Conhecera Madalena Perdigão em Coimbra numa visita ao Conservatório da cidade. Ela dirigia o Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian. Quando cedo se aprende que a diplomacia da cultura é absolutamente fundamental (o trajeto como diretor do CELUC em Coimbra, enquanto estudante universitário, fora bem elucidativo), para o seu sucesso institucional (os exemplos de carácter irascível que em muito contribuíram para o êxito das artes são idiossincrasias
muito pessoais), a
responsabilidade não permite que se deixe tal mister perdido em mãos alheias.
Apresentado o Programa de Trabalho aos membros da direção do Orfeão de Leiria, a que presidia há poucos dias, logo em Fevereiro 1983 se contactou aquela líder da Gulbenkian, que, de pronto remeteu a entrevista para Maria Fernanda Cidrais Rodrigues, sua subdiretora. Foram breves
momentos encantatórios, de simpatia quase mágica. Ali ficou delineado o
primeiro Grupo de Concertos do que, por sugestão da diretora Antonieta Brito, se chamaria Música em Leiria, e
mais tarde, de Festival Música em Leiria. Fernanda Cidrais foi a diretora artística
do Festival até à sua morte, aquando da 10ª edição.
No lançamento do certame a edição assentou apenas na cidade de Leiria, a
Orquestra Contemporânea de Lisboa orientada por Jorge Matta, amigo desde Coimbra, foi o must do evento, o qual foi inteiramente pago pela Fundação
Calouste Gulbenkian.
Nas edições seguintes o Festival estendeu-se
a
outros concelhos limítrofes da Alta
Estremadura: Alcobaça, Batalha, Marinha Grande, Ourém, Pombal e Porto de Mós. Em anos seguintes foi sedimentando – não fazia sentido levar concertos onde, no resto do ano, não se fazia mais nada com intenções pedagógicas –,
fixando-se há alguns anos em Leiria, Batalha (o
Mosteiro, joia gótica e manuelina, tornou-se por isso num grande centro de atracão para a música, lá atuaram desde Jordi Savall com o Hespérion XXI até Vivaldianas ou a Orquestra Filarmonia das Beiras, entre muitos outros grupos. Hoje tem dois concertos no Festival). Entre 1992 e
2001 foi diretor artístico Carlos de Pontes Leça e
desde então Miguel Sobral Cid (tanto um como o outro igualmente subdiretores do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian). Desde 2004 os presidentes da República Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva, têm presidido à
Comissão de Honra do evento.
O conservadorismo dominante na gestão autárquica do concelho de Leiria à
altura (partido maioritário o CDS com vereadores do PSD e do PS) nunca foi obstáculo, quer a um apoio financeiro mínimo, quer à utilização gratuita do Teatro Municipal. Se bem que todas as vereações da cultura em Leiria tenham sido sempre amigas e cooperantes com as organizações do OLCA, Joaquim Marques Confraria no início do projeto e depois Victor Lourenço, souberam aproveitar a Obra da OLCA como eixo e inspiração da «política» cultural autárquica,
de
início insípida como atrás se refere ao contextualizá-la. E assim o
Festival pôde beneficiar
de logística – uma das atribuições culturais naturais das
autarquias -, e da possibilidade de incluir regular e crescentemente o Ballet Gulbenkian (antes um exclusivo da câmara em acuações esporádicas) no corpo do certame.
Todos os governos
sem
exceção e as personalidades mais destacadas do país, da
política à igreja, da cultura à educação, e outras áreas apoiaram expressa
e fisicamente um tal acontecimento.
De início era necessário ir-se pessoalmente às redações dos jornais
à capital para
publicarem qualquer coisinha. Intelectuais como Francisco Belard, Joaquim Vieira ou
Alexandre Pomar foram apoios incontornáveis nesse período. A logística implicava fazer tudo do princípio em cada rodada. Os meios eram fracos. Uma colaboradora como Gracinda Moniz estava em todas, quase sem mais apoios profissionais, as receções em
cada concerto,
com jantar e convidados, ou um beberete
bem servido (com os artistas, colaboradores, patrocinadores, forças vivas, convidados especiais), responsabilidade da diretora Antonieta Brito (a dada altura o ministro Laborinho Lúcio comparou o
bacalhau com natas da Antonieta à Nona de
Beethoven e
Sequeira Costa trazia de
Lisboa recipiente adequado para levar outra especialidade, o leite creme), eram elementos centrais.
