sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

JOÃO NAZÁRIO EM LOUVOR DO MÉRITO

Fui director do Jornal de Leiria, por voluntarismo e amizade, graciosamente como em todos os meus hobbies, da música à solidariedade. Mas esta foi uma ocupação de que me não orgulho por incapacidades várias para fazer valer os desejos. Mas orgulho-me sim que tenha sido possível chegar até hoje, pese embora as oscilações no apreço pelo seu conteúdo.
A edição de fim de ano 2011 está notável. Abrangente, meritocrata sem enviesamentos, assertiva e sem queixumes melodramáticos, com poucas citações infelizes como por aí pululam, do género «os portugueses habituaram-se a gastar mais do que deviam», uma suposta verdade de La Palisse de odor sulfúrico e salazarento ao jeito de quem já se julgou ter nascido num país rico.
E o mérito desse excelente exemplo de bom jornalismo deve-se, seguramente, aos predicados do Dr. João Nazário. Bem haja.
Henrique Pinto
Dezembro 2011
FOTO: Jornal de Leiria

O RAZOÁVEL FEITOR

Hoje os conflitos de gerações estão descentrados relativamente ao passado. Do sexo à política e à comunicação interpessoal o relacionamento alargou nos limites. Os jovens viajam (donde também muitos sabem porque emigram, o que só torna mais chocante a conhecida «boutade» a este respeito) na exigência dos seus horizontes. Mas não há assim tanta compreensão para a experiência da idade. Ricos ou pobres os velhos são asilados e esquecidos como exemplos de vida. E se dantes se criticava e com razão a precipitação dos juízes com 23 anos (quem pensa a vida aos quarenta como o fazia aos vinte?), a verdade é que não deve ser tão criticável o voluntarismo de quantos jovens que se tomam por donos da única verdade, na política, nos modelos económicos e sociais, na cultura, numa altura chamada de pós-moderna em que a verdade e a diversidade são valores caros aos jovens e menos jovens.
Todavia, quem pensa a informação pública e, eventualmente, o possa fazer ainda com algum apego à ética, deve reflectir igualmente a amplitude desses valores. Evitar-se-á assim algum enviesamento opinativo de um extremo ao outro (também estamos fartos do medinacarreirismo, Salazar não foi «um bom gestor», talvez tenha sido um «razoável feitor»!) e talvez o país se saiba avaliar melhor
Henrique Pinto
Dezembro 2011
FOTOS: Medina Carreira; jovens na praia

