Sabe-se que as primeiras damas se hostilizam com discrição. «
Há anos quando convidei uma alta personalidade no defeso», lamenta-se um ilustre do jet set, «
foi-me imposta a condição de não estar presente quem lhe sucedera». Dir-se-á que são hábitos antigos, faltas venais. Mas também é do senso comum que para muitos se maiores são as loas que deitam ao respeito pelos princípios da democracia, mais se apressam a questioná-los quando o ambiente lhes é turvo. Quantas vezes os cordatos, mesmo que à prova de bala, se mostram grosseiros sem pudor quando contrariados. A natureza humana revela-se fraca e imprevisível se lhe faltam as regras e as instituições são fracas. Ao prevalecer
um modelo de sociedade sem opiniões robustas autónomas das dos partidos e sem um montante expressivo de obras independentes do estado, quem para além do espectro de ignorância e demagogia pode julgar interiorizar o sentido de democracia estabilizada? Dizer-se da democracia que está em crise quando as suas regras funcionam não caberá neste mesmo quadro meio esquizofrénico?
A propósito do Euro 2004 Eduardo Lourenço escreveu sobre a suposta «nostalgia do esplendor» em que «(...)
a do fantástico revivalismo patriótico dos últimos vinte dias vive dessa pulsão de contornos, ao mesmo tempo sublimes e mórbidos e por isso, mais do que inquietantes, se não conseguirmos separar, na emoção e na exaltação positivas de um sucesso merecido, os laivos de ressentimento e do complexo de frustração que ainda as ensombram». Um complexo que, qual fogagem no corpo, parece inquietar também os dias que antecedem a certeza quanto ao próximo governo do país.
Todavia, essa «
epidemia das bandeiras», o epíteto elitista de Augusto Seabra, este cosmopolitismo de povo acolhedor, vibrante, tem também muito do sentido de pertença, do orgulho de ser que, tal como a auto estima em falta, muitos sociólogos tinham por dificilmente reversível. Quando a globalização é o manto comum, é ainda a voz de Eduardo Lourenço, «
uma espécie de dissolução de uma universalidade sem vivência assumida e personalizada, assistir ao regresso do “nacional”, do próximo, do nosso, do só nosso, como fonte de exaltação e de complacência a nenhuma outra comparável», configura uma imagem de quase paradoxo.
E que saudável contraditório este surpreendente exorcismo da frustração quando
balancear entre o tudo e o nada é o tique predominante da linguagem corrente na comunicação escrita e falada! No que a nós respeita
Alain Minc equivocou-se em cheio ao prefigurar um jornalismo de jornalistas a sobrepor-se a uma comunicação de interesses. No fim de contas, esta propriedade da palavra e a sua utilização como artilharia pesada na «guerra civil dos quotidianos» é, porventura, pecha séria da democracia portuguesa.
O que seria de nós se pudessem ver-se muitas outras formas de estar audaciosas e diversas a emergirem do pessimismo? Mesmo um descrente crónico do país lembrava há tempos que uma empresa alemã instalada em Portugal, só com técnicos e gestores lusos, encabeçava a relação das que apresentavam melhor qualidade de processo e resultados. A que se deve tal desempenho? Ao ordenamento das regras de trabalho e ao grau de exigência e rigor, seguramente, como à formação profissional de quem opera. Pouco importa avivar agora quem foram os responsáveis pelo mau uso do dinheiro que cá chegou e podia ter representado um enriquecimento neste domínio chave. Ao dizer que «(...)
a entrada na União Europeia ajudou muito à passagem da efémera hegemonia da classe industrial para um híbrido social que designaremos de negócios e eventos» Medeiros Ferreira estará a apontar-nos que isso é condenável em si? Ele tem condições melhores que muitos para saber da enorme consideração por Portugal constatável na maior parte do mundo. E que por ser o turismo uma das opções estratégicas mais enfatizadas da economia portuguesa os sucessos de eficiência nesta área são à partida favoráveis ao país. Portugal tem a capacidade de organizar acontecimentos com qualidade e volume que demasiados países mais fortes não têm. Para isso contribuíram alguns desses investimentos que não escaparam à contestação, a versatilidade dos operadores e o espírito empreendedor de portugueses notáveis.
É obviamente relevante para Portugal que um dos seus cidadãos ocupe de novo o cargo de presidente da Comissão Europeia, ainda que com alguns custos sociais legítimos iniciais. A importância pode não residir em exclusivo no facto em si mas numa convergência de razões em que o prestígio é o factor comum.
Jean Monnet, o homem que durante toda a primeira metade do século XX, sem esmorecimento, impulsionou grande parte dos mecanismos de relação inter países, de defesa face à opressão e de solidariedade dos possuintes para com aqueles que mais precisam, até à génese da actual estrutura económica e política pan-europeia, refere nas suas Memórias que «
a única catástrofe é o abandono de si mesmo». Um desprendimento que para Portugal bem poderia tomar a forma dum infeliz regresso à auto-condescendência.
Que bom seria se esta fabulosa mutação simbólica em relação à imagem colectiva dos portugueses – e pena é que só o futebol o tenha proporcionado – pudesse indiciar o ocaso do discurso de comiseração sobre si próprios!
Mas vinte dias não bastam. Não se pode passar ao lado da experiência. E esta mostra que os homens só aceitam a mudança quando a necessidade os empurra. Mas só reconhecem a necessidade quando há crise. É pois crucial que, dentro da ética, sem messianismos, a democracia tenha as virtualidades de proporcionar o emergir de líderes e políticas com a ambição e os dons da mudança. Homens e Mulheres sensíveis a que os estímulos positivos, motivadores, capazes de mobilizarem os portugueses para um estádio económico e social mais elevado da democracia, se sobreponham por muito tempo às paixões da divisão espúria, do gasto demagógico e do mando inconsequente.
Este caminho terá escolhos. Mas talvez não tantos como os necessários para suster os apetites aos clones de Häider, Perón, Berlusconi, Mugabe....
e tutti quanti.
Hpinto In Jornal Região de Leiria
FOTO: Jean Monnet
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