As vereações
culturais dignas desse nome só existiam em Leiria e
depois na Batalha (agora também em Pombal e
Marinha Grande). Um «responsável pela cultura» dum município vociferava certa vez, «mas se é um Quinteto com Piano não lhe chamem quinteto». Um outro, à última hora, quis mudar um recital de violino para o palco da praça (sem êxito, obviamente!).
1 A Ilha de Vénus
O diretor Carlos de Pontes Leça introduziu a ideia de cada festival ser dedicado a
um tema diferente (As vozes dos Instrumentos, A Voz Humana, Música, Água, Mar, Fim de Século, Bach/Brasil, etc.). Sobral Cid entendeu conceber um enredo simples
a dar coerência à
sequência de concertos e representações baléticas, uma Linha temática fluida, praticamente uma metáfora. Em 2011 inspirou-o
o simbolismo e
a grande riqueza do conceito de ilha, a Ilha de Vénus.
«Desde logo na apropriação de novos espaços para a realização dos espetáculos, também eles “ilhas” de características peculiares, fortes referenciais da cidade e da região –
o teatro, mas também a praça, as igrejas, o claustro de Santa Maria da Vitória, o museu, marcas fortes carregadas de individualidade, também ela evocada na receção da música que ali se fará. São estes espaços e
ambientes que fundamentam a proposta de Pedro Carneiro e André Sier (Space untitled), um espetáculo multimédia criado propositadamente para a ocasião [É a desterritorialização e a diversidade pós-modernas omnipresentes].
Mas é sobretudo nos programas dos concertos, que se transmitem essas mesmas sensações, ora de forma mais ou menos óbvia, ora subtilmente, conferindo uma identidade
singular ao Festival. A ilha enquanto espaço de isolamento e de preservação é
aqui talvez a metáfora mais comum e percorre transversalmente vários programas: um afastamento que contribuiu para o desenvolvimento de características peculiares nas tradições e convenções musicais, potenciando o aparecimento de repertórios, estilos e perspetivas diferenciadas.
Casos como os das
tradições populares irlandesas e
escocesa
que Jordi Savall e
Andrew Lawrence King
nos revelam, o
fascínio da música veneziana celebrada pelo
Divino Sospiro, os sedutores ritmos e melodias de
Astor Piazzolla redescobertos pelo Opus Ensemble e a própria peculiaridade de Maria João e Mário Laginha entre o mundo da música improvisada,
são apenas alguns destes casos. Ilha é também sinónimo de refúgio, da
evasão à agitação quotidiana, muitas vezes associada à noite, mas também ao tema do amor,
terreno ou celeste, transversal a toda a história da música (quiçá a toda a história da
humanidade).
Elemento de transformação, potenciando a transcendência, o recolhimento reflete-se no cunho devocional de algumas das mais comoventes páginas da literatura musical sacra, como as que aqui propõem os agrupamentos do Orfeão de Leiria, mas também no carácter reservado de alguma da escrita para formações de câmara, esfera de intimidade onde grande parte das vezes se encontra mais vincada a
personalidade dos compositores, por oposição à sumptuosidade das estruturas sinfónicas (…)» (Sobral Cid, M. 2011). São os tão decantados fluxos culturais que se importam/exportam numa cidadania local, regional e internacional.
