domingo, 29 de novembro de 2009

«À BEIRA DA IRRELEVÂNCIA»

Dedica hoje o melhor de si mesmo à Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), cujo grande objectivo é «pensar, estudar e contribuir para o melhor conhecimento da realidade portuguesa», como se lê na sua carta de princípios. Mas não é de agora que António Barreto, 67 anos, gosta de números, factos, dados. À excelência com que tem vindo a desenvolver e profissionalizar esse gosto não foi certamente alheio o convite de Alexandre Soares dos Santos para presidir ao conselho de administração da FFMS. Foi nessa pele que, com sedutora fluidez e um grande conhecimento de causa, este ex-ministro, ex-deputado e ex-dirigente partidário viajou comigo pelo país. Os resultados são ácidos, a radiografia má, embora - surpreendentemente? - não concorde que o país esteja doente: «O nosso problema não é doença nem asfixia, mas sim dependência, o que é muito mais grave». Com brilho, sabedoria e substância, explica porquê.(…)

Dirige uma fundação que não só é totalmente portuguesa como é a primeira a visar exclusivamente esses objectivos...

Fazer estudos sobre a realidade nacional, torná-los públicos e organizar projectos à roda deles, sim, é caso único português. Os think thank que conheço são organizações para pensar, promover e publicitar ideias, mas são organizações programáticas, têm um programa político. Como nos Estados Unidos, onde grande parte destas fundações servem para organizar a discussão pública promovendo as ideias dos partidos republicano e democrático. Portugal é uma sociedade diferente e nem foi essa a vontade do fundador nem a minha. Não somos um think thank, na medida em que não temos um programa político. Temos uma carta de princípios. (…)

O que pode já anunciar?

Até à Primavera de 2010, creio poder ter já concretizados dois projectos a que chamamos, em linguagem interna, "permanentes" - durarão sempre. O primeiro - e digo-lhe o nome em primeira mão - chama-se Pordata, nome já registado, que serve para o mundo inteiro e para a net, sem acentos circunflexos, nem til, nem cedilhas... Por baixo há um subtítulo, "Base de Dados Portugal Contemporâneo": é a tentativa de agregar, organizar e homogeneizar os dados existentes sobre Portugal desde 1960 até hoje, em todos os domínios: demográfico, sanitário, educativo, populacional, emprego, desemprego, salários, vencimentos, justiça, cultura... Houve rupturas estatísticas nos últimos 20, 30 ou 40 anos que fazem com que muitas delas sejam deficientes e exista um enorme défice de informação pública. Não podemos obviamente produzir estatísticas - só as instituições oficiais o podem fazer -, mas estamos a coligi-las com uma fantástica colaboração do Instituto Nacional de Estatística - principal fonte de estudo - e ainda do Banco de Portugal, dos organismos da saúde e da educação, com as Ordens, por exemplo, que têm dados interessantes sobre as profissões. Harmonizaremos depois tudo isto de modo a estar disponível para todos. É de graça e será feito de modo tão moderno quanto possível, como as melhores coisas que se fazem no mundo!

Mais?

A segunda iniciativa é uma espécie de contraponto desta. Os números - tenho uma grande atracção pessoal por eles - têm uma grande vantagem: sugerem factos. E não há boas opiniões sem bons factos por trás. Em paralelo vamos lançar - talvez na Primavera de 2010 - uma colecção de ensaios, no verdadeiro sentido da palavra. Contactámos dezenas de pessoas, algumas delas têm prazos já marcados. E todas vão ser surpresas. Quais os temas?Os que são relevantes na vida nacional: saúde, envelhecimento da população, natalidade, mortalidade infantil. Mas também a propriedade, o ensino do Português, a corrupção, a organização de certos aspectos da justiça processual. A ideia é organizarmos 10 ou 12 por ano com 60 a 100 páginas, no máximo. Não produzirão factos ou estatísticas, não terão uma linguagem hermética. Queremos que sejam acessíveis a todos, para que todos fiquem informados. Não ambiciono concorrer com as telenovelas ou o futebol, mas muitas das pessoas que vêem telenovelas ou futebol poderão estar interessadas em lê-los. Aliás, os termos de referência com os autores são sempre os mesmos: não se trata de um livro de um jurista para juristas, de um economista para economistas. Destinam-se a especular sobre ideias, e por isso lhe disse que eram o contraponto dos factos. Quero discutir como se nasce e morre em Portugal, discutir os pobres e os ricos, a liberdade das empresas, a dependência do Estado. Quero uma opinião fundamentada e uma discussão informada.
É como se estivesse debruçado sobre a sociedade portuguesa. Como é a nossa sociedade?

