Manuel tinha acabado de ouvir e saudar o novo elenco municipal, conhecidos de há muito, a merecerem-lhe respeito e simpatia. A posição social exige-lhe por igual tal deferência. O grande auditório transborda de velhos e novos acólitos. Lembrou-se afectuosamente da mãe. «Há sempre gente para tudo!», diria ela em tais circunstâncias. Cumprimentava os muitos amigos, mais próximos uns que outros. E eis que alguém lhe diz, de supetão, «você perdeu!».
Mesmo com a actual legislação eleitoral – a revisão é dificilmente considerável numa legislatura de minoria e onde nenhum partido arrisca perder terreno - as eleições para os municípios ainda são aquelas que, para todos os efeitos (nos bons e nos piores exemplos), as pessoas contam mais em relação aos emblemas. Por isso mesmo Manuel apoiou desde sempre a sua amiga e companheira de clube de serviço, a perdedora nesta disputa eleitoral. Exactamente como o fez desde sempre com o amigo Mário Soares, tanto no primeiro pleito, disputadíssimo, como no último, onde aconteceu o mais certo de acontecer.
«Perdi?», retorquiu, «acha que em democracia alguém perde?». Ao interlocutor, agora empossado como deputado municipal, sempre o estimou. Estava com cara de poucos amigos. Anos antes foi uma das pessoas a procurá-lo para o convencer a disputar a candidatura contra o actual vencedor. «Olhe, votei em Sócrates», prosseguiu, «será que posso? Vejo que a política para si pode significar a renúncia às amizades». E continuou, acenos, apertos de mão…
Tem presente nos sentidos a ideia do quão incapacitante é o pensamento tatuagem. Os reflexos condicionados, como os tiques, instalam-se como imagens padrão no cérebro, a ponto de se libertarem progressivamente da consciência. Automatizam-se. Talvez ninguém se tenha ainda lembrado de perguntar ao Nobel Português da literatura, José Saramago – admira-o como escritor, considera ter escritos muito bons e outros menos conseguidos, chegou mesmo a dizer-lhe que deveria ter cortado as últimas quarenta páginas do Memorial do Convento, por baixarem sem proveito a qualidade do restante texto, mas nada comparável a Philip Ross, e como este vivem ou já faleceram escritores bem melhores e nunca receberam igual galardão -, «acredita no Gulag e nos extermínios de Estaline? Ai sim, e continua a identificar-se como comunista!?»
Várias pessoas lhe disseram ser tão difícil libertarem-se do ferrete do Vaticano (e, com certeza, do espírito das madrazas também), como dos partidos comunistas. E mais, frisaram-lhe, quando alguém logra abandonar tais movimentos dificilmente se liberta dos estereótipos impressos no cérebro.
Manuel julga-se um workaolic, continua a trabalhar catorze horas todos os dias. Dirigiu uns milhares de pessoas. Nunca excluiu quem quer que fosse. Mesmo quando, sabia-o, outros no seu lugar não deixariam de o fazer. Foi responsável por muitas tomadas de posição públicas, sempre baseadas na ciência e no interesse do bem comum. Quantos incómodos tal lhe acarretou? Nunca temeu escolher e trabalhar com os melhores, por entender ser essa a forma de construir. Mesmo sabendo serem tantos os que preferem rodear-se de paus mandados, que não roubam o lugar e «fazem a cama» para o que for preciso. Essa a razão pela qual tanto o irritam alguns chavões, usados a torto e a direito, sempre a denegrirem alguém, como o acento na ética, no «acredito na justiça», a fé de servo, inabalável, nos «organismos sem mácula», impróprios de humanos, o «não tenho tempo» ou o primado do mérito, em «os portugueses sabem», no verbo edulcorante da verdade ou até do amor.
Tatuagens, as da pele como as do cérebro, são difíceis de remover. Nas primeiras ainda há recurso à cirurgia, aos implantes, a pele das nádegas é óptima para isso. Mas as «lavagens ao cérebro» só substituem umas «imagens» por outras. As tatuagens desfeiam mesmo o corpo mais bonito. Talvez por isso, muito mais que os chavões de esquálida superioridade quando não de sacanice, feriu-o de sangue aquele espirro, «você perdeu!».
Henrique Pinto
Novembro 2009
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