sábado, 24 de outubro de 2009

CEM ANOS DE MILAGRES




Um dia num seminário sobre a polio, num gesto de entusiasmo, fui perto do ecrã a indicar aos presentes, «aquele pedacinho do mapa, a branco num mar de amarelo, é Portugal». Ou seja, em 1985, Portugal era dos poucos países do mundo já libertos da poliomielite, doença mutilante, a de mais alta mortalidade no mundo, à altura, para as crianças de menos de cinco anos de idade.
Baltazar Leite Rebelo de Sousa foi ministro da saúde e assistência da ditadura em Portugal ao tempo de Marcelo Caetano. Convidou para colaboradores duas pessoas muito interessantes, os professores Gonçalves Ferreira, secretário de Estado, e Arnaldo Sampaio, director geral, para a área da saúde. Uma circunstância invulgar mesmo nos dias de hoje, de saudável democracia, porquanto, um mais que outro, se situavam num quadrante político quase oposto ao do regime político vigente. O que só honra tanto quem convidou como quem foi convidado.
A esta feliz nomeação não é indiferente o facto de Portugal, não apenas se ter liberto da polio antes da maioria dos outros países, como o ter hoje o terceiro melhor valor para a taxa de mortalidade infantil no mundo. A criação dos centros de saúde, os planos de vacinação, o planeamento familiar, a atenção à saúde da criança e da grávida, a universalidade e gratuitidade do sistema, potenciaram-se mutuamente. Como a fechar um ciclo, digo-o no fim deste capítulo, é isso que se pode ver hoje a emergir em muitos outros lugares do mundo.
«Cem Anos de Milagres» conta aqui, em 11 capítulos curtos, uma das maiores vitórias da Humanidade desde a revolução da agricultura. Empreendida por Rotary International (RI) e depois apoiada por grandes instituições planetárias e governos em todo o mundo, a Saga da erradicação da polio (poliomielite e paralisia infantil são outros dos nomes da doença) está à beira do fim.
Os Rotários contribuíram até agora com mais de US$ 600 milhões, fruto do seu labor, do seu empenho voluntário. Envolveram neste esforço mais de 20 milhões de voluntários, uma cifra impossível de conseguir se o egocentrismo prevalecesse no mundo como há quem queira nisso fazer-nos crer. A Task Force promovida por Rotary para angariação de fundos, Advocacy Advisory for Polio Eradication, já recolheu mais de US$4 biliões junto dos governos e grandes corporações. Até ao fim será ainda necessário apelar ao fundo do coração de muito mais gente.
Nesta história soberba, quantas vezes foi superada a lógica!? Angola, por exemplo, país devastado por uma guerra civil de 30 anos, antecedida por mais de dez anos de guerra colonial, parecia à partida o maior dos obstáculos à erradicação da polio no mundo. Falando pela Rádio com o ex presidente de RI Luís Vicente Giay, o líder rebelde Jonas Savimbi chegou a dizer-lhe «das nossas crianças tratamos nós!» Mas Rotary e os seus parceiros venceram por bem esta e outras resistências de não menor peso.
Com o desafio Rotary’s US$200 Million Challenge, Rotary procura corresponder a mais um repto da Fundação Bill e Melinda Gates. Estes multimilionários patronos da fundação, amigos, filantropos, pessoas devotados a porem fim a alguns dos maiores flagelos da Humanidade, doaram este ano a Rotary uma verba igual a essa com o fito de possibilitarem o último passo desta Saga. Falta eliminar menos de 1% da raiz do problema em apenas 4 países, Paquistão, Afeganistão e Índia (neste, o problema é apenas técnico) e Nigéria (a carecer ainda de maior envolvimento político das suas lideranças).
Trata-se da segunda doença a ser eliminada do planeta. A varíola, tecnicamente mais fácil de vencer, foi a primeira. Mas há três aspectos desta Saga tão importantes como a erradicação da polio em si mesma. Um deles, relevantíssimo, é o exemplo dado ao mundo. Outro deles reside na utilização da estrutura mundial, física e humana, montada por RI e pela Iniciativa Global da Polio, em que se inclui, para combater outras doenças, desde o vírus Ébola à Cólera, ou implementar o programa do novo sistema de vacinas. Tão importante como os restantes, é o ser possível agora emanarem desta estrutura embriões de serviços de saúde universais em muitos países em desenvolvimento.
Mas uma história assim tem heróis e vilões, avanços e recuos, ocorrências singularíssimas, mesmo voluntários e profissionais que em muitos casos levaram o seu sacrifício até ao risco extremo, sobrevindo a morte.
Duas pessoas amigas marcaram-me muito particularmente no seu envolvimento nesta história, o colega Otto Austel, EUA, e a enfermeira Jenny Horton, da Austrália. Duvido que haja quem os supere.
Há sete anos a televisão portuguesa, por minha iniciativa, promoveu longamente spots diários apelando à ajuda financeira a esta Saga, protagonizados por algumas das figuras mais destacadas do país, desde a primeira-dama ao governo, na arte e na religião. Ao celebrar-se o Dia Mundial da Luta Contra a Polio, a 24 de Outubro, as crianças que entram em campo pela mão dos jogadores de futebol, em seis jogos importantes, televisionados, da primeira Liga Nacional, usarão as T shirts End Polio Now, ao mesmo tempo que está a ser publicamente divulgado o número duma conta bancária cujo depósito será endossado à Rotary Foundation (TRF), destinado à Saga. E far-se-á, como então, um grande jantar no Casino da Póvoa de Varzim com igual propósito. É uma iniciativa belíssima com o apoio e empenho da Comissão Distrital da Rotary Foundation no Distrito 1970, conduzida por Álvaro Gomes, da Comissão inter-distritos da mesma Fundação sob a responsabilidade de Gonçalves Afonso (apoiado pelo seu Rotary Club, de Santo Tirso) e da direcção da Liga Profissional de Futebol em Portugal, a que preside Hermínio Loureiro. Bem hajam.
É a história desta Saga imensa, em esboço, paradigmática quanto pungente, que vos apresento de seguida.
Henrique Pinto
Setembro 09, no Dia Mundial da Polio
FOTOS: Otto Austel, de quem ouvi falar em África como o médico herói e que conheci depois em Brisbane, Austrália, em 2003, com a esposa e comigo no Hilton Hotel em Anaheim, EUA, 2005; Gonçalves Afonso e Gabriel Roldão, Marinha Grande, 2002; slogan End Polio Now

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