Olá meu caro amigo!
Obrigado pela sua carta a explicar-me o porquê de ainda aqui não chegar a fibra. Até me inspirou. Para além de muito me alegrar
poder ter mais fibra no Natal.
Na verdade, ao seu tempo - e usando as possibilidades que a
estatística hoje nos dá - Vianna da Motta foi, comparativamente, mais famoso no mundo que o Eusébio. E eu gosto muito do Eusébio, da sua arte impar, do seu estoicismo sempre explorado, da sua simplicidade. Vi-o jogar muitas vezes quando o Benfica ia a Coimbra.
Aquando do Europeu 2004 a TAP entendeu dar o nome de Eusébio a um avião que tinha o nome de Vianna da Motta. Perante um coro mínimo de protestos o administrador prometeu, um dos próximos aviões a chegar teria o nome do insigne mestre da cultura musical. Aviões há muitos, glosaria Vasco Santana, o nome retirado é que não voltou.
Estava longe de imaginar os habitantes da minha rua a serem prejudicados por o nome de Vianna da Motta estar registado
incorrectamente. Provavelmente o responsável camarário pela toponímia nem deu pelo lapso que ocasionou.
Numa noite bate-me à porta o vereador a dizer-me, feliz: «A
nossa rua já tem nome, chama-se Cidade de São Filipe! Concorda?». «Então e os vizinhos», perguntei, «também estão de acordo?». «Ah, não é preciso», foi a resposta. «Olhe, então a minha ideia, com franqueza, é que o método da Comissão de Toponímia a ser assim não me agrada. Por isso, seja qual for o nome, desaprovo a escolha». E a coisa ficou por aí.
A nova comissão, na vereação seguinte, entendeu colher um certo número de opiniões, sufragou-as pelo método mais simples - eu tinha proposto Calouste Gulbenkian mas não pegou, seria nome para avenida, disseram-me, mas, apesar do trabalho extraordinário nesta região da Fundação de tão ilustre patrono, tal nome ainda não honra nenhum dos nossos caminhos -, e o bairro ficou com topónimos interessantíssimos. A circunstância de por aqui viver então um escol cultural sonante, excelente tertúlia de amigos, e de o responsável pela toponímia ser pessoa culta, com a noção exacta do quão importante é perpetuar o mérito e o valor do exemplo, fez com que Guilhermina Suggia, Florbela Espanca ou Vianna da Motta, sejam apenas alguns dos nomes escolhidos para o lugar.
Já depois deste processo outra vereação atribuiu designações muito originais a uma bela urbanização próxima, são de se lhe tirar o chapéu, Rua e Largo da Bela Vista, Rua Belo Horizonte, Rua Pôr do Sol, entre outros.
A dada altura eu e amigos criámos um Banco de Famílias na cidade. Os aderentes recebiam em suas casas por alguns dias artistas de coros e orquestras, delegações culturais de todo o mundo, que então actuavam e nos visitavam aqui, no âmbito do programa de intercâmbio cultural Europa das Famílias, que promovi no Orfeão. Daí que, já noite fora, à conversa entre copos, um dos amigos, alemães de Rheine, cidade para cuja geminação contribuíra, me contou em sonora gargalhada, e mal sabia ele a história por inteiro, «sabe, a cerimónia demorou um bocadinho mais, ainda tiveram de tirar a placa Cidade de São Filipe e colocarem a nossa, Cidade de Rheine».
Quando estive pela primeira vez em Cabo Verde, a convite do ministro da educação e cultura do país, a nova e promissora presidente da autarquia, pediu-me para tentar perceber o que se passava com o contentor de bens enviado para a ilha do Fogo, há um ano formalmente no desconhecido absoluto. Com a permissão do protocolo do Estado desembarquei no aeroporto da Cidade de São Filipe e fiquei emocionadíssimo. Terra queimada, árida, a escorrer secura das escarpas, do vulcão até ao mar, gente fantástica, presidente idolatrado, apoio internacional nunca visto, humildade sem subserviência, alegria franca, tudo atributos a interferirem com as minhas recordações.
Numa aldeia pendurada sobre o Atlântico o presidente, cujo carro oficial, uma carrinha aberta, aboletava a todos que esticavam o braço, apresentou-me o médico, um cubano jovem, simpático, muito popular, todas as mulheres a procurarem-no para emparelhar na dança. Perguntei-lhe pelo nome por mal o ter ouvido, acedeu amável e orgulhoso, de supetão, «Fidel, como el Comandante!». «Como tratas os doentes, tens medicamentos?», retorqui-lhe. E as palavras doces feriram-me como estocada de punhal, involuntária, «nada, hablo con ellos».
O mínimo que pude conseguir foi desbloquear o processo alfandegário em São Vicente. Fidel pôde ter as mezinhas para exercer o seu ministério mais tranquilamente.
Os meios dificilmente justificarão os fins se pervertidos pela não
democraticidade. Mas era a gestão de uns anos antes, infelizmente a contagiar alguns dos que era suposto pensarem diferente. Estou seguro que de outra forma a nossa rua se chamaria hoje Cidade de São Filipe. E já teria fibra. Um abraço
Henrique Pinto
Obrigado pela sua carta a explicar-me o porquê de ainda aqui não chegar a fibra. Até me inspirou. Para além de muito me alegrar
poder ter mais fibra no Natal.
