terça-feira, 2 de junho de 2015

«MÚSICA EM LEIRIA» OU MAIS LONGE É O HORIZONTE

Conhecera Madalena Perdigão em Coimbra numa visita ao Conservatório da cidade. Ela dirigia o Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian. Quando cedo se aprende que a diplomacia da cultura é absolutamente fundamental (o trajeto como diretor do CELUC em Coimbra, enquanto estudante universitário, fora bem elucidativo), para o seu sucesso institucional (os exemplos de carácter irascível que em muito contribuíram para o êxito das artes são idiossincrasias muito pessoais), a responsabilidade não permite que se deixe tal mister perdido em mãos alheias.
Apresentado o Programa de Trabalho aos membros da direção do Orfeão de Leiria, a que presidia há poucos dias, logo em Fevereiro 1983 se contactou aquela líder da Gulbenkian, que, de pronto remeteu a entrevista para Maria Fernanda Cidrais Rodrigues, sua subdiretora. Foram breves momentos encantatórios, de simpatia quase mágica. Ali ficou delineado o primeiro Grupo de Concertos do que, por sugestão da diretora Antonieta Brito, se chamaria Música em Leiria, e mais tarde, de Festival Música em Leiria. Fernanda Cidrais foi a diretora artística do Festival a à sua morte, aquando da 1 edição.
No lançamento do certame a edição assentou apenas na cidade de Leiria, a Orquestra Contemporânea de Lisboa orientada por Jorge Matta, amigo desde Coimbra, foi o must do evento, o qual foi inteiramente pago pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Nas edições seguintes o Festival estendeu-se a outros concelhos limítrofes da Alta Estremadura: Alcobaça, Batalha, Marinha Grande, Ourém, Pombal e Porto de Mós. Em anos seguintes foi sedimentando não fazia sentido levar concertos onde, no resto do ano, o se fazia mais nada com intenções pedagicas –, fixando-se há alguns anos em Leiria, Batalha (o Mosteiro, joia gótica e manuelina, tornou-se por isso num grande centro de atrao para a música, lá atuaram desde Jordi Savall com o Hespérion XXI a Vivaldianas ou a Orquestra Filarmonia das Beiras, entre muitos outros grupos. Hoje tem dois concertos no Festival). Entre 1992 e 2001 foi diretor artístico Carlos de Pontes Leça e desde então Miguel Sobral Cid (tanto um como o outro igualmente subdiretores do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian). Desde 2004 os presidentes da República Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva, têm presidido à Comissão de Honra do evento.
O conservadorismo dominante na gestão autárquica do concelho de Leiria à altura (partido maioritário o CDS com vereadores do PSD e do PS) nunca foi obstáculo, quer a um apoio financeiro nimo, quer à utilização gratuita do Teatro Municipal. Se bem que todas as vereões da cultura em Leiria tenham sido sempre amigas e cooperantes com as organizações do OLCA, Joaquim Marques Confraria no início do projeto e depois Victor Lourenço, souberam aproveitar a Obra da OLCA como eixo e inspiração da «política» cultural autárquica, de início inpida como atrás se refere ao contextualizá-la. E assim o Festival pôde beneficiar de logística – uma das atribuições culturais naturais das autarquias -, e da possibilidade de incluir regular e crescentemente o Ballet Gulbenkian (antes um exclusivo da câmara em acuações esporádicas) no corpo do certame.
Todos os governos sem exceção e as personalidades mais destacadas do país, da política à igreja, da cultura à educação, e outras áreas apoiaram expressa e fisicamente um tal acontecimento.
De início era necessário ir-se pessoalmente às redações dos jornais à capital para publicarem qualquer coisinha. Intelectuais como Francisco  Belard, Joaquim  Vieira ou Alexandre Pomar foram apoios incontornáveis  nesse período. A logística  implicava fazer tudo do princípio em cada rodada. Os meios eram fracos. Uma colaboradora como Gracinda Moniz estava em todas, quase sem mais apoios profissionais, as receções em cada concerto, com jantar e convidadosou um beberete bem servido (com os  artistas,  colaboradores, patrocinadores, forças vivas, convidados especiais), responsabilidade  da diretora Antonieta Brito (a dada altura o ministro  Laborinho  Lúcio comparou o bacalhau com natas da Antonieta à Nona de Beethoven e  Sequeira  Costa   trazia  de  Lisboa  recipiente adequado para levar outra especialidade, o leite creme), eram elementos centrais.
As vereões  culturais dignas desse nome existiam em Leiria e depois na Batalha (agora também em Pombal e Marinha Grande). Um «responsável pela cultur dum município vociferava certa vez, «mas se é um Quinteto com Piano não lhe chamem quinteto». Um outro, à última hora, quis mudar um recital de violino para o palco da pra (sem êxito, obviamente!).

