Em quase todos os dias dos
últimos muitos anos ouço dizerem-me, agora com ironia, mais logo com despeito, noutras
vezes por coisa nenhuma, «passou por mim e não me disse nada…» Brincando com o
fraco ouvido também me chega o «nem atendes os meus telefonemas». Já não se
pode ser míope, surdo ou distraído, meus caros!
Em ocasiões aparentemente intelectualizadas
a argumentação difere. «Como você disse», ou «ao contrário do por si afirmado»,
a «realidade é outra». Ó pessoal, costumo retorquir, eu não disse nem afirmei
nada disso… Mas fico a pensar, terei ofendido alguém com a minha palavra? Enganei-me?
Tenho até o hábito de pedir opinião sobre o assunto. Não por me sentir
inseguro. Pergunto por muito prezar o rigor, tanto como o respeito pelo Outro.
Pois vou contar-vos uma
historieta. Construo um texto onde tudo é ficção sobre realidades e entidades
bem diversas, como se o problema fosse único e localizado. É um texto sobre a
crueldade do nosso quotidiano. Não obstante, ninguém poderá sentir-se
melindrado de qualquer forma.
Suponhamos, havia uma
passadeira de peões erroneamente disposta no terreno, provavelmente até
concordante em relação à legislação, em Portugal patética por natureza. Claro,
ouve-se muito, «temos as melhores leis». Porém, neste campo, tudo se faz para
facilitar a vida aos condutores. Raramente se pensa no interesse do cidadão
apeado. «Então eu, transeunte a caminhar pelos meus pés, é que tenho de dar uma
volta ao quarteirão para atravessar a estrada?», poderá desabafar um destes
indivíduos. Outros, conhecedores, queixar-se-ão: «Ora nem as bermas isolam o
cidadão da própria estrada daqui até à passadeira, como em França, em
Inglaterra, na Alemanha».
Imagine-se, no tocante a esta
zebra, travessia de estrada colocada depois duma lomba, logo dificilmente
visível, e por sinal numa via de tráfego intenso de todo o tipo de veículos, ocorriam
mais duma dezena de atropelamentos num só ano. Se os responsáveis públicos,
durante um biénio, ignoram as queixas sobre tais eventos graves, a responsabilidade
dos danos cabe só aos peões, quantas vezes irresponsáveis no uso de tais
equipamentos sociais? Ou recai somente sobre os automobilistas, com razões
sérias para, por vezes, não lograrem visibilidade? Dirá apenas respeito às
autarquias que, vezes sem conta insensíveis às realidades, preferem fazer
bonitinhos ao invés de encontrarem soluções? Ou é culpa estrita da legislação
patética onde por vezes se refugiam acriticamente?
Pois é, «então o senhor
doutor acredita que, entre as várias causas possíveis do estado de coma de
alguém, uma delas possa residir num acidente antigo, quiçá nestas travessas de branco
listadas em que um suposto coágulo encapsulou?» Meus caros, não só acredito
como equaciono sempre esta hipótese. «Mas se tal acontece de quem é a culpa,
doutor?». Boa pergunta, não é!?
Agora imagine-se que dois
quilómetros para a frente ou um quilómetro à direita duma «ratoeira» como esta,
há cidadãos incomodados (muitos deles a ponto de não lograrem dormir com
sossego), porquanto legislação igualmente patética permite a determinados ramos
comerciais fazerem todo o tipo de ruído noite dentro? Sucedem-se os protestos.
Nuns lugares Estado e Cidadãos entendem-se usando a inteligência. Conciliam-se
os interesses de moradores e lojistas, por exemplo. Noutros, fincando-se, «tecnicamente»
na suposta exatidão das falsas «Tábuas de Moisés», onde se dá primazia às
medições do ruído sem ter em conta os falsos positivos ou negativos suscitados
por uma tal medição de frequências sobre a voz, o cidadão queixoso é
espezinhado como se fora uma barata.
Senhores técnicos
acríticos, por favor atentai nas experiências similares vividas nas cidades
inglesas nos anos sessenta. Nesta matéria é muitíssimo mais fácil dirimir entre
causas e efeitos. O rol de patologias advindas de tal negligência legal é bem
extenso. Qualquer dia o grau de literacia para a cidadania permitirá também aos
portugueses assacar culpas a quem por ora se sente confortavelmente tolerante.
Henrique Pinto
Médico especialista
Março 2015
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