sexta-feira, 28 de agosto de 2009

PAIXÕES DA MUDANÇA


Sabe-se que as primeiras damas se hostilizam com discrição. «Há anos quando convidei uma alta personalidade no defeso», lamenta-se um ilustre do jet set, «foi-me imposta a condição de não estar presente quem lhe sucedera». Dir-se-á que são hábitos antigos, faltas venais. Mas também é do senso comum que para muitos se maiores são as loas que deitam ao respeito pelos princípios da democracia, mais se apressam a questioná-los quando o ambiente lhes é turvo. Quantas vezes os cordatos, mesmo que à prova de bala, se mostram grosseiros sem pudor quando contrariados. A natureza humana revela-se fraca e imprevisível se lhe faltam as regras e as instituições são fracas. Ao prevalecer um modelo de sociedade sem opiniões robustas autónomas das dos partidos e sem um montante expressivo de obras independentes do estado, quem para além do espectro de ignorância e demagogia pode julgar interiorizar o sentido de democracia estabilizada? Dizer-se da democracia que está em crise quando as suas regras funcionam não caberá neste mesmo quadro meio esquizofrénico?
A propósito do Euro 2004 Eduardo Lourenço escreveu sobre a suposta «nostalgia do esplendor» em que «(...) a do fantástico revivalismo patriótico dos últimos vinte dias vive dessa pulsão de contornos, ao mesmo tempo sublimes e mórbidos e por isso, mais do que inquietantes, se não conseguirmos separar, na emoção e na exaltação positivas de um sucesso merecido, os laivos de ressentimento e do complexo de frustração que ainda as ensombram». Um complexo que, qual fogagem no corpo, parece inquietar também os dias que antecedem a certeza quanto ao próximo governo do país.
Todavia, essa «epidemia das bandeiras», o epíteto elitista de Augusto Seabra, este cosmopolitismo de povo acolhedor, vibrante, tem também muito do sentido de pertença, do orgulho de ser que, tal como a auto estima em falta, muitos sociólogos tinham por dificilmente reversível. Quando a globalização é o manto comum, é ainda a voz de Eduardo Lourenço, «uma espécie de dissolução de uma universalidade sem vivência assumida e personalizada, assistir ao regresso do “nacional”, do próximo, do nosso, do só nosso, como fonte de exaltação e de complacência a nenhuma outra comparável», configura uma imagem de quase paradoxo.
E que saudável contraditório este surpreendente exorcismo da frustração quando balancear entre o tudo e o nada é o tique predominante da linguagem corrente na comunicação escrita e falada! No que a nós respeita Alain Minc equivocou-se em cheio ao prefigurar um jornalismo de jornalistas a sobrepor-se a uma comunicação de interesses. No fim de contas, esta propriedade da palavra e a sua utilização como artilharia pesada na «guerra civil dos quotidianos» é, porventura, pecha séria da democracia portuguesa.
O que seria de nós se pudessem ver-se muitas outras formas de estar audaciosas e diversas a emergirem do pessimismo? Mesmo um descrente crónico do país lembrava há tempos que uma empresa alemã instalada em Portugal, só com técnicos e gestores lusos, encabeçava a relação das que apresentavam melhor qualidade de processo e resultados. A que se deve tal desempenho? Ao ordenamento das regras de trabalho e ao grau de exigência e rigor, seguramente, como à formação profissional de quem opera. Pouco importa avivar agora quem foram os responsáveis pelo mau uso do dinheiro que cá chegou e podia ter representado um enriquecimento neste domínio chave. Ao dizer que «(...) a entrada na União Europeia ajudou muito à passagem da efémera hegemonia da classe industrial para um híbrido social que designaremos de negócios e eventos» Medeiros Ferreira estará a apontar-nos que isso é condenável em si? Ele tem condições melhores que muitos para saber da enorme consideração por Portugal constatável na maior parte do mundo. E que por ser o turismo uma das opções estratégicas mais enfatizadas da economia portuguesa os sucessos de eficiência nesta área são à partida favoráveis ao país. Portugal tem a capacidade de organizar acontecimentos com qualidade e volume que demasiados países mais fortes não têm. Para isso contribuíram alguns desses investimentos que não escaparam à contestação, a versatilidade dos operadores e o espírito empreendedor de portugueses notáveis.
É obviamente relevante para Portugal que um dos seus cidadãos ocupe de novo o cargo de presidente da Comissão Europeia, ainda que com alguns custos sociais legítimos iniciais. A importância pode não residir em exclusivo no facto em si mas numa convergência de razões em que o prestígio é o factor comum.
Jean Monnet, o homem que durante toda a primeira metade do século XX, sem esmorecimento, impulsionou grande parte dos mecanismos de relação inter países, de defesa face à opressão e de solidariedade dos possuintes para com aqueles que mais precisam, até à génese da actual estrutura económica e política pan-europeia, refere nas suas Memórias que «a única catástrofe é o abandono de si mesmo». Um desprendimento que para Portugal bem poderia tomar a forma dum infeliz regresso à auto-condescendência.
Que bom seria se esta fabulosa mutação simbólica em relação à imagem colectiva dos portugueses – e pena é que só o futebol o tenha proporcionado – pudesse indiciar o ocaso do discurso de comiseração sobre si próprios!
Mas vinte dias não bastam. Não se pode passar ao lado da experiência. E esta mostra que os homens só aceitam a mudança quando a necessidade os empurra. Mas só reconhecem a necessidade quando há crise. É pois crucial que, dentro da ética, sem messianismos, a democracia tenha as virtualidades de proporcionar o emergir de líderes e políticas com a ambição e os dons da mudança. Homens e Mulheres sensíveis a que os estímulos positivos, motivadores, capazes de mobilizarem os portugueses para um estádio económico e social mais elevado da democracia, se sobreponham por muito tempo às paixões da divisão espúria, do gasto demagógico e do mando inconsequente.
Este caminho terá escolhos. Mas talvez não tantos como os necessários para suster os apetites aos clones de Häider, Perón, Berlusconi, Mugabe....e tutti quanti.

Hpinto

In Jornal Região de Leiria

FOTO: Jean Monnet

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