Na
Plaza Maior da Madrid dos
Austrias eterniza-se o ritual de degustar o pescado frito e a cidra no bar andaluz La torre del Oro. Fotos de Cordobés com Bob Kennedy, de Manolete e Gina Lollobrigida, de Hemingway, à mistura com mil cartazes de tardes de
fiesta e de tantos outros diestros, ornam as paredes. Um televisor de dimensões pouco comuns passa elegantes
faenas de todos os tempos. Tão pouco se ouve um murmúrio sobre o infeliz passamento da diva cor de rosa Cármen Ordóñez, ela mesma filha de Paco Ordóñez, mulher de Paquirri, sobrinha de Dominguin, cujos rostos se multiplicam ali.
É um lugar de culto e nostalgia. Conhecera-o há perto de quarenta anos quando num périplo por toda a Espanha, tenda e demais alfaias na bagageira, fazia uma quase lua-de-mel com a mulher da sua vida. Coimbra, onde a filha continua como estudante, o fascínio por aquele que foi um dos ambientes académicos mais envolventes, está-lhes no sangue. O Verão anterior, aquele em que lhes tocou na alma o ferrete da paixão – sentem ainda que para sempre –, vértice do protesto contra o regime político, a injustiça, pela democracia, marca-os decisivamente como à história contemporânea do país.
Terá sido o Verão da sua vida...
Mas que dizer daqueles repetidos meses estivais em que aprendera a dominar o inglês com as
bifas desinibidas que vinham em busca da praia e do namoro? Como quando miúdo atrevido fez
casting com Peter Vaughn, Zsa Zsa Gabor e Judy Geeson em Hammerhead, película rodada no rincão precioso de Cascais que foi Santa Marta. Que brincadeiras aquelas tão divertidas que a malta – ele e o Oliveira, hoje meio dono de Newark, o Álvaro que jogava nos miúdos do Benfica, o Jorge e o Américo, filhos dos faroleiros, amigos do peito – não consegue esquecer?
Sabe-o hoje como ninguém, pela força do ofício e pelas alegrias que a ousadia continua a suscitar-lhe, que os períodos mais belos da existência de cada um não têm necessariamente de situar-se num passado distante, normalmente evocado com mais vivacidade quando a aterosclerose filtra tudo o que é recente. Aos vinte e poucos anos depois de viver Londres como bolseiro da Organização Mundial de Saúde podia ter partido para uma carreira internacional. Mas tudo estava por fazer neste país. O apelo íntimo para se envolver nesse futuro, numa generosidade alheia aos cantos de sereia da política, prendeu-o numa teia de cumplicidades tão fascinante que o tempo passou incógnito.
E eis que anos atrás com os companheiros nórdicos do
Doctor’s Bank se lhe proporcionara ser médico voluntário em África na campanha pelo fim da Paralisia Infantil. A morte rondando cada criança nos musseques como em Kilamba Kiaxi na Luanda infinda de bairros de chapa, as crianças várias vezes órfãs graças à epidemia de HIV – quando apenas a Comunidade de Santo Egídio de Roma, entre as entidades religiosas, oferece aos africanos alguma oportunidade de redenção cientificamente válida –, uma calamidade que destrói até à exaustão as aldeias do planalto do Quénia, ali aos pés do romântico Kilimanjaro, avivaram-lhe a propensão solidária. Ali estavam os feitos que mudam a vida da humanidade.
O Verão passado, então observador internacional das Nações Unidas, é até ver o outro Verão da sua vida. Entrar em Port-au-Prince pela fronteira dominicana porque o aeroporto haitiano não tem luz, os esgotos a fluírem pelas ruas da capital, tão perto da Florida, ou ir até Kandaar onde milhares de afegãos sobrevivem como ratos, doentes, nas cavernas que as bombas deixaram intactas, é uma indizível aventura.
Entrar num hotel ao pingar da noite e lembrar-se que ainda não almoçou, depois de controlar milhares de vacinações, nem lhe dá a ideia de que entrou dirigindo, com centenas de pessoas, numa das maiores vitórias do homem. Que bem pode servir de exemplo para o próximo devir. Como em África, onde as elites queimam etapas rumo a uma plataforma de relativo bem-estar.
Participar nesse esforço, vem-lhe à memória na
Plaza, é recompensa da vida.
Hpinto In Até o Diabo Tem as Malas Feitas, 1ª edição, MinervaCoimbra
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