Há trinta anos vivíamos a agonia do regime instaurado em 1926 com a sublevação militar de Afonso Costa, e que com o longo consulado de Salazar e a mão de Marcelo Caetano já no estertor, se prolongaria por cinco décadas.
Aqueles dias de Março e Abril eram ainda assim interessantes. Fluía um sentir escatológico, a sensação de
qualquer coisa que estava a mudar, mas em que direcção?
Pela primeira vez numa história multissecular como nação Portugal sacudiu o autoritarismo centralista, cheirou a frescura física e espiritual da democracia com o uso pleno da liberdade de expressão, de criação. Sentia-se que era necessário modificar o homem, a cidade. Havia que inventar o futuro. Tudo era política, dizia-se, à luz dum marxismo mal deglutido. Mas algo escapava à política. Em termos muito concretos, cada um devia modificar-se a si próprio.
Em pouco mais de três décadas operámos a maior transformação de sempre. Mas o grande risco das experiências comunitárias é
o sectarismo que leva a vivermos fechados sobre nós próprios. Para o evitar há que passar por várias experiências, deixar que elas nos enriqueçam. O empenhamento social é assaz importante. Procurar responder aos desafios do universo obriga ao esquecimento de nós. Alguém pode dedicar todo o seu tempo a procurar mediações internas. Mas a alegria, as esperanças, as angústias alheias, obrigam-nos a sair da nossa própria lógica interna e de auto – referência. Incitam-nos a sair da casa construída com esmero.
Atente-se na palavra dos analistas nativos no maior órgão de comunicação escrita nacional, ou mesmo na de comentadores televisivos de meios universitários, é fácil apercebermo-nos dos efeitos perversos dum
neoconservadorismo inventivo mas fruste por igualmente ingerido em correria. Um ar ilusório que lhe sobrevém, não tanto do sentido que lhe deu
Irving Kristol, mas na pior das asserções porque inamovível no desdém pelo diálogo, ao jeito da guerra fria. Uma mentalidade de tédio dum mundo bipolar, como o conhecemos há pouco, dividido entre Bush e o terrorismo, por exemplo. Coisa impensável nas grandes revistas mundiais, da Time à Newsweek. A clareza das suas análises faz esquecer as teses deste alinhamento enviesado ao arrepio duma estimulante multipolaridade.
Dialogar é um imperativo hodierno. Nestes dias, dando-me à cogitação numa das esplanadas fascinantes sobre o Bósforo, imerso num cosmopolitismo que certa política e cultura centro europeias ostensivamente ignoram, ocorreu-me – não sendo um nostálgico do sistema otomano –, que, traço bem vivo ainda na Istambul moderna, numa Europa intolerante cristãos e judeus puderam viver tranquilamente num estado confessional muçulmano.
Mas o diálogo não é coisa de dez anos ao fim dos quais se possa fazer um balanço. É escolha que compromete uma época, que se cultiva num século, que implica as opiniões públicas.
Tudo querer decidir a alto nível é sempre um enfraquecimento, um sinal de envelhecimento.
Hpinto In Jornal Região de Leiria
FOTO: Irving Kristol, um dos gurus dos neocoms
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