quinta-feira, 19 de março de 2015

FALSAS «TÁBUAS DA LEI»

Em quase todos os dias dos últimos muitos anos ouço dizerem-me, agora com ironia, mais logo com despeito, noutras vezes por coisa nenhuma, «passou por mim e não me disse nada…» Brincando com o fraco ouvido também me chega o «nem atendes os meus telefonemas». Já não se pode ser míope, surdo ou distraído, meus caros!
Em ocasiões aparentemente intelectualizadas a argumentação difere. «Como você disse», ou «ao contrário do por si afirmado», a «realidade é outra». Ó pessoal, costumo retorquir, eu não disse nem afirmei nada disso… Mas fico a pensar, terei ofendido alguém com a minha palavra? Enganei-me? Tenho até o hábito de pedir opinião sobre o assunto. Não por me sentir inseguro. Pergunto por muito prezar o rigor, tanto como o respeito pelo Outro.
Pois vou contar-vos uma historieta. Construo um texto onde tudo é ficção sobre realidades e entidades bem diversas, como se o problema fosse único e localizado. É um texto sobre a crueldade do nosso quotidiano. Não obstante, ninguém poderá sentir-se melindrado de qualquer forma.
Suponhamos, havia uma passadeira de peões erroneamente disposta no terreno, provavelmente até concordante em relação à legislação, em Portugal patética por natureza. Claro, ouve-se muito, «temos as melhores leis». Porém, neste campo, tudo se faz para facilitar a vida aos condutores. Raramente se pensa no interesse do cidadão apeado. «Então eu, transeunte a caminhar pelos meus pés, é que tenho de dar uma volta ao quarteirão para atravessar a estrada?», poderá desabafar um destes indivíduos. Outros, conhecedores, queixar-se-ão: «Ora nem as bermas isolam o cidadão da própria estrada daqui até à passadeira, como em França, em Inglaterra, na Alemanha».
Imagine-se, no tocante a esta zebra, travessia de estrada colocada depois duma lomba, logo dificilmente visível, e por sinal numa via de tráfego intenso de todo o tipo de veículos, ocorriam mais duma dezena de atropelamentos num só ano. Se os responsáveis públicos, durante um biénio, ignoram as queixas sobre tais eventos graves, a responsabilidade dos danos cabe só aos peões, quantas vezes irresponsáveis no uso de tais equipamentos sociais? Ou recai somente sobre os automobilistas, com razões sérias para, por vezes, não lograrem visibilidade? Dirá apenas respeito às autarquias que, vezes sem conta insensíveis às realidades, preferem fazer bonitinhos ao invés de encontrarem soluções? Ou é culpa estrita da legislação patética onde por vezes se refugiam acriticamente?
Pois é, «então o senhor doutor acredita que, entre as várias causas possíveis do estado de coma de alguém, uma delas possa residir num acidente antigo, quiçá nestas travessas de branco listadas em que um suposto coágulo encapsulou?» Meus caros, não só acredito como equaciono sempre esta hipótese. «Mas se tal acontece de quem é a culpa, doutor?». Boa pergunta, não é!?
Agora imagine-se que dois quilómetros para a frente ou um quilómetro à direita duma «ratoeira» como esta, há cidadãos incomodados (muitos deles a ponto de não lograrem dormir com sossego), porquanto legislação igualmente patética permite a determinados ramos comerciais fazerem todo o tipo de ruído noite dentro? Sucedem-se os protestos. Nuns lugares Estado e Cidadãos entendem-se usando a inteligência. Conciliam-se os interesses de moradores e lojistas, por exemplo. Noutros, fincando-se, «tecnicamente» 
na suposta exatidão das falsas «Tábuas de Moisés», onde se dá primazia às medições do ruído sem ter em conta os falsos positivos ou negativos suscitados por uma tal medição de frequências sobre a voz, o cidadão queixoso é espezinhado como se fora uma barata.
Senhores técnicos acríticos, por favor atentai nas experiências similares vividas nas cidades inglesas nos anos sessenta. Nesta matéria é muitíssimo mais fácil dirimir entre causas e efeitos. O rol de patologias advindas de tal negligência legal é bem extenso. Qualquer dia o grau de literacia para a cidadania permitirá também aos portugueses assacar culpas a quem por ora se sente confortavelmente tolerante.
Henrique Pinto
Médico especialista

Março 2015

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