Quando os deputados se insultam no Parlamento e os candidatos a qualquer lugar procuram liquidar a concorrência, apelidando os «compagnons de route» de doentes mentais, pessoas de personalidade desdobrada - a estocada mortal do matador em praça arenosa, a ver-se já recebedor de rabos e orelhas -, a atitude em pouco diverge da dos condutores de automóvel, a atropelarem cidadãos em cima da passadeira.
Se lhes convier são os primeiros a apelarem à tolerância - remédio caro para poder ser aplicado de forma indiferenciada em todas as maleitas -, quantas vezes confundida com cinismo venenoso, a coexistir como fungos sobre fundamentalismos mal digeridos. É o espírito manobrador de sucateiros e demais chico-espertos, por entre abúlicos, ou a contrario, docilidade de eunucos perante o emir, dono e senhor das suas consciências.
Foi Esculápio quem disse, «o medicamento pode ser um veneno, é uma questão de dose». As causas destes traços eminentemente lusos não estarão por inteiro contidas nos muros externos e internos nem pelo tempo histórico ou relações cósmicas. Mas distinguem significativamente os portugueses dos outros povos europeus.
A história recente da Gripe A deu-nos um elucidativo exemplo de terror ignaro. Bastou que os argumentos, anónimos ou falsamente apadrinhados, sórdidos e catastrofistas, a viajarem há muito na net e nos e mails a propósito de tudo e de nada – e aqui Miguel Sousa Tavares tem a sua apreensão mais do que justificada –, fizessem o seu curso. Aí estão dois ou três dignitários de casaca e chapéu alto a caírem no logro ou a servirem-se dele. A vacina passa a ser causa de todos os males. Lembrar a polémica e ensombrada demissão do ministro Correia de Campos. Depois dela, taumaturgo desiderato, não aconteceram mais partos nas ambulâncias.
Já citei vezes sem conta o drama sobrante da ignorância e absurda crendice de M’Becki, ex presidente da África do Sul. A sua fé nas atoardas que enchem milhares de páginas virtuais, caldeada por lendas e verdades distorcidas, calcinadas, levou-o a proibir a importação de medicamentos retrovirais. O seu país tem hoje, exactamente por essa fragilidade espiritual, perto de dez milhões de órfãos da SIDA.
Os Bastonários das Ordens dos Médicos espanhola e portuguesa e a ministra da saúde de Espanha tiveram igual postura inicial, relativamente à gripe A. Influenciaram negativamente muitas pessoas, incluindo profissionais. Todos os envolvidos terão legitimidade de produzir declarações públicas. No entanto, é bom saberem também que sabemos, qualquer cidadão sem o grau de entendimento científico destes oradores, poderá tristemente ganhar o direito de os processar em sede de justiça, caso lhe tenha caído em casa a fatalidade e isso coincida com o neles ter acreditado.
Ora, sabe-se, nenhum de tais expoentes da ciência médica e da política ibéricas tem conhecimentos suficientes de saúde pública ou de virologia para se poderem abalançar por si sós neste caminho. Tivessem ao menos o mútuo receio de Eça e Ramalho em calcorrear noite fora a estrada de Sintra, não fosse o outro estar seguro nas enormidades tenebrosas que escrevera no capítulo anterior!
Ainda hoje, mesmo avatares da medicina, não resistem a alterar por inteiro a medicação ou a interpretação do colega, mesmo se isso vem a debilitar vida fora a estrutura osteomuscular dum jovem na dependência de tantos outros eixos biomecânicos, ou a dum velho, obra feita de milhentos cruzamentos biológicos, pela incapacidade em irem mais além sem deixarem de alardear serviço. Inveja e autocontemplação narcísica, como a relativa ignorância do que é a estrutura física e mental de alguém que atravessou décadas em permanente transformação interior, iguala certos clínicos aos jovens turcos ou jovens velhos da praxis política. Os que não são assessores de governos à saída da faculdade, como dantes calhava a herdeiros de lentes ilustres, cedo aprendem, quanto mais tarde se calarem menos o opositor fala. Se mais velhos, basta-lhes citarem duas ou três taxas da crua realidade africana e dizerem da necessidade em «dar um murro na mesa». Desde logo dão lições a Roma e a Washington.
Tratos de polé sofridos por jovens e velhos à mercê dos sábios são os mesmos a vitimarem a saúde pública enquanto ciência e quantos a estudam e praticam, logo rotulados de idealistas ou lunáticos. Esta alergia tipifica mais um comportamento imanente a um escol de portugueses.
Lidar com a doença a um nível macro ou apostar na sua prevenção de escala implica utilizar bem conhecimentos clínicos, epidemiológicos, históricos e sociológicos, no respeito absoluto pelo método científico. Não tem os «aliciantes» financeiros da clínica privada ou do seu exercício dentro do sistema público, assaz frequente entre nós. Logo, só segue um tal leque de carreiras quem, como os investigadores, tem a capacidade de antecipar cientificamente conclusões sobre o longo prazo e lidar com elas como o seu bloco de receitas ou o bisturi. E ainda quem projectou a sua vida no não procurar ter mais do que aquilo de que necessita para viver bem.
Henrique Pinto
Dezembro 09
FOTO: Hipertrofia do Ego (foto José Amorim, Brasil)
Sem comentários:
Enviar um comentário