Sacrifício
(1)
Em todo o longo período a usufruir do inigualável deleite de
presidir à direção da casa Orfeão foi necessário superar dificuldades de toda a
ordem.
Tenho a convicção plena, sem imodéstia, que a minha persistência, este
espírito de levar todos os empenhos até ao fim, que herdei dos meus saudosos
pais – espírito esse que às vezes rasou o sacrifício, pessoal e dos meus familiares
diretos, e de disponibilidade pessoal, familiar e profissional -, foi por
demais relevante neste processo.
Essa convicção sempre me disse que, ao contrário da regra, aqui «a
Obra não morre com o seu Criador», por via da sua saída de cena. Daí toda a
dedicação e tempo postos ao serviço da mudança.
A Obra foi feita sem interrupções e é sustentável.
Portanto, decorrente do compromisso pessoal há muito tempo
assumido, muito honrado e superlativamente orgulhoso do que ajudei a construir,
feliz por ter tido a colaboração de pessoas maravilhosas, sem qualquer pena ou
constrangimento, com a consciência tranquila de neste posto bem ter servido a
instituição, a causa da cultura, a comunidade e o país, cessei as funções
inerentes a este cargo de presidente da direção. Um posto que, mercê do
trabalho visível operado, se tornou tão prestigiante.
Com Rotary International habituei-me a prazos rigorosos para
servir e passar o testemunho, com um grau de envolvimento igual do primeiro ao
último dia. Feita a longa transição da presidência, com o meu total empenho, e
exatamente como se fazem as transições das chefias a algum nível nas grandes
organizações internacionais, e, entre nós, particularmente na Fundação Calouste
Gulbenkian, o OLCA segue agora o seu rumo com outra direção, que é excelente.
Por isso mesmo, pode haver saudade, que se mitiga em continuar a
apoiar no que se puder, mas, seguramente, não haverá dor.
Os deputados
(2)
Passados todos estes anos temos hoje entre mãos um grande projeto
da cultura nacional. Quando há meses fui recebido pelo senhor Secretário de
Estado da Educação Básica e Secundária, Dr. João Grancho, a sua assessora para
a área da música disse a dada altura, «as minhas mais gratas recordações neste
ministério ligam-se ao Orfeão de Leiria».
Fiquei aturdido, não me lembrava
dela. Mas a Dra. Beatriz explicou, «eu
integrava a equipa do Dr. Joaquim de Azevedo (que depois foi secretário de
Estado da Educação), no GETAP, com o professor Borges Coelho, aquando da
oficialização do ensino da música e depois quando da construção da escola do
orfeão». Até me afluíram as lágrimas aos olhos.
Os senhores deputados do
PSD que me conseguiram a entrevista, o
Dr. Pedro Pimpão e a Dra. Laura Esperança que gentilmente me acompanharam (o
Dr. Paulo Baptista também ajudou mas não pôde, à última hora, estar comigo
e com o Dr. João Maricato, nosso ilustre advogado), todos aqui presentes,
ficaram como eu muito sensibilizados.
Portanto, o desenvolvimento deste projeto nacional, que todo o
país cultural conhece, e que só neste período de 30 anos foi várias vezes
premiada no mundo (Festival de Música) e foi reconhecido com três medalhas de
Mérito Cultural outorgadas por governos de diferentes opções políticas, com a
homenagem e o reconhecimento formal unânime da Assembleia da República
(proposta pelo então deputado do PSD, o amigo Dr. João Poças Santos, das pessoas que mais nos ajudou), e pela
atribuição da Ordem de Mérito do Infante D. Henrique, pelo senhor Presidente da
República,
assentou numa tríade de objetivos proposta por mim na primeiríssima
reunião de trabalho na casa em Janeiro de 1983. Esta tríade de vetores
cumprir-se-ia por inteiro. Viria afinal a ser decalcada por vários sociólogos,
a ser recomendada pelo Observatório das
Atividades Culturais aquando dos planos para a cultura encomendados pelas
Câmaras Municipais de Cascais e do Porto (de maiorias eleitorais diferentes à
altura), e isto vinte anos depois de a termos posto em prática aqui em Leiria.
O sociólogo Professor Doutor Augusto
Santos Silva (meu bom amigo, antigo ministro da Educação e também da
Cultura, que aqui esteve por várias vezes), apontou-a como «a política a seguir
para as autarquias de média dimensão em Portugal no século XXI».
