Há pelo menos cinco dimensões que me fascinam sobremaneira na Exposição «Encompassing the Globe, Portugal e o Mundo dos séculos XVI e XVII», produção da Smithsonian Institution com trabalho científico de Jay Levensen, Jean Michel Massing, Julian Raby, Regina Khral e James Ulak, em articulação com Nuno Vassalo e Silva, patente no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.
Em primeiro lugar trata-se dum olhar sobre o país advindo de fora, sem cumplicidades e patriotismos de fingimento. Os portugueses que estão na casa dos cinquenta estudaram uma suposta história de Portugal, enviesada, dum nacionalismo exacerbado, escrita por A. G. Mattoso à imagem do Estado Novo. Os Descobrimentos eram apresentados como a base do império «Portugal do Minho a Timor», hipertrofiados acriticamente. O alegado falseamento da sua descrição e o seu uso por tudo e por nada, a enaltecer o País, porventura o país mental de Salazar, podia uma vez por outra não ser filho da desconfiança. Mas incutia no espírito de muitos estudantes uma atitude de negação e enfado. A sorte de escapar a este martírio devo-a a um professor magnífico do então Liceu Nacional de Oeiras, Luís Ardisson Pereira. Estudioso muito sério, tudo fazia para enquadrar os alunos tanto quanto podia no gosto pela história e no sentido do rigor. Talvez lhe deva também o querer com que esperei por uma exposição desta envergadura.
Depois, as obras de arte expostas, valiosíssimas e raras, reflectem em grande medida uma aproximação pouco explorada. Mostram como os povos contactados pelos navegadores portugueses viram os seus próprios descobridores ou responderam às suas encomendas, nomeadamente artísticas.
Uma outra das dimensões que me tocam é assinalada por Paulo Henrique, director do MNAA, como o «paradigma que caracteriza o País». Refere-se ao facto de acervo substantivo dos «patrimónios próprios, geradores de identidade nacional, prestígio e riqueza», se encontrar afinal disperso pelo mundo, em favor, acentua, do efémero, «do imediato e das práticas individualistas». Constatamos esse êxodo do notável património artístico português na relação extensa de grandes museus e colecções do mundo que cederam materiais para este evento. Curiosamente, enquanto o MNAA expõe nesta mostra algumas obras cedidas pelo Museu Vitória e Albert de Londres, ao mesmo tempo esta instituição dedica toda uma sala à arte barroca portuguesa, na exposição «Barroco (1620-1800), Estilo na Era da Magnificência», cedida por aquele, numa política de intercâmbios muito enriquecedora.
O foco da exposição é outro dos aspectos que relevo. Com o cerne na visão de Portugal dos séculos XVI e XVII, os primórdios das navegações, no século XV, pouco divulgados e contextualizados do ponto de vista da arte, assumem aqui a devida importância. Tudo começa com o aperfeiçoar duma vasta rede de conhecimento, que se desenvolveu até ao período da modernidade. A documentação de importantes arquivos italianos revela caminhos diversos. Durante o século XV, os primeiros cem anos da expansão, fase crucial da História portuguesa e universal, a corte lusa e destacados eclesiásticos encomendaram estudos cosmográficos de Florença e Veneza. No dealbar de seiscentos são as cortes italianas que tentam adquirir padrões reais, cartografia dos oceanos Atlântico e Índico e relatos de viagens escritos e desenhados, alvo de justificado secretismo da política real portuguesa.
A exposição dá de Lisboa a imagem de grande porta para o Mundo, «lugar de chegada das mais exóticas mercadorias, conhecimentos e gentes que, circulando pela Europa, alteraram os hábitos do quotidiano e do pensamento, científico e filosófico».
Gostei particularmente de algumas peças: Padrão de 1483, mapas, Painéis de Nuno Gonçalves (rever), do século XV; escudos e marionetas da Ásia; esculturas em pedra e marfim da Serra Leoa e marfins afro português, de África; engenhos de açúcar, aspectos da escravatura, artes do Brasil antes da idade de ouro e «adoração de magos», de 1509, de Francisco Henriques, no que toca ao Brasil; aguarela sobre os portugueses em Ormuz, caixas de madeira e laca do Golfo de Bengala ou Cochim, no respeitante a Índia e Ceilão; estátua O Arcanjo, de Macau do século XVII, porcelana chinesa e muito particularmente um atlas do século XIII, quanto à China, e os biombos, Arte Namban, armas e oratórios, do Japão.
A versão da exposição de Lisboa é mais rica que as apreciadas na Frier and Sackler Gallery, de Washington, e no Palais dés Beaux Arts, de Bruxelas, em 2007. Em consonância com o traçado inicialmente, integra tesouros nacionais, sempre desejados pelos responsáveis científicos mas que, por condicionalismos técnicos, não foi possível disponibilizar então.
Depois de admirar este espólio o fantástico museu Jean Nouvel, do Quais Branly, em Paris, que visitamos em Abril, quase se nos afigura diminuído e paupérrimo.
HpintoAgosto 2009
(Texto inspirado no excelente catálogo da exposição do MNAA)
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