O director provincial de saúde está a substituir o jovem director clínico do Hospital do Dundo, que vi sorridente e com bom aspecto mas que no dia seguinte já estava em Luanda e nunca mais apareceu. Estava doente ao que se diz. E não é por não cuidar da sua saúde porque ainda uns dias atrás deixou o motor do carro oficial a trabalhar durante três horas para o manter fresco pelo ar condicionado.
Então o director com uma voz cava e doce, tranquila, falava com lassidão para os médicos, hirsutos em tensa postura respeitosa sentados à volta da mesa da biblioteca, e para os «enfermeiros» empoleirados nos móveis em redor, olhos esbugalhados, quiçá pelo álcool e pela ignorância, bocejos longos, ostensivos. «
Olhe que se o doente fez coma tem de lhe mandar fazer uma punção lombar». E alongava as explicações na mesma pose pedagógica e tom de voz de perseverante mansidão. Mas a abulia dos circunstantes intrigou-me até perceber que nenhum dos clínicos, vietnamitas e norte coreanos, percebera uma singela palavrinha. Mais, não só desconhecem a língua – encontrei excepções – como nunca estudaram nem sabem diagnosticar a patologia tropical com que têm de lidar. São um perigo público.
Ouvi mesmo a este doutor «
calado, esse é diagnóstico de privado, é só para chatear, nada de notificar». Dirigia-se a um seu colaborador. As suspeitas tanto podem ser febre-amarela ou hemorrágica como poliomielite...
Esta farsa, o ar de faz-de-conta, é apenas raramente interrompido em
clusters de interesse porventura genuíno e altruísta a que me referirei noutro local. Um conhecido escritor angolano não situacionista respondia noutro dia a uma entrevistadora insonsa da Antena 1 em Portugal, «
Mais corrupção em Angola que noutro local?...pura mistificação, por acaso conhece a África?». E o pugilista angolano campeão de África no Togo não recebeu o prémio de 10000 dólares porque não estava incluído no ranking dos dez melhores do continente. «
Coisas de África!», ouve-se nos noticiários.
Já vi este filme do faz-de-conta noutras latitudes. Em regra é muito útil para quem manda, pelo menos para um certo tipo de dirigentes.
Num país que procura emergir com algum crédito na comunidade internacional, vencida até certo ponto a fase eminentemente bélica, guerra civil fratricida de efeitos nunca comparáveis a um colonialismo que praticamente em pouco terá sido uma verdadeira instituição, esta fase de transição – tanto mais quanto a formação dos recursos humanos é quase ficção – é francamente dura de ultrapassar. Dificuldade que cresce num clima de regionalização típica do desenvolvimento, mas que quebrou os laços da ligação vertical, mesmo ao nível técnico, e onde será árduo repor ou instalar alguma consistência e coerência, uma supervisão com capacidade negocial dissuasora.
Não é custoso apercebermo-nos que sem o estímulo financeiro e técnico que veio de fora (…), entrou muito dinheiro no país, das Nações Unidas através da OMS e da UNICEF, do CDC dos Estados Unidos, e pouco se teria estruturado no âmbito da vigilância epidemiológica, do combate à doença, da organização mínima de serviços. Não se teria ido tão longe. Bem ou mal estimulou-se uma política de incentivos, quase de subsídio à peça para determinado tipo de funcionários provinciais, que funcionou melhor ou pior enquanto houve dinheiro. Quando a própria OMS começa a atrasar os ordenados aos seus colaboradores nas províncias, são eles mesmos, coitados, que pagam o gasóleo e os pneus enquanto o dinheiro não chega ao banco, e depois nunca mais há acerto de contas, pouco mais há a esperar deste tipo de estruturação.
Entre os funcionários internacionais há de tudo. Desde os que de alma e coração querem participar numa vitória histórica sobre a doença, quais soldados da Humanidade, aos idealistas de todas as utopias da esquerda estalinista que se foram acomodando e subsistindo. Pelo meio há um rol extenso de mestres e doutores jovens, saídos das melhores universidades do mundo, mas em que alguns estão contratados em regime de
per diem, um estado que não se importam de prolongar porque não há emprego nos seus países, e por isso poupam na comida e se submetem, escrevem relatórios conformistas com críticas domesticadas. É com certeza o mais moderno dos sistemas de
exploração da inteligência. Mas há também aqueles pavões que vêm da OMS/AFRO de Brazzaville ou Harare, e deixam meio mundo assustado com a sua supervisão. É gente sequiosa do luxo e mordomias. Fazem-me lembrar uma história que me contou o bispo D. Manuel Martins sobre certos cardeais africanos quando vão ao Vaticano e mal saem correm às ourivesarias de Roma a comprarem belos anéis, cachuchos para ostentação de poder.
Neste lastro houve oportunidade para que algum mercenarismo tecnicamente qualificado e com artes de ganhar ascendente sobre os demais hoje mais não queira que somar argumentos e peças de currículo para dar o salto para outro grau ou outra latitude das organizações. É aqui que se o lugar e os contactos lho permitem se criam as mistificações. Um sistema de vigilância epidemiológica é essencial ao país. Mas se o terreno não lhe é favorável e eventualmente seja comprometedor perante a estrutura dirigente do país criar complicações falando dos problemas, então constroem-se instrumentos de estudo que nada acrescentam ao país real mas que servem como elemento de promoção, sobretudo quando se pode utilizar alguma
inteligentzia respeitada como seguro de credibilidade.
Esta sofisticação do faz-de-conta não se limita a semelhante tipo de personagens. Ninguém acredita nas intenções desinteressadas de muitas das ONGs que actuam na área social. Mas não só...
O DC9 da Air Gemini estava cheio, muitos passageiros eram crianças, mais que muitos eram russos com ar de personagens dos Sopranos, que, ao que parece, controlam as explorações diamantíferas nacionais. A dada altura as hospedeiras iniciam um puzzle complicado, mudam passageiros daqui para ali, as crianças passam para o colo das mães, mesmo duas por vezes, com uma passividade notória e o arranjo inicial muda por completo. Ouve-se alguém que pergunta se «
as crianças não pagam?», «
não senhor, pagam, mas eles metem mais passageiro». Mas são companhias como esta que estão certificadas pelos oficiais da segurança das Nações Unidas localmente, para transporte dos colaboradores da organização. Os voos internos da TAAG, por exemplo, não o estão.
São minudências normais de qualquer momento fulcral de mudanças com esta dimensão e que o tempo esbaterá. Todavia, há muito boa alma que fará julgamentos do género «
por isso mesmo não dou nada para essa gente». É fraco o expediente para alívio de qualquer consciência. O sanguinário Pôncio Pilatos, procurador romano na Judeia, decidida por outrem a condenação de Jesus lavou as mãos num distanciamento cínico. «Liderança e aprendizagem são indispensáveis uma à outra», acentuava John Kennedy. A cooperação internacional enformada neste princípio é um desígnio humanitário de excelência. Para afinar os instrumentos do diálogo. Mais para não se quedar indiferente perante a injustiça e menos no receio de se tornar avalista ingénuo dos seus perpetradores. Só ajuda quem quer, às vezes mesmo não podendo. Ajuda quem até sem o saber contribui com a última gota que enche o oceano.
Henrique Pinto In Até o Diabo Tem as Malas Feitas, edição MinervaCoimbra
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