beneficência
defende o agir em benefício dos outros, o não causar o mal do doente ou a
obrigação de maximizar-lhe os benefícios possíveis. A Não Maleficência, o
princípio do não ferir alguém através do «modus
operandi» da profissão médica ou a obrigação de não infligir dano
intencional, aquando do tratamento, foi por demais tratada por Hipócrates
(cerca de 430 anos ac). É esse o sentido da célebre citação Primum non nocere (o princípio do não
ferir) que lhe é atribuída. No seu livro Epidemia diz
claramente «Pratique duas coisas ao lidar com as doenças; auxilie ou não
prejudique o paciente».
O Juramento de Hipócrates, hoje universalmente institucionalizado
para na habilitação prática da generalidade dos médicos, insere obrigações de
Não Maleficência e Beneficência. Quanto ao Princípio da Privacidade dele se
infere o imperativo da limitação do acesso à informação respeitante a uma dada
pessoa, do acesso à pessoa e à sua intimidade. São comummente admitidas
exceções como por exemplo nas Doenças de
Internamento Compulsivo, nos maus tratos em crianças e adolescentes, no abuso
de cônjuges ou idosos ou quanto a ferimentos, nomeadamente por armas de fogo.
Prova Quádrupla
Uma das declarações relacionadas com a ética
profissional mais conhecida mundialmente é a Prova Quádrupla de Rotary
International. A prova foi criada pelo rotário Herbert J. Taylor em 1932,
quando assumiu a direção de uma empresa de Chicago, a Club Aluminium Company,
com o objetivo de salva-la da falência. Ele escreveu um código de ética
para ser obedecido por todos os empregados da empresa. As perguntas da
Prova Quádrupla devem ser do conhecimento hodierno de todos os membros da organização,
e por eles obedecidas. Mas é compreensivelmente extensível a toda a
prática dos homens, et pour cause, no
âmbito da saúde.
Vejamos. Daquilo que nós pensamos,
dizemos ou fazemos: É a Verdade?; É Justo para todos os interessados?
Criará Boa Vontade e Melhores Amizades? Será Benéfico para todos os
interessados?
Os dez princípios das Nações Unidas, consubstanciados em várias
convenções como A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a
Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais (1998), a Declaração
do Rio sobre o Meio Ambiente (1992) e a Convenção da ONU contra a Corrupção
(2009), introduziram normas éticas respeitantes aos direitos do homem e da
criança, ao mundo do trabalho, ao meio ambiente e no combate à corrupção.
O acelerado desenvolvimento científico e tecnológico tem-se confrontado
com ausência de políticas públicas eficazes, a deterioração dos serviços de
saúde, relações de trabalho inadequadas e deficiências do ensino médico. E cada
vez mais é necessário, tanto nas práticas de saúde, da prevenção ao tratamento,
como na investigação, essencial ao progresso destas, buscar nos princípios
intemporais da ética e nas suas visões mais recentes, a inspiração para boas
práticas e resultados que tenham em conta o domínio alargado dos Direitos do
Homem.
É assim que, no concernente à investigação em saúde, e ao direito a um
tratamento justo e equitativo dirigido ao investigado, em todos os instantes,
deve consubstanciar-se na prática toda a trajetória concetual da ética, a
saber: Dignidade; Privacidade; Beneficência; Justiça; Legalidade; Não
maleficência; Cientificidade; Autonomia; Verdade; Boa vontade
Deontologia
Deontologia é um conceito que integra a filosofia moral contemporânea,
significando ciência do dever e da
obrigação. Trata-se, pois, dum
tratado dos deveres e da moral. É um vasto campo teórico e prático,
pragmático mesmo, sobre as escolhas dos indivíduos, ou o que é moralmente
necessário e útil para orientar o que realmente deve ser feito.
O termo Deontologia foi criado no ano de 1834 pelo filósofo inglês Jeremy
Bentham, para falar sobre o ramo da ética em que o objeto de estudo é o
fundamento do dever e das normas. Com o decorrer do tempo a generalidade das profissões
liberais adotou esta «Teoria do Dever», conjunto de princípios e regras de
conduta ou deveres de uma determinada profissão, ou seja, a assunção que cada
profissão dever ter a sua deontologia própria para regular o seu exercício, e
de acordo com o Código de Ética de sua categoria, ou seja o seu próprio Código
Deontológico.