1       A Ilha de nus

O diretor Carlos de Pontes Leça introduziu a ideia de cada festival ser dedicado a um tema diferente (As vozes dos Instrumentos, A Voz Humana, Música, Água, Mar, Fim de Século, Bach/Brasil,  etc.). Sobral  Cid  entendeu conceber um enredo simples  a dar coerência à sequência de concertos e representações baléticas, uma Linha temática fluida, praticamente uma metáfora. Em 2011 inspirou-o  o simbolismo e a grande riqueza do conceito de ilha, a Ilha de nus.
«Desde logo na apropriação de novos  espaços para a realização dos espetáculos, também eles ilhas” de características peculiares, fortes referenciais da cidade e da região o teatro, mas também a praça, as igrejas, o claustro de Santa Maria da Vitória, o museu, marcas fortes carregadas de individualidade, também ela evocada na receção da música que ali se fará. o estes  espaços e ambientes  que fundamentam a proposta  de Pedro Carneiro  e And Sier  (Space  untitled), um espetáculo  multidia criado propositadamente  para a ocasião [É a desterritorialização e a diversidade pós-modernas omnipresentes].
Mas é sobretudo  nos programas  dos concertos,  que se transmitem  essas mesmas sensões, ora de forma mais ou menos óbvia, ora subtilmente, conferindo uma identidade singular ao Festival. A ilha enquanto espaço de isolamento e de preservação é aqui talvez a metáfora mais comum e percorre transversalmente vários programas: um afastamento que contribuiu para o desenvolvimento de caractesticas peculiarenas tradições e convenções musicais, potenciando o aparecimento de repertórios, estilos e perspetivas diferenciadas.
Casos  como os das  tradições  populares  irlandesas e escocesa  que Jordi  Savall   e Andrew Lawrence King nos revelam, o fascínio da música veneziana celebrada pelo Divino Sospiro, os sedutores ritmos e melodias de Astor Piazzolla  redescobertos pelo Opus Ensemble  e a própria peculiaridade de Maria João e Mário Laginha entre o mundo da música improvisada,   são apenas alguns destes casos. Ilha é também sinónimo de regio, da evasão à agitação quotidiana, muitas vezes associada à noite, mas também ao tema do amor, terreno ou celeste,  transversal  a toda a história  da música  (quiçá a toda a história  da humanidade).
Elemento de transformação, potenciando a transcendência, o recolhimento reflete-se no cunho devocional de algumas das mais comoventes ginas da literatura musical sacra, como as que aqui proem os agrupamentos do Orfeão de Leiria, mas também no carácter reservado de alguma da escrita para formações de mara, esfera de intimidade onde grande parte das vezes se encontra mais vincada a personalidade dos compositores, por oposição à sumptuosidade das estruturas sinfónicas ()» (Sobral Cid, M. 2011). São os tão decantados fluxos culturais que se importam/exportam numa cidadania local, regional e internacional.

