sábado, 7 de março de 2015

ASCENDENTE FÁLICO OU DA ROBUSTEZ DO PEITO, ENGENHEIROS E VARREDORES DE RUA

«Bom dia senhor professor», disse-lhe ao entrar no seu consultório. É uma das mais brilhantes mentes da medicina portuguesa e internacional. «Não sou professor», respondeu-me seco e de rompante. Temos homem, pensei, outros de ínfimo gabarito teriam rejubilado com a deferência educada. Mas o erro era meu. Li depois uma sua biografia onde explica o porquê do seu envolvimento máximo na clínica em desfavor duma carreira eminentemente académica. Todavia, esse rumo parecia-me quase impossível.
Semelhante exemplo de reserva moral e intelectual não encaixa no léxico quotidiano da maioria dos portugueses das últimas décadas. Qualquer personagem licenciado (e alguns nem tanto) em todo o espetro de cursos universitários (chegaram a ser 850 até há pouco) é tratado por doutor. Enquanto, desde sempre e ainda hoje, no mundo em geral, é ao médico que sempre coube tal tratamento, e, em menor extensão, ao juiz de direito.
No entanto, quantas vezes se vai do 8 ao 80 numa fervura? Está a pegar uma nova moda cujos contornos ainda não precisei com exaustão. Certos diretores de recursos humanos (alguns dos quais indicariam o caminho da prateleira ou da rua a quem lhes chamasse Senhor Silva), ordenam que todos os clientes sejam tratados por igual e sem referências a graus académicos. Nada tenho a opor a tal comportamento. Em Rotary, onde me envolvo há décadas, o relacionamento assenta nessa base, estou habituado e gosto.
Todavia, julgo que tais gestores de recursos não deveriam quedar-se por semelhante superficialidade nas suas recomendações. É imperioso, obviamente, que seja melhorado o nível de educação e do bom trato a quem atende clientes. Porquanto levará tempo a conseguir-se tal melhoria em vastos setores populacionais. E como se sabe têm mais impacto os bons exemplos, e sobretudo os de quem serve a comunidade seja qual for o lugar, que os muitos estudos dos visados por tais atendedores.
Claro está, se a regra pode ser bem intencionada, mesmo se incompleta, independentemente de quem a ordena ou pratica, quanto menos rigor houver na formação do pessoal, maiores são as distorções práticas. Vejamos, se na Segurança Social ou nos bancos, nas operadoras telefónicas ou até nos hospitais, não houver recursos apropriados para permitirem haver várias pessoas encarregues duma mesma área de atendimento, o resultado será rubricas como «pagamentos» e que tais originarem longas esperas ao invés das doutras matérias. As pessoas devem ser atendidas tanto quanto possível por ordem de chegada, matéria fora das possibilidades destes serviços mal adequados.
Atente-se nesta historieta, uma pessoa reclama por já lhe terem passado a perna uns dez ou mais utilizadores da mesma loja, chegados depois. E a colaboradora – é usual descrever-se «vestida por Dior e com sapatos Prada», salto de dez centímetros, coisa que nenhum gestor ou médico do trabalho deveria tolerar, ninguém pode induzir a doença de outrem mesmo se, por ignorância, este o queira -, depois de sem o dizer de forma explicita na peroração para «negar o mau serviço» da entidade que serve, o «patrão», praticamente ter chamado de estúpida à cliente, remata com veemência, «Senhora Silva, eu atendo da mesma forma o engenheiro ou o varredor da rua».
Noutras circunstâncias, tratar alguém pelo nome próprio quando durante décadas essa 
pessoa mereceu ali mesmo uma deferência especial, tem um significado ainda mais aberrante, desrespeitoso. Imagine-se alguém que, para além da graduação académica cumprimentada universalmente com o tal «doutor», exerceu determinados poderes que ora já não são seu apanágio. Passa a ser, face à formação daquele «funcionário»,  tão somente o «Senhor Silva», não apenas para cumprir com zelo as instruções do seu «superior», mas por ter polidez limitada ou por «querer mostrar» a quem teve o azar de ser atendido por si, que de fato já não tem poder algum. Tais distorções são frequentes, em bancos e hospitais, por exemplo, e não tenho a menor dúvida ao interpretá-las.
O total incumprimento do Código da Estrada (o passa primeiro quem mais acelera), fazendo absoluta tábua rasa da legislação mais moderna, radica muito neste ascendente fálico ou da robustez do peito (qualquer psicanalista vo-lo dirá), enquadrável na explanação anterior.
Março 2015

Henrique Pinto
NB: Fotos L; Quadro meu do autor Dinis Marques

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