Já Kant dera o seu contributo para a Deontologia, uma vez que a dividiu em
dois conceitos: razão prática e liberdade. Para este pensador, agir por dever é
a maneira de dar à ação o seu valor moral; e por sua vez, a perfeição moral só
pode ser atingida por uma livre vontade.
Mesmo que o Código de Nuremberga, em
1948, tratasse já das investigações biomédicas em seres humanos, foi nos anos
60 que se tomou consciência do fato dessas mesmas investigações
biomédicas colocarem uma nova e imensa quantidade
de problemas. Obstáculos que deveriam ser observados adequadamente à luz da
ética em qualquer sociedade democrática.
Em 1972 André Hellegers cria o Instituto
Kennedy de Bioética, na Universidade Georgetown, em Washington, EUA, tornando-se
esta a primeira instituição acadêmica a recorrer à nova terminologia.
Perante o escândalo Tuskegee o Congresso Americano criou a «Comissão
Nacional para Proteção dos Seres Humanos no Campo das Ciências Biomédicas e do
Comportamento». Em 1978, essa mesma Comissão publicou o «Informe Belmont»,
estabelecendo diretrizes para a proteção dos seres humanos sujeitos de
experimentações em Biomedicina, baseadas em três princípios essenciais da ética:
autonomia, beneficência e justiça.
O escândalo Tuskegee
Na segunda década e nos anos 20 do
século passado a sífilis era endémica em vastas regiões dos EUA. Ao tratamento
muito longo, à base de bismuto e mercúrio, exigindo pelo menos umas 20
consultas por ano quando o cidadão vulgar tinha dificuldade em pagar cinco
dólares que fossem apenas por uma, atribuíam-se efeitos tóxicos e baixos
índices de cura. Ainda muito antes do crash
económico de 1929 o governo dos EUA, sem um serviço de saúde estruturado e
já aliviado da pressão das necessidades de recursos humanos saudáveis para a
guerra na Europa, retira todos os fundos federais para o tratamento das doenças
venéreas. O governo, confrontado com a endemia persistente e a carestia de
meios financeiros, na sequência do crash,
recorreu anos mais tarde ao mecenato da Fundação Rosenwald para acorrer ao
tratamento dos doentes com sífilis. Mas este mesmo fundo viria anos depois a
retirar-se deste apoio alegando razões económicas idênticas.
É então que os médicos Talaferro e
Vondelehr decidem continuar a acompanhar a evolução dos homens que não tinham
sido tratados para a sífilis, mas sem tratamento, em regime que, se não observados
os princípios da ética médica conhecidos à altura, consubstanciava grave ofensa
a tais princípios.
Eugenismo
É premente realçar que por estes anos do caso Tuskegee o eugenismo era pensamento dominante
entre a classe médica, desde os EUA a Inglaterra e à Alemanha, aqui ganhando
contornos sinistros e também mais divulgados. Na verdade, desde finais do
século XIX até ao estertor da segunda guerra mundial, este ideário teve uma
posição intelectual hegemónica, com
versões diversas, abrangendo praticamente a totalidade do espectro político. O
eugenismo é a doutrina que defende uma melhoria qualitativa, biológica,
«natural», da população. Os mecanismos podem ser «positivos», pelo fomento da
reprodução dos «mais aptos», ou negativos, pela incapacitação dos «menos aptos»
para se reproduzirem. Os seus antecedentes são, em geral, todas as especulações
pseudocientíficas da desigualdade humana, que justificam as pessoas conforme o
que convenha ao conjunto social ou ao Estado.
A
violação de todos os princípios éticos, deontológicos e morais
Ao não serem informados os doentes que
se estava então a proceder a um estudo e não ao tratamento da enfermidade, para
além da fraude, eventualmente passível de ser catalogada como ação dolosa,
punham-se em causa os princípios éticos da Autonomia, da Dignidade, da Verdade,
da Justiça, da Legalidade, da Beneficência e da Utilidade, além de estar longe
de se criarem Boas vontades.
As populações alvo eram francamente
débeis do ponto de vista económico e de literacia, aceitavam o suposto
tratamento em troca dum prato de comida mais que tentador. Para que a adesão
dos investigados fosse ainda mais favorável, o administrador do projeto Tuskegee,
Motin, terá mesmo concordado com a sua continuidade na condição de ele integrar
profissionais negros (à altura ainda imperava a segregação racial,
inclusivamente com Faculdades por raça). O fim último desta condição exigida seria
reforçar as possibilidades de empatia com os sujeitos estudados, onde
preponderavam os negros. Uma dessas profissionais terá mesmo conseguido uma
adesão das famílias, até 1952, para serem feitas quase 100% das autópsias.