É muito antiga, o que deixa marcas e faz dela uma sociedade complexa. E preocupada com a sua memória. Eduardo Lourenço diz que os portugueses sofrem por ter identidade a mais e eu concordo. Habituámo-nos a viver da memória, o que cria frustração. É também uma sociedade que vive obnubilada, obcecada com o seu atraso. A ideia de que há um problema de subdesenvolvimento e sociedades que se desenvolvem menos que as outras deve ter começado cá há 200 ou 250 anos! Havia a memória da grandeza, mas quando a seguir vem a pobreza ou o atraso é pior, funciona como mito. E há a ideia da periferia. Ainda hoje os portugueses pensam que não estão no centro do mundo e das coisas. Há uma invenção de que Portugal estava no centro do Atlântico e fazia a charneira, mas não é a mesma coisa que estar no centro. É o facto de estar num canto da Europa não sendo bem Europa, não sendo bem África, não sendo bem Mediterrâneo, não sendo bem Atlântico. Os portugueses há 500 anos que vão para qualquer sítio, para a emigração, para África, para as conquistas, para o Oriente, para o Brasil ou para o Atlântico... e agora não sabem para onde ir. Não podem ir para a Europa porque já lá estão. Há quem diga que Angola é novamente uma oportunidade. É uma relação interessante, mas é preciso reconstruir, sarar feridas, fechar cicatrizes. Não faço a mínima ideia se vamos conseguir e se os angolanos vão conseguir...
Mas houve mudanças e aberturas...

Sim, décadas de abertura com a emigração, a televisão, o turismo e, depois do 25 de Abril, as liberdades, as viagens, a integração europeia, a adesão, a liberdade do comércio. Os portugueses ficaram a conhecer o que há de melhor no mundo e portanto a ambicionar o que há de melhor no mundo. As pessoas querem ter o sistema médico sueco, o escolar dos noruegueses, as estradas dos alemães, os automóveis dos ingleses. Ambicionar uma coisa medíocre é em si mesmo um sinal de mediocridade. Os portugueses querem o máximo, simplesmente não são capazes de fazer o máximo: não têm organização, nem capital, nem empresas, nem experiência, nem treino.
E porquê, justamente?

Porque já estamos atrasados há 250 anos, porque perdemos 15 ou 20 anos com a guerra colonial, com uma ditadura que durou, durou, com uma Revolução que fez disparates, disparates. Tivemos de revolucionar e fazer a contra-revolução, nacionalizámos e privatizámos. Foi uma perda de tempo, de recursos, de energia e abriu feridas. Ainda hoje noto que Portugal tem uma maneira de fazer política mais crispada que muitos países da Europa. O primeiro-ministro, o chefe da oposição, os partidos da oposição falam uns com os outros no Parlamento aos gritos, evocando problemas de honra, evocando a mentira, a coragem, a vigarice. Nos debates parlamentares de Madrid, de Paris, dos Estados Unidos, ou até de Itália vemos que as pessoas são capazes de falar racionalmente, com bons modos e educação, sem que lhes falte energia ou têmpera. Mas nunca com esta crispação portuguesa, que se vem mantendo ao longo dos últimos 20 ou 30 anos. No fundo, o facto de os portugueses serem os mais pobres dos mais ricos cria uma terrível frustração... Fazendo parte dos ricos - parece paradoxal mas é verdade, há 150 países mais pobres que nós -, somos o último deles, e isso aumenta - nos a frustração. A distância entre o que temos e o que gostaríamos de ter é muito maior que noutros casos.
No início dos anos 70 a nossa situação era boa...

Continuo a pensar isso. Mas comparando com países que tiveram recentemente de fazer profundíssimas reformas, como a República Checa, a Polónia, a Hungria, a Eslovénia, dou-me conta de que estão a ir mais depressa e melhor que nós. Estão mais consolidados e, tendo menos anos de democracia, parece que têm mais. Têm melhor cultura, melhor formação e usam muito melhor que nós os meios que têm.
Qual a falta mais gritante?