2. A imensurável criação
No seu primeiro festival como diretor artístico em 2002 (escrevera notas para programas em várias edições anteriores e crítica dos concertos na imprensa de Lisboa e
Antena 2 da RDP, Radiodifusão Portuguesa), Miguel Sobral Cid, inspirava-se em A imensurável Criação:
«A programação da presente edição do Festival Música em Leiria tem como linha temática orientadora a ideia da ilimitada dimensão da criação. Múltiplas perspetivas de como pode ser proposto o objeto artístico, neste caso a obra musical, são aqui apresentadas num convite à reflexão sobre o
processo criativo e ao entendimento mais alargado da criação musical, sem
nunca perder de vista o objetivo primeiro
deste evento, a fruição musical propriamente dita. Ao longo de treze programas diferentes (dezasseis espetáculos), diversas vertentes programáticas serão reconhecidas, qualquer uma delas identificando-se de alguma
forma com a orientação proposta» (Sobral Cid, M.
2002).
E veja-se, numa inspiração eminentemente pós-moderna, com todos os condimentos filosóficos mas expurgada de exuberâncias, tal a orientação que tipifica esta Obra, exalta a
liberdade
criativa:
«Ao associarmos o conceito de liberdade ao processo de criação musical somos quase de imediato levados a
pensar em espontaneidade e, consequentemente, em improvisação.
Na
verdade, a improvisação, enquanto processo em que o músico/intérprete se serve da sua espontaneidade para elaborar, pelo menos na sua forma final, a obra musical, apresenta-se como o mais paradigmático
caso de liberdade criativa. Neste campo reconhece-se a preponderância do Jazz, se bem que outras formas musicais, compreendam igualmente,
práticas de improvisação» (Sobral Cid, M. 2002).
Os mundos
da arte são constituídos por uma pluralidade de intervenientes onde se destacam dois lugares limite: os criadores que em percursos variáveis mais ou menos
versáteis e intermutáveis, procuram sempre a sua singularidade artística e os outros que «criam» o criador dentro do campo da criação, como por exemplo
os críticos, os comissários ou os organizadores, os marchands,
os programadores. Enfim, toda uma série de intermediários culturais de quem os criadores dependem para a visibilidade/viabilidade das suas carreiras e
que, na sua função de divulgação, consagram os artistas como se auto consagram a si próprios (na
singularidade que também eles detêm enquanto decisores)» (Madeira, C. 2004). Nestes protagonistas se centra boa parte da mediação entre públicos e organizações.
Sejam eles os próprios diretores artísticos, sejam empresas ou sujeitos autónomos a trabalharem formal ou
informalmente em rede. Pois no Festival Música em
Leiria, como noutras vertentes da animação proporcionada pelo OLCA, o processo é também este. Entretanto o prestígio alargou-se. Se os grandes nomes do mundo passaram «por aqui» e querem voltar, se
as coproduções com instituições prestigiadas como o Teatro Nacional de São Carlos, a Companhia Nacional de Bailado, o
Hot Club de Portugal ou a Casa da Música se consolidaram, e os acordos especiais com a Fundação Calouste Gulbenkian (para a
primazia de Leiria na apresentação, por exemplo, do fabuloso bailado AmarAmália, sobre a
vida da diva do fado, Amália Rodrigues), passaram a ser regra, também a crítica internacional passou a estar atenta.
Ângela Pereira vê assim esta Obra: «O Orfeão de Leiria é música! O Orfeão de Leiria é dança! Tem contribuído muito para uma divulgação e conhecimento da música e
da dança, cuja expressão mais concreta de atuação se materializa no Festival anual,
Música em Leiria. Levou-nos ao conhecimento dos compositores de música erudita clássica, contemporânea e
jazz. Deu espaço aos intérpretes e músicos portugueses e proporcionou-nos momentos únicos de prazer musical e estético. Jamais me esquecerei do espectáculo AmarAmália que tocou
tanta gente naquela noite maravilhosa. E a oportunidade que criou ao incluir Leiria na digressão anual do Ballet Gulbenkian. O Orfeão de Leiria é
pertença da nossa comunidade»
.
Se Paul Griffiths, renomado musicólogo norte-americano, escrevia no jornal The New York Times em
1997
que o Festival Música em Leiria, pela sua temática, se encontrava
entre os cinco melhores da Europa, de par com Bergen ou Salzburgo, então está tudo dito (Pinto, H. 2010 ).
Henrique Pinto
Leiria 2011
In DO ESTADO NOVO AO PÓS-MODERNISMO CULTURAL
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