Atente-se que nesta altura, não apenas
existia tratamento para a sífilis, desde 1945, como já eram conhecidos, pela
imprensa e pelo impacto a todos os níveis dos Julgamentos de Nuremberga (de
novembro de 1945 a outubro de 1946) sobre o nazismo e as atrocidades da
experimentação médica forçada nos campos de extermínio. Também os EUA,
recuperados financeiramente da crise de 1929, materializavam em 1948 o Plano
Marshall de ajuda financeira à recuperação da Europa no pós- guerra. Nada
justificava financeiramente uma situação penosa como a deste «estudo».
E mais, mesmo sem estarem ainda
instituídas Comissões de ética para a investigação médica (embora o assunto
fosse já alvo de artigos científicos), que pudessem autorizar ou vetar o
«estudo», foi possível saber-se que logo nas primeiras intervenções invasivas o
grosso dos doentes se recusou a aceitá-las (foi feita apenas uma punção lombar
em 20 anos), o que deveria ter sido suficiente, sem descontextualizar o
conhecimento, para, ética e cientificamente, impedir a prossecução do «estudo».
É fácil concluir que os sujeitos
«observados», para mais pessoas vulneráveis, foram submetidos a danos
seguramente previstos, logo evitáveis. Em 1947 todos os sujeitos de
experimentação «continuavam sem receber tratamento por decisão formal do grupo
de pesquisadores». É de crer que estes mesmos sujeitos não tenham recebido a
mais ínfima informação sobre os riscos e eventuais benefícios neste processo.
Estão pois em causa outros tantos
princípios da ética, designadamente o da Cientificidade (ausência de qualquer
prática de rigor, inutilidade absoluta do «estudo», com resultados muito
duvidosos do “follow up” e admissíveis falsas conclusões), da Não maleficência
(existem «feridas» de vária natureza, física e espiritual), da Dignidade (o
ultraje do prato de comida e do funeral pago), da Justiça, da Utilidade e da
verdade (inclusive com o recurso à falsa empatia para garantir pelo embuste o
“compliance” com um estudo fraudulento), e tanto mais quanto a doença era
passível de cura em boa parte desse período e os serviços de saúde pública americanos
dispunham de unidades próprias para tratamento desde o final dos anos vinte.
Investigação baseada na evidência e na
ética
A partir do momento em que qualquer
investigação inclua o ser humano como «objeto» de estudo, seja um ensaio
clínico ou um estudo de natureza epidemiológica, ela carece de ser previamente exposta
ao Parecer das Comissões de Ética específicas. Há passos fundamentais a serem
observados neste caminho, designadamente:
- Uma declaração quanto ao tipo de
estudo a empreender
- Uma explicação dos propósitos da
pesquisa, mormente quanto à duração esperada da participação do sujeito na mesma
- Uma descrição exaustiva de riscos e
constrangimentos razoavelmente previsíveis
- Uma descrição dos benefícios para os
sujeitos de previsibilidade dentro do razoável.
- Uma declaração quanto ao anonimato e
confidencialidade e dando conta de a participação ser absolutamente voluntária.
Juntando conhecimentos adquiridos da informática aplicada à
medicina e da investigação epidemiológica, a medicina baseada na evidência tem
como objetivo major o doente. Assim,
na análise do conhecimento emergente, previamente ao seu uso terapêutico, à
medicina baseada na evidências importam os ensaios clínicos, aleatórios, com o
recurso a grupos de casos de controlo e a amostras de tamanho adequado, estatisticamente
de comprovada validade interna e externa. Tal como tem de ser clara a validade
clínica. As variáveis de «outcome» têm de ser isentas de qualquer ambiguidade.
Quando os ensaios clínicos apresentam conclusões não coerentes, à medicina
baseada na evidência impõe-se o socorrer-se
da revisão sistemática, a metanálise, que é tratada com as técnicas próprias da
estatística. O recurso a tais instrumentos de investigação confere maior
objetividade, caráter deontológico e ética à utilização na clínica dos
tratamentos estudados. É uma norma incontornável das sociedades pós-modernas.
Henrique Pinto
Junho 2014
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