Liderança e
Criação (3)
Atingimos à altura da minha abdicação da presidência do OLCA o que
a mais moderna sociologia empresarial chama de «Tipping point leadership».
Atingiu-se uma situação, que já fora mais abrangente quando as AEC
e o Programa Zero Cinco estiveram na crista da onda e nos aproximámos dos 5 mil
alunos, mas que coloca ainda assim a casa no topo das Escolas artísticas
portuguesas (somatório de todos os alunos).
A terceira fase do desenvolvimento
cultural (se transpusermos o conceito sociológico das autarquias para as
empresas culturais), é o da criação. E de facto o OLCA avançou para um nível de
produção criativa muito alto. A ganhar ainda mais alunos fora dos
subvencionados pelo Estado, a produzir ofertas de produtos educativos, a erguer
a bandeira do Coro do Orfeão com
qualidade, este patamar de excelência implicaria sempre uma liderança bastante
atreita e motivada para a Inovação estratégica, com maior frescura, tolerante
perante tudo o que é novo, e capaz de preservar o passado e o que se construiu
e se mantém atual.
Na tríade de vetores já referida estava a construção do edifício
sede (e outros equipamentos), acabado dez anos depois de ter sido inaugurado
pelo senhor Presidente da República Dr. Jorge Sampaio. Entre a conceção e a
Abertura oficial mediaram outros dez anos, qual informe tarefa bíblica de Job
em casa de Labão, por mor dum amor não menos singular. A participação dos 3
secretários de Estado que acompanharam o senhor Presidente da República nesse
dia luminoso, bem como a dos três senhores deputados ao Parlamento que haviam
sido os secretários de Estado chave para o apoio a esta saga, no governo
anterior, nomeadamente o meu bom amigo Dr. Castro Almeida, ilustram bem o
interesse e respeito público logrados.
Institucionalizar o Ensino Artístico da Música no Orfeão de Leiria
– uma saga empolgante –, fez também aflorar o que de melhor há nas pessoas onde
quer que elas estejam. O GETAP do Ministério da Educação, com pessoas
maravilhosas (algumas das quais já referi), mas também o então ministro Couto
dos Santos, que optou pela nossa candidatura em vez doutras, significaram algo
de extraordinário. Devemos à professora Ana Barbosa, a canseira infinda e a
paixão com que nos ajudou nesta fase e depois no início da escola oficial,
enquanto primeira diretora pedagógica. A oficialização da dança foi um processo
bem mais fácil, já alicerçado no prestígio entretanto conquistado, mas dirimido
com perícia com a ajuda incontornável da professora Ana Manzoni.
O Festival Música em Leiria foi esse Deus ex machina que, de par com o coro do Orfeão progressivamente
em melhoria substantiva, de Guy Stoffel a João Branco, nos abriu outro mundo.
Fernanda Cidrais, Carlos de Pontes Leça e Miguel Sobral Cid, foram os diretores
artísticos obreiros do sucesso como evento artístico de alto nível. Mas o
carinho continuado da Fundação Calouste Gulbenkian (e, seguramente, do Dr. Rui
Vilar), ou mesmo o facto de a casa ter sido aceite na Associação Europeia de
Escolas de Música, permitiram-nos trazer a Leiria o que de melhor se fez e faz
a todos os níveis da música.
Hoje o OLCA constitui uma unidade cultural singular no país. No
ensino cobre todo o espetro etário, do imprescindível «viveiro» para novos
alunos à música e dança nos anos dourados. E
das cátedras oficiais às eminentemente amadoras (uma mistura que noutros locais
do país morreu com o tempo, face ao conservadorismo impensável tanto do
«tradicional» como do mais atual, é aqui um emblema de sucesso, bem ilustrado
na obra do ex secretário de Estado, meu amigo, Dr. Rui Vieira Nery), esta
mistura emblemática, dizia, junta num só propósito todas estas frentes
culturais e educativas.
Estes pressupostos permitem-me concluir que o OLCA, estoicamente
persistindo como instituição de boa empregabilidade na região, apesar dos
tempos difíceis, tem excelentes condições para vencer este período de francas
dificuldades estruturais e minorado o valor estratégico da cultura.
Henrique Pinto
29 de Novembro de 2013
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