«Bom dia senhor professor»,
disse-lhe ao entrar no seu consultório. É uma das mais brilhantes mentes da
medicina portuguesa e internacional. «Não sou professor», respondeu-me seco e de
rompante. Temos homem, pensei, outros de ínfimo gabarito teriam rejubilado com a
deferência educada. Mas o erro era meu. Li depois uma sua biografia onde
explica o porquê do seu envolvimento máximo na clínica em desfavor duma
carreira eminentemente académica. Todavia, esse rumo parecia-me quase
impossível.
Semelhante exemplo de
reserva moral e intelectual não encaixa no léxico quotidiano da maioria dos
portugueses das últimas décadas. Qualquer personagem licenciado (e alguns nem
tanto) em todo o espetro de cursos universitários (chegaram a ser 850 até há
pouco) é tratado por doutor. Enquanto, desde sempre e ainda hoje, no mundo em
geral, é ao médico que sempre coube tal tratamento, e, em menor extensão, ao juiz
de direito.
No entanto, quantas vezes
se vai do 8 ao 80 numa fervura? Está a pegar uma nova moda cujos contornos
ainda não precisei com exaustão. Certos diretores de recursos humanos (alguns
dos quais indicariam o caminho da prateleira ou da rua a quem lhes chamasse
Senhor Silva), ordenam que todos os clientes sejam tratados por igual e sem
referências a graus académicos. Nada tenho a opor a tal comportamento. Em
Rotary, onde me envolvo há décadas, o relacionamento assenta nessa base, estou
habituado e gosto.
Todavia, julgo que tais
gestores de recursos não deveriam quedar-se por semelhante superficialidade nas
suas recomendações. É imperioso, obviamente, que seja melhorado o nível de
educação e do bom trato a quem atende clientes. Porquanto levará tempo a
conseguir-se tal melhoria em vastos setores populacionais. E como se sabe têm mais
impacto os bons exemplos, e sobretudo os de quem serve a comunidade seja qual
for o lugar, que os muitos estudos dos visados por tais atendedores.
Claro está, se a regra
pode ser bem intencionada, mesmo se incompleta, independentemente de quem a
ordena ou pratica, quanto menos rigor houver na formação do pessoal, maiores
são as distorções práticas. Vejamos, se na Segurança Social ou nos bancos, nas
operadoras telefónicas ou até nos hospitais, não houver recursos apropriados
para permitirem haver várias pessoas encarregues duma mesma área de atendimento,
o resultado será rubricas como «pagamentos» e que tais originarem longas
esperas ao invés das doutras matérias. As pessoas devem ser atendidas tanto
quanto possível por ordem de chegada, matéria fora das possibilidades destes
serviços mal adequados.
Atente-se nesta historieta,
uma pessoa reclama por já lhe terem passado a perna uns dez ou mais
utilizadores da mesma loja, chegados depois. E a colaboradora – é usual
descrever-se «vestida por Dior e com sapatos Prada», salto de dez centímetros,
coisa que nenhum gestor ou médico do trabalho deveria tolerar, ninguém pode
induzir a doença de outrem mesmo se, por ignorância, este o queira -, depois de
sem o dizer de forma explicita na peroração para «negar o mau serviço» da
entidade que serve, o «patrão», praticamente ter chamado de estúpida à cliente,
remata com veemência, «Senhora Silva, eu atendo da mesma forma o engenheiro ou
o varredor da rua».
Noutras circunstâncias,
tratar alguém pelo nome próprio quando durante décadas essa
pessoa mereceu ali
mesmo uma deferência especial, tem um significado ainda mais aberrante,
desrespeitoso. Imagine-se alguém que, para além da graduação académica cumprimentada
universalmente com o tal «doutor», exerceu determinados poderes que ora já não
são seu apanágio. Passa a ser, face à formação daquele «funcionário», tão somente o «Senhor Silva», não apenas para cumprir
com zelo as instruções do seu «superior», mas por ter polidez limitada ou por «querer
mostrar» a quem teve o azar de ser atendido por si, que de fato já não tem
poder algum. Tais distorções são frequentes, em bancos e hospitais, por exemplo,
e não tenho a menor dúvida ao interpretá-las.
O total incumprimento do
Código da Estrada (o passa primeiro quem mais acelera), fazendo absoluta tábua
rasa da legislação mais moderna, radica muito neste ascendente fálico ou da robustez
do peito (qualquer psicanalista vo-lo dirá), enquadrável na explanação
anterior.
Março 2015
Henrique Pinto
NB: Fotos L; Quadro meu do autor Dinis Marques
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