sábado, 3 de outubro de 2009

ESTRANHA FORMA DE VIDA


Há dez anos morreu Amália, diva do fado, da música portuguesa e de multidões intermináveis amantes da sua voz e da forma como encarava a vida.
Fui bafejado pela ventura do com ela privar já na fase derradeira da sua caminhada. E tanto bastou para, enquanto viver, fruir esse privilégio.
Quase tudo é à partida simples na nossa existência como o foi esta aproximação. A Gulbenkian entendeu coreografar AmarAmália, poema balético sobre a deusa da voz. E Carlos Pontes Leça esmerou-se na co-apresentação desta produção belíssima de Vasco Wellenkamp com o Festival Música em Leiria.
Levei-a ao palco, pelo braço. Via já mal, disfarçava bem, e podia assim sustentar aquela pose soberba de cantante e actriz. O público aplaudiu-a de pé por mais de dez minutos. Comovemo-nos ambos até às lágrimas.
Na minha geração era difícil ser um genuíno apreciador do fado. Isso mudou com a idade. Ser-se melómano desde cedo facilita todas as conversões. Também os géneros musicais se transmudam e a própria Amália interpretou outros tipos da música dita ligeira. A obra de Carlos Paredes transposta para o cravo de Joana Bagulho e a de José Afonso nas mãos de Bernardo Sasseti, Pedro Burmester e Mário Laginha, desfaz a separação antes tão viva entre formas musicais, e alarga o universo dos apreciadores.
Nos últimos anos um escol imenso de bons cantantes aproximou-se da voz de Amália, decalcando-a. O distanciamento artístico, criativo, começa agora noutras gerações do bem cantar. Num e noutro caso a herança não é destroçada.
Mesmo não vingando muito entre nós o hábito dos epítetos simples e carinhosos dirigidos aos eleitos, como muitos veem Sinatra, Amália todos sabem quem foi, será por longo tempo a nossa Voz.

Henrique Pinto

Outubro 09


FOTO: Henrique Pinto e Amália Rodrigues

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