segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A OUTRA MARGEM





Nos cafés já se toma a bica de pé e num ápice, ala que se faz tarde. Casamentos são mais e mais parcos em festas e cerimónias. Os funerais sempre foram altar de ritual e encontro. Permitem, sobretudo às pessoas temporalmente mais distantes, rirem-se um pouco com amigos de antanho. Em Sesimbra se alguém de fluida memória não nos reconhecesse bastaria referir o ser-se parte da família do Mário do Gesso. E no entanto o meu tio Mário - foi a enterrar na terça-feira aos noventa anos de idade, com tamanha avidez da vida e do saber – deixou a mineração há quase cinco décadas. Era um tempo em que ele e o Teodoro construtor, o Hélder Ferreira e as suas mulheres, os padres Freitas e Vieira, de pequenos escândalos íntimos, o professor Amável meu mestre e o Dr. Leite meu doutor, com um ou outro comerciante, eram as pessoas mais conhecidas ou respeitadas da terra.
O concelho dá mostras de séria expansão urbanística na vila em si, nos terrenos de cultivo mais chegados à Aldeia do Meco (antes refúgio tranquilo do nudismo) e à Lagoa de Albufeira, e sobretudo na Quinta do Conde, de elevada concentração demográfica. Esta última urbanização pôs-se de pé à volta de Abril, clandestinamente. Fê-lo com o afluxo de refugiados e retornados das antigas colónias e na construção barata de nomes conhecidos. Atraiu bastante gente pobre a erguer o seu lar, sem rei nem roque, numa arrumação só agora recuperável. Lá vive ou dorme uma população autóctone superior à sobrante no concelho. Fruto das circunstâncias, do nascimento à maturação, tem todos os grandes problemas sociais do mundo moderno em dose superior a qualquer outra zona do país.
Todavia, se há 40-50 anos Sesimbra estava tão longe de tudo hoje são 20 minutos até Lisboa, mau grado as piores e mais danosas estradas do rectângulo, um tráfego infernal de gente apressada ou de baixa educação cívica. Boa parte do casario moderno é de turismo, segunda habitação ou lar quotidiano de gente fugida das cidades mas a trabalhar nelas.
Quase deixaram de se ouvir choros de carpideiras, familiares ou não. E não raro – pese o sofrimento de ver partir alguém querido – é um sorriso educado a receber os pêsames amistosos ou de ocasião e uma ou outra gargalhada franca duma memória mais pícara, vinda daqui ou dali, não choca. Poucos a lêem como sinal de má educação.
Uma vez um ministro com a pasta da saúde achou-se bem talhado para a função pois o sogro fora médico. É admissível haver conclusões idênticas sobre conversas de velório. Paciência.
A margem sul ostenta um imenso ar de secura e abandono de séculos. Este desânimo é disfarçado em Sesimbra pelo arvoredo imenso da Quinta do Peru, da Herdade do Calhariz ou das terras de Ramada Curto, pertença de famílias de posses e benquistas. Já pouco tem a ver com a pobreza franciscana de há cinquenta anos.
É incontornável, a vida mais e mais migrante afasta os amigos. Aqui lembram-se historietas, avivam-se memórias de gente boa e má, escutam-se opiniões de proveniência raramente acessível, a sabedoria telúrica.
É Berlim e a efeméride da queda do muro, de permeio com o ostracismo da Quinta do Conde, a virem à baila entre amigos de infância. Só quem desconhecer de todo a Alemanha pode ignorar a persistência dum forte clima discriminatório entre os crescidos das antigas comunidades divididas, a mexer com emprego, habitação, indústria e até já na educação. Um largo fosso de preconceitos separa também os residentes na Quinta do Conde de boa parte das pessoas a viverem noutras curvas do concelho. Talvez por isso, os socialistas organizados dum e doutro lado deste muro virtual zangaram-se forte e feio a propósito das eleições autárquicas. Quando há tiros no pé, expressão da gíria para a autoflagelação política gratuita – desaguisado igual tiveram os sociais-democratas de Leiria -, os resultados espelham tais cismas. Ter-se-á fecundado aí a humilhação nas urnas. O voto massivo na lista comunista, liderada por um homem pacato, da vila, disse quem tem o afecto das pessoas. Mesmo se a obra é incipiente. Na sabedoria ancestral os eleitores viram-no como o melhor.
E todos sentem, o momento não se recomenda.
Uma coisa são as teorias birrentas de Medina Carreira, ampliadas na TV, outra a necessidade de combater o desemprego, sustentar a indústria e criar mais-valias. Uma coisa é o funcionamento democrático dum país no mais elevado patamar de civismo, outra o carburar de motor desgastado pelo uso, tal a parte significativa das nossas ferramentas democráticas já em desajuste social. O poder de as aperfeiçoar carece de ascendente sobre os ganhos na deterioração, permissivos, transversais nas instituições. Quem acredita hoje na inocência mediática em geral, imersa num inextrincável puzzle de interesses?
Poderá levar tempo a ver-se com segurança, uma fracção do estigma a onerar socialmente alguns dos investimentos mais vultuosos, já anunciados, não diverge da crítica oca surgida logo no parto do Centro Cultural de Belém, do Europeu de Futebol ou da Expo 98. Uma dureza injusta. Faltou nas negociações da política agrícola comum ou das pescas. Só a atmosfera pútrida de descrédito e injustiça, pejada de episódios com os traços do Mensalão, de Lula da Silva ou do Mãos Limpas, de Bettino Craxi, a agravar-se, vem em socorro deste criticismo ignaro e apocalíptico.
Esgrimir tão ferino e hipócrita com a dívida sobre gerações futuras lembra-nos muitas opções em tempos idos, fortemente influenciadas por decisões egoístas, receios fúteis, ambição de extremos, mínima ou soberba. Nem se cogita na longínqua infantilidade de Alcácer Quibir, apoiada pela nobreza portuguesa. O passado não se lê no condicional. Tão pouco o futuro se deve escrever sobre o mesquinho ou com dose igual de saber do perorar sobre a Irlanda, quais papagaios de intelecto mal nutrido! O beco paupérrimo alvitrado por centrais encapuzadas de interesses claros/escuros está a fazer do país um milheiral de descrença, suspeição e mentira. Uma nação moderna e sociável passaria bem sem carpideiras assim, sob risco de soçobrar.
Seria imperioso o requalificar profissional para cerca de dois milhões de cidadãos, quase a totalidade da força activa, até ao ano 2015, para não se perder de vista o acompanhar na riqueza produtiva dos povos europeus mais evoluídos. Com as Novas Oportunidades e projectos anteriores, é firme a possibilidade de em 2013 haver mais de um milhão de pessoas requalificadas em muitos sectores onde minguam os recursos humanos. Invista-se então no gerar emprego. O país bem precisa dele e a margem sul muito mais. A esperança no avanço dos investimentos previstos para a zona dá fulgor à crença num concelho de Sesimbra mais uniforme na estética, nos sentimentos de pertença e convivialidade.
Henrique Pinto
Novembro 09
FOTOLEGENDAS: Marina de Sesimbra com Castelo ao fundo; Castelo de Seimbra, meu avô trabalhou na sua reconstrução; Rua D. Diniz em Sesimbra, antiga Rua do Norte, onde meu pai nasceu

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