Na verdade, ao seu tempo - e usando as possibilidades que a
estatística hoje nos dá - Vianna da Motta foi, comparativamente, mais famoso no mundo que o Eusébio. E eu gosto muito do Eusébio, da sua arte impar, do seu estoicismo sempre explorado, da sua simplicidade. Vi-o jogar muitas vezes quando o Benfica ia a Coimbra.
Aquando do Europeu 2004 a TAP entendeu dar o nome de Eusébio a um avião que tinha o nome de Vianna da Motta. Perante um coro mínimo de protestos o administrador prometeu, um dos próximos aviões a chegar teria o nome do insigne mestre da cultura musical. Aviões há muitos, glosaria Vasco Santana, o nome retirado é que não voltou.
Estava longe de imaginar os habitantes da minha rua a serem prejudicados por o nome de Vianna da Motta estar registado
incorrectamente. Provavelmente o responsável camarário pela toponímia nem deu pelo lapso que ocasionou.
Numa noite bate-me à porta o vereador a dizer-me, feliz: «A
nossa rua já tem nome, chama-se Cidade de São Filipe! Concorda?». «Então e os vizinhos», perguntei, «também estão de acordo?». «Ah, não é preciso», foi a resposta. «Olhe, então a minha ideia, com franqueza, é que o método da Comissão de Toponímia a ser assim não me agrada. Por isso, seja qual for o nome, desaprovo a escolha». E a coisa ficou por aí.
A nova comissão, na vereação seguinte, entendeu colher um certo número de opiniões, sufragou-as pelo método mais simples - eu tinha proposto Calouste Gulbenkian mas não pegou, seria nome para avenida, disseram-me, mas, apesar do trabalho extraordinário nesta região da Fundação de tão ilustre patrono, tal nome ainda não honra nenhum dos nossos caminhos -, e o bairro ficou com topónimos interessantíssimos. A circunstância de por aqui viver então um escol cultural sonante, excelente tertúlia de amigos, e de o responsável pela toponímia ser pessoa culta, com a noção exacta do quão importante é perpetuar o mérito e o valor do exemplo, fez com que Guilhermina Suggia, Florbela Espanca ou Vianna da Motta, sejam apenas alguns dos nomes escolhidos para o lugar.
Já depois deste processo outra vereação atribuiu designações muito originais a uma bela urbanização próxima, são de se lhe tirar o chapéu, Rua e Largo da Bela Vista, Rua Belo Horizonte, Rua Pôr do Sol, entre outros.
A dada altura eu e amigos criámos um Banco de Famílias na cidade. Os aderentes recebiam em suas casas por alguns dias artistas de coros e orquestras, delegações culturais de todo o mundo, que então actuavam e nos visitavam aqui, no âmbito do programa de intercâmbio cultural Europa das Famílias, que promovi no Orfeão. Daí que, já noite fora, à conversa entre copos, um dos amigos, alemães de Rheine, cidade para cuja geminação contribuíra, me contou em sonora gargalhada, e mal sabia ele a história por inteiro, «sabe, a cerimónia demorou um bocadinho mais, ainda tiveram de tirar a placa Cidade de São Filipe e colocarem a nossa, Cidade de Rheine».
Quando estive pela primeira vez em Cabo Verde, a convite do ministro da educação e cultura do país, a nova e promissora presidente da autarquia, pediu-me para tentar perceber o que se passava com o contentor de bens enviado para a ilha do Fogo, há um ano formalmente no desconhecido absoluto. Com a permissão do protocolo do Estado desembarquei no aeroporto da Cidade de São Filipe e fiquei emocionadíssimo. Terra queimada, árida, a escorrer secura das escarpas, do vulcão até ao mar, gente fantástica, presidente idolatrado, apoio internacional nunca visto, humildade sem subserviência, alegria franca, tudo atributos a interferirem com as minhas recordações.
Numa aldeia pendurada sobre o Atlântico o presidente, cujo carro oficial, uma carrinha aberta, aboletava a todos que esticavam o braço, apresentou-me o médico, um cubano jovem, simpático, muito popular, todas as mulheres a procurarem-no para emparelhar na dança. Perguntei-lhe pelo nome por mal o ter ouvido, acedeu amável e orgulhoso, de supetão, «Fidel, como el Comandante!». «Como tratas os doentes, tens medicamentos?», retorqui-lhe. E as palavras doces feriram-me como estocada de punhal, involuntária, «nada, hablo con ellos».
O mínimo que pude conseguir foi desbloquear o processo alfandegário em São Vicente. Fidel pôde ter as mezinhas para exercer o seu ministério mais tranquilamente.
Os meios dificilmente justificarão os fins se pervertidos pela não
democraticidade. Mas era a gestão de uns anos antes, infelizmente a contagiar alguns dos que era suposto pensarem diferente. Estou seguro que de outra forma a nossa rua se chamaria hoje Cidade de São Filipe. E já teria fibra. Um abraço
Henrique Pinto
Novembro 2009
FOTOS: Vianna da Motta; Arquitecto António Monge Delgado, ex ministro da cultura de Cabo Verde, com Henrique Pinto, no Centro Cultural da Praia, Ilha de Santiago; Eusébio da Silva Ferreira
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