2.      A imensurável criação

No seu primeiro festival como diretor artístico em 2002 (escrevera notas para programas em várias edições anteriores e crítica dos concertos na imprensa de Lisboa e Antena 2 da RDP, Radiodifusão Portuguesa), Miguel Sobral Cid, inspirava-se em A imensurável Criação:
«A programação da presente  edição do Festival  Música em Leiria tem como linha temática orientadora a ideia da ilimitada dimensão da criação. Múltiplas perspetivas de como pode ser proposto o objeto artístico, neste caso a obra musical, são aqui apresentadas num convite à refleo sobre o processo criativo e ao entendimento mais alargado da criação musical,  sem nunca perder de vista  o objetivo primeiro deste  evento, a fruição musical propriamente dita. Ao longo de treze programas diferentes (dezasseis espetáculos), diversas vertentes programáticas serão reconhecidas, qualquer uma delas identificando-se de alguma forma com a orientação proposta» (Sobral Cid, M. 2002).
E veja-se,  numa inspiração eminentemente pós-moderna, com todos os condimentos filosóficos  mas expurgada de exuberâncias, tal a orientação que tipifica esta Obra,  exalta a liberdade criativa:
«Ao associarmos o conceito de liberdade ao processo de criação musical somos quase de imediato levados a pensar em espontaneidade e, consequentemente, em improvisação. 
Na verdade, a improvisação, enquanto processo em que o músico/intérprete  se serve  da sua espontaneidade para elaborar, pelo menos na sua forma final, a obra musical, apresenta-se como o mais  paradigmático caso  de liberdade criativa. Neste campo reconhece-se  a preponderância do Jazz,  se  bem que outras  formas  musicais, compreendam igualmente, práticas de improvisação» (Sobral Cid, M. 2002).
Os mundos  da arte são constituídos por uma pluralidade de intervenientes onde se destacam dois lugares limite: os criadores que em percursos variáveis mais ou menos versáteis e intermutáveis,  procuram sempre a sua singularidade  artística  e os outros  que «cria o criador dentro do campo da criação, como por exemplo os críticos,  os comissários  ou os organizadores,  os marchands,  os programadores.  Enfim,  toda uma série de intermediários culturais de quem os criadores dependem para a visibilidade/viabilidade das suas carreiras e que, na sua função de divulgação, consagram os artistas como se auto consagram a si próprios (na singularidade que também eles detêm enquanto decisores)» (Madeira, C. 2004). Nestes protagonistas se centra boa parte da mediação entre públicos e organizações. 
Sejam eles os próprios diretores artísticos, sejam empresas ou sujeitos autónomos a trabalharem formal ou informalmente em rede. Pois no Festival Música em Leiria, como noutras vertentes da animação proporcionada pelo OLCA, o processo é também este. Entretanto o presgio alargou-se. Se os grandes nomes do mundo passaram «por aqui» e querem voltar, se as coproduções com instituições prestigiadas como o Teatro Nacional de São Carlos, a Companhia Nacional de Bailado, o Hot Club de Portugal ou a Casa da Música se consolidaram, e os acordos especiais com a Fundação Calouste Gulbenkian (para a primazia de Leiria na apresentação, por exemplo, do fabuloso bailado AmarAmália, sobre a vida da diva do fado, Amália Rodrigues), passaram a ser regra, também a crítica internacional passou a estar atenta.
Ângela Pereira assim esta Obra: «O Orfeão de Leiria é música! O Orfeão de Leiria é dança! Tem contribuído muito para uma divulgação e conhecimento da música e da dança, cuja expressão mais concreta de atuação se materializa no Festival anual, Música em Leiria. Levou-nos ao conhecimento dos compositores de música erudita clássica, contemporânea e jazz.  Deu espo aos intérpretes e músicos portugueses e proporcionou-nos momentos únicos de prazer musical e estético. Jamais me esquecerei do espectáculo AmarAmália que tocou tanta gente naquela noite  maravilhosa E a oportunidade que criou ao incluir Leiria  na digressão anual do Ballet Gulbenkian. O Orfeão de Leiria é pertença da nossa comunidade» .
Se  Paul Griffiths,  renomado musicólogo norte-americano, escrevia no jornal The New York Times em 1997 que o Festival Música em Leiria, pela sua temática, se encontrava entre os cinco melhores da Europa, de par com Bergen ou Salzburgo, então está tudo dito (Pinto, H. 2010 ).
Henrique Pinto
Leiria 2011
In DO ESTADO NOVO AO PÓS-MODERNISMO CULTURAL




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