Parece-me óbvio que há uma falta de empresários, de capitalistas. Será um problema ancestral? Vem da nossa maneira passada de viver e de gastar? Dos desperdícios? Do facto de os ricos portugueses terem vivido à sombra do Estado durante 200, 300 ou 400 anos? De o Estado ter ocupado tudo desde os Descobrimentos? Não quero ir por aí, mas o resultado é este. Há poucos empresários, poucos capitalistas com capitais, as elites são fracas e têm uma noção medíocre do serviço público. É raríssimo encontrar ricos, poderosos, famílias antigas, com um sentimento forte do contributo que podem dar à sociedade.

Que mais falta?

Falta literacia. Tínhamos há 30 anos a mesma taxa de analfabetismo que a Inglaterra de 1800. Em matéria de alfabetização havia 150 anos de atraso. Porque é que os portugueses não lêem jornais? A falta de hábito de ler os jornais é muito importante, porque o jornal é a fonte de informação que mais está virada para o raciocínio, o pensamento, a participação. Quem vê televisão está geralmente em posição passiva. Mas hoje a imagem é rainha. O apetite por um jornal nunca igualará o da televisão...Mas quem tem como informação exclusiva a televisão subordina o raciocínio, o pensamento, o estudo, o lápis que toma as notas, às emoções. É mais fácil ser livre e independente com um papel na frente do que diante de uma imagem que é fabricada com som e se dirige às emoções e aos sentimentos e não à razão - ou pouco à razão. Sou consumidor de televisão e da net, mas o que quero dizer é que, ao contrário de todos os países europeus, quando os portugueses começaram a aceder à escola e a aprender a ler, nos anos 50 e 60, já havia televisão. Não se fez o caminho que todos os outros países da Europa fizeram, que foi dois séculos a lerem jornais e só depois com uma passagem gradual para a rádio e para a televisão. (…)
Quando se debruça especificamente sobre o mapa político e social o que o aflige mais é a justiça?

É. Há muito que falo disso e todos os anos com mais razão que no anterior. Não há alternativa para a justiça, como na saúde, em que se pode escolher o privado, ou na educação, onde se vai para outra escola. Na justiça não há alternativa e ainda bem, não deve haver. Mas a nossa justiça está hoje refém, capturada...
Por quem?

Pelos grandes grupos profissionais: o dos magistrados, dos procuradores e dos advogados, que são quem ordena e quem comanda a justiça, os operativos, os agentes. Não sei como lhes chame, mas qualquer nome é bom. Agora até já há sindicatos, que são uma espécie de infantaria avançada de cada um destes grupos. Há evidentemente centenas de juízes fantásticos. Sei que há, e é possível hoje fazer a diferença entre os 100 ou 200 tribunais que funcionam muitíssimo bem e os outros. Só que a sociedade portuguesa contemporânea está essencialmente nas grandes áreas metropolitanas, o resto é paisagem. Não é bem, mas conta muito menos. E o que se passa é que a sua vida privada, familiar, as sucessões, as heranças, os despejos, os contratos de trabalho, os requerimentos... tudo está hoje em causa porque não há justiça, não há recurso para nada nem para ninguém. Se quiser resolver um problema, recorre a quem? À justiça. Há 20 anos os magistrados vinham em primeiro lugar, era o grupo profissional que mais confiança merecia dos portugueses. Estão hoje em penúltimo lugar; abaixo só os deputados. É o grupo mais destituído da confiança dos portugueses. Os portugueses não confiam nos tribunais nem nos magistrados e isto é terrível, mina a alma, mina os sentimentos, mina o coração.
Como se inverte tal estado de coisas?

O poder legislativo e o poder executivo. Não há outra maneira. Em Portugal há uma confusão profunda entre independência e autogestão. A independência dos juízes é aquela com que, no tribunal, diante das partes, julgam e ditam a sentença, e não pode haver a menor beliscadura a essa independência. No entanto, isso não quer dizer autogestão, que significa organizar as carreiras, os dinheiros, as comarcas, as promoções, fazer nomeações e avaliações. Ora isso está totalmente em autogestão. Enquanto o poder executivo, através do poder legislativo - porque ambos representam o povo -, não tomar a iniciativa, a justiça piorará. Há meses que assistimos a ela estar cada vez pior, cada vez pior...
Tem a tentação de fazer comparações negativas entre a classe política de hoje e a gente do seu tempo, quando foi ministro, deputado, dirigente partidário, fundador dos Reformadores, o movimento político criado em 79?

