terça-feira, 17 de novembro de 2009

OS HOMENS SÓ EXISTEM ATRAVÉS DAS SUAS OBRAS

(...) Com uma elegante modéstia, inseparável do cepticismo e da melancolia, ele assim o quis, recusando dar-se em espectáculo póstumo. Por isso, quando se soube da morte, os seus despojos mortais já haviam sido entregues à terra de Lignerolles, numa cerimónia íntima e sob o silêncio da manhã que ascendia. Nessa aldeia de 53 habitantes, na Côte d'Or, tinha há muitos anos uma casa de campo, cercada de árvores, onde se retirava a ler e a ouvir música. Quando saía, era para passear na floresta, contemplando a natureza intocada.
Claude Lévi-Strauss dizia que a celebridade lhe chegara por ter vivido muito, mas não era verdade. A glória vinha-lhe de ter pensado o mundo de maneira nova e de haver decifrado alguns dos códigos com que o nosso pensamento o pensa. Este Proust das sociedades sem escrita era, como o outro, um homem minucioso, perscrutador e subtil. Tinha uma cultura infinita e requintada. Sabia fausticamente de tudo: literatura e pintura, música e filosofia, ciências humanas e ciências exactas. Sabia, sobretudo, fazer disso uma sabedoria pessoal, veemente e desencantada.
Nele, havia "a originalidade, a potência e a fertilidade de espírito" que afirmou ser a marca de um grande homem. E escrevia sumptuosamente, na linhagem dos grandes prosadores franceses. Ler palavras como estas é ouvir uma música firme e altiva: "Vistas à escala dos milénios, as paixões humanas confundem-se. O tempo não acrescenta nem retira nada aos amores ou aos ódios sentidos pelos homens, aos seus compromissos, às suas lutas e às suas esperanças: ontem e hoje, são sempre os mesmos.
Suprimir ao acaso alguns séculos de história não afectaria de maneira sensível o nosso conhecimento da natureza humana. A única perda irreparável seria a das obras de arte que esses séculos teriam visto nascer. Porque os homens não diferem, nem sequer existem, senão através das suas obras."
Lévi-Strauss adorava a ópera, a pintura dos antigos mestres, os escritores clássicos e os objectos dos antiquários que visitava. Era um homem discreto e sóbrio. A sua voz não parecia vir do seu corpo alto e delgado. Perguntei um dia a Júlio Pomar, que o retratou com uma astúcia de psicólogo visual, como ele era na intimidade da pose. Pomar falou de timidez, de silêncio e de sabedoria. Depois, contou-me que a sua mulher lhe tinha dito que o retrato a tinha ajudado a compreender melhor o marido, tão enigmático e fugidio era, mesmo para ela.
Também a grande helenista Jacqueline de Romilly, sua colega na Academia Francesa, me falou dele e da sua assiduidade às sessões, que se transformavam em conversas, nas quais, sob a grande cúpula, a mais funda e precisa erudição se encontrava com a mais alta e criadora especulação. Na Academia, ele herdou a cadeira de Henry de Montherlant e, no dia em que nela se sentou, depois de ter citado a máxima de Charles de Brosses que diz "...é no homem que é necessário estudar o homem; não se trata de imaginar o que ele poderia ou deveria ter feito, mas de observar o que ele faz", elogiou ritualmente o grande escritor suicidado. Nesse discurso de entrada na Imortalidade oficial há também alguns traços de um auto-retrato. Sobre a ansiedade, cita Montherlant: "O que é trágico nos ansiosos é que eles têm sempre razões para o serem." No livro de diálogos que fez com Didier Eribon ("De Perto e de Longe"), Lévi-Strauss fala da sua vida como se fosse a de um outro a quem, com esforço, chama "eu".
Nos últimos anos, estava desencantado. E desencontrado com este tempo, que, desde há muito, já não considerava o dele: "Estamos num mundo a que já não pertenço. Aquele que conheci, aquele de que gostei, tinha 1500 milhões de habitantes. O mundo actual tem seis mil milhões de seres humanos. Já não é o meu." Os natalistas religiosos ou nacionalistas ficarão espantados com esta indignação radical perante o desastre demográfico e ecológico que não cessa. Mas ele citava Renan: "A maneira de se ter razão no futuro é, em certas horas, a de nos sabermos resignar a estar fora de moda."
Em verdade, o seu pessimismo apontava ao futuro: "No século em que estamos, um pessimismo radical representa talvez o único meio que nos resta de dar a um optimismo moderado a sua oportunidade." A pouco e pouco, Lévi-Strauss, que procurava a ordem por detrás do caos e a quem o actual tecnocentrismo desagradava, aproximou-se da cultura japonesa e do xintoísmo como filosofia universal de comunhão e serenidade. Escreveu sobre este fascínio algumas páginas deslumbrantes.
Depois de ter vivido um século, durante o qual tudo mudou, morreu Lévi-Strauss, aquele que um dia fez seu o princípio moral que diz: "Recusando todo o sentido à vida, esse que assim faz impõe a si mesmo a rude mas inevitável tarefa de lhe dar um." Foi essa a sua audácia? Ou foi apenas a sua condenação?
José Manuel dos Santos colunista regular do "Actual"
Texto publicado na edição do Expresso de 14 de Novembro de 2009
FOTOS: Cabeçalho do Jornal Expresso; Claude Lévy-Strauss, o filósofo francês recém falecido aos cem anos de idade

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