Isso é ingrato, as circunstâncias eram tão diferentes... Eram tempos de grande empenho, grandes causas, quase de vida ou de morte. Hoje estamos na «vida normalizada», em que os políticos fazem carreira e ela pode produzir pessoas interessantes, ou não. Não é uma vocação, é uma carreira. Diz-se que muitas pessoas competentes saíram da política mas fizeram-no porque dantes ela era uma vocação que se confundia com uma causa. Hoje há certamente pessoas capazes, o que têm é uma maneira muito diferente de fazer política. (…)
Daí à tal "asfixia" vai - ou não vai - um passo?

O problema é a dependência, não a asfixia...
Prefere chamar-lhe "dependência"?

Prefiro, acho que é mais grave. Em Portugal quase toda a gente depende do Estado, do governo, das instituições públicas oficiais, dos superiores, dos empregadores. Não há verdadeiros focos de independência. Depende-se de muita coisa: do alvará, de ter autorização, de ser aceite, da boa palavrinha do bom secretário de Estado que diz ao bom banqueiro que arranje uns bons dinheirinhos para fazer o investimento. A dependência é enorme. Não é asfixia, uma vez mais, é dependência. As pessoas têm receio pelo seu emprego, pelo seu trabalho, pelo trabalho da família. Conheço algumas que até têm receio de falar...
Já fomos mais independentes?

Há 20 anos havia mais independência em Portugal, nas associações, nas empresas... Durante o marcelismo, por exemplo, não havia mais independência mas as pessoas estavam mais dispostas a correr riscos e nessa altura eles eram bem mais pesados: metia deportação, cadeia, polícia. Hoje há muito menos disponibilidade para o risco porque a dependência é muito, muito forte.
O país está muito doente?

Está dependente, doente não. Há um fenómeno de esgotamento, de cansaço. Entre 1960 e 1995 houve uma verdadeira cavalgada: fomos o país que mais cresceu e se desenvolveu na Europa, com uma mudança demográfica completa, outra nos costumes, algo de absolutamente fantástico! De repente chegámos a 90 ou 95 e percebemos que não tínhamos inovado nem criado muito... Fizemos auto-estradas - qualquer país com um cheque na mão as faz -, mas não fizemos novas empresas, novos projectos, novos produtos. E perdemos muito do que tínhamos: demos cabo da floresta, demos cabo da agricultura, demos cabo do mar. Três coisas imperdoáveis, três erros históricos. E não sei se ainda é possível voltar a prestar atenção à floresta, à agricultura, ao mar...
No Portugal de hoje que há que valha a pena?

Há coisas que se conseguiram: nas telecomunicações, na organização da banca, um bocadinho na universidade, outro bocadinho na ciência, numa ou outra indústria, na distribuição dos produtos de consumo diário (que está muito bem organizada). Mas são as excepções. No resto, importamos 4/5 do que comemos. Hoje, no produto nacional, 3% ou 4% são agricultura e alimentação, 20% ou 25% são indústria. Ou seja, produtos novos, feitos em Portugal, são 30%, menos de um terço. Que vamos exportar daqui a dez anos? E daqui a 20? Serviços? Quais? Financeiros, bancários, serviços de informações, serviços de quê? Estamos a quilómetros e quilómetros de distância da capacidade de exportação de serviços da Espanha, de Inglaterra, da França, dos Estados Unidos... Novas coisas, novas indústrias, novos projectos, novos planos, novas ideias, fizemos muito pouco. Chegados a 95, 96 ou 97, começaram a aparecer os países de Leste, apareceu a China, apareceram os grandes concorrentes. No fim da década de 90 já a Irlanda estava à nossa frente com inúmeras reformas feitas - embora hoje se encontre em dificuldades -, a Espanha também, e até a Grécia já nos estava a ultrapassar...
Que conclusão se impõe tirar? E isto para não lhe perguntar que caminho pisar...

Se não houvesse a Europa e se ainda houvesse Forças Armadas, já teríamos tido golpes de Estado. Estamos à beira de iniciar um percurso para a irrelevância, talvez o desaparecimento, a pobreza certamente. Duas coisas são necessárias para evitar isso. Por um lado, a consciência clara das dificuldades, a noção do endividamento e a certeza de que este caminho está errado. Por outro, a opinião pública consciente. Os poderes só receiam uma coisa: a opinião dos homens livres.
Poderemos estar à beira de uma crise institucional?

Com a justiça que temos, sim! Com a cultura dominante nos partidos, sim! (…)

Jornal I
Novembro 2009
Extractos da entrevista a António Barreto por Maria João Avillez
FOTOS; Jornal I; António Barreto

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