domingo, 25 de dezembro de 2011

ANJOS E DEMÓNIOS PELO NATAL

A Natividade Mística, de Botticelli – pintor florentino que executou este quadro por volta de 1500, no Renascimento em ascensão – e que tive ensejo de ver por mera circunstância na National Gallery, é uma das mais misteriosas evocações pictóricas do Natal. Despojado de adereços de simbolismo material mostra os anjos conversando com os humanos e os demónios fugindo empalados nos objectos do seu poder deletério.
Embora apocalíptico e considerado profético, a obra em questão não é propriamente uma profecia legível nos dias de hoje, em que tudo se passa exactamente ao contrário quanto a anjos e demónios, e este Natal se nos afigura o primeiro estádio para uma árdua caminhada. A não ser que o primeiro-ministro (que pessoalmente muito considero) descreia de tudo, as pessoas de bom senso não lhe levariam a mal se mostrasse algum optimismo (ninguém se sustenta em seu juízo sob o cutelo da desgraça).
No dia em que os norte americanos entraram em Bagdad os trabalhadores e voluntários de agências internacionais como as Nações Unidas, assumindo as recomendações para o êxodo suscitado por mais um episódio da guerra civil, corriam pelas ruelas de Kano pulando por cima dos cadáveres aos centos, passaporte azul bem erguido, rumo aos transportes para Abuja e à fuga desesperada da Nigéria. Nenhum noticiário internacional se referiu então ao evento!
Pois Abuja, a nova capital nigeriana, foi hoje mesmo cenário de horror, da matança de cristãos em nome de Deus. Podiam ser outros crentes que o problema em nada mudava. O radicalismo terrorista de base religiosa matou também em Belém, na Cisjordânia, cidade mítica.
De pouco vale, a meu ver, repetir à exaustão, que não temos líderes europeus (ou mesmo mundiais), quando os cidadãos supostamente mais esclarecidos se digladiam para eleger estes mesmos líderes. Quase sorvem a baba da mentira e do descrédito feitas promessas. O declínio da Europa começou muito antes de Merkel mandar e da falência americana do Lheman Brothers, que o potenciou, mas foi fortemente influenciado pelos Nobeis de Bush e pela terceira via neoliberal de Tony Blair.
Mas é ainda fruto do equilíbrio mundial suscitado pela ascensão financeira da Ásia em virtude da globalização. Fenómeno este que, não sendo um mal em si, porque inevitável, trouxe o pós-modernismo comportamental e cultural, banalizador de costumes e de valores há muito instituídos, que induz visões mais individuais e incompletas do todo. Como o deve ao chauvinismo político-religioso que conduziu, por exemplo, à exclusão europeia da Turquia. E, de certo modo, à tolerância hipócrita com que ditadores como os destituídos pelos ventos do levante ou outros tão sinistros como Obasanjo da Nigéria, têm sido tratados e apaparicados em nome do petróleo.
Certa vez, negociando em nome da cultura com um académico «dos que estão sempre por cima», por, na sua ausência de princípios que não os dos interesses próprios, construírem uma imagem de imprescindíveis, e chamando-lhe à atenção para um aspecto institucional menos simpático, ripostou-me furibundo: «começa mal o seu pedido se vem para aqui criticar»! Leonel Jospin, quando interpelado por Guterres, também lhe respondeu: Ó António, olha que se não fossemos nós, vocês…». É aqui que a perene lucidez de Mário Soares se impõe. O eixo franco-alemão (mais alemão que franco) precisa que os supostos pedintes lhe batam o pé. Porque se excluirmos a eterna síndroma de ilhéu, personalizado agora por David Cameron, esses países credores estão umbilicalmente dependentes dos «pedintes».
As obras tardias de Botticelli deixam antever a influência da pregação de Savonarola, de agitação visionária. E nesse sentido ele persegue, como todos os que aspiram a melhorar o mundo, a sua utopia. Nos dias de hoje a utopia estará, seguramente, na mudança do paradigma económico e social tão decantado. E essa, mesmo que ressurjam todos aqueles demónios da Natividade Mística, não se faz na miséria franciscana material e culturalmente. Os devotos de Milton Friedman que tenham, por uma vez, consciência disso!
Henrique Pinto
Dezembro 2011
FOTOS: Botticelli em A Natividade Mística e em A Primavera

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

OS BÓRGIAS ESTÃO POR TODA A PARTE

Vale a pena ver a série de Neil Jordan «Os Bórgias» no canal AXN. Porque há muito a tendência para generalizar. Ou porque ontem foi assim, há-de ser igual pela eternidade. Vós fizestes o mesmo, vulgata dos partidos. Muitos crêem, lá porque é suposto a organização ser solidária, então todos os membros serão uns anjos. E a vida não é assim. A degenerescência das organizações, burocrática ou nos princípios, é algo que surge com o tempo, a desatenção, a ignorância, a crença cega… Um chico-esperto qualquer (licenciado é ainda melhor, o traje é menos notado, e em nada diverge dos envolvidos na «caixa de robalos») rapidamente cilindra tudo e todos e se torna o dono de quaisquer verdades ou o caluniador de quantos o ajudaram quando ainda passava por «santinho». Se pode pagar a sua prática ficará mais ágil. Claro, em Os Bórgias, cardeal ou diácono não escapava ao veneno, ao descrédito ou à degola. Na política menoriza-se a democracia. Nas instituições de serviço, por vetustas e amplas que sejam, usa-se ainda o mesmo descrédito, ou, usurpando a herança estalinista, sempre eficaz, rotula-se fulano ou sicrano de doente mental e pronto. Karadzic também era médico, psiquiatra e poeta famoso…
Mário Puzo já escrevera Os Bórgia (que não chegou a terminar). Como se pode ler em Insights Literários, «apesar do subtítulo do livro ("A história da primeira grande família do crime"), sugerir que a família Bórgia era perigosa e a primeira grande criminosa, tenho que discordar. Naquela época (não só, claro) era "cobra engolindo cobra", e envenenamentos, conspirações e traições eram métodos comuns para garantir o poder. Todas as famílias, tanto da Itália quanto do resto da Europa, tinham seus (muitos) podres para que sua supremacia fosse garantida».
Quer isto dizer que temos sempre de contextualizar. O que não desaconselha o olhar perscrutador, o espírito crítico ou o abusar da ingenuidade analítica.
Recriando o poema de Manuel Alegre sobre um argentino famoso, Os Bórgias estão por toda a parte. E mais, vivem em qualquer tempo e sob qualquer sigla ou vestimenta.
Esta primeira fase da série televisiva é escorreita, não especulativa, não segue Puzo por inteiro e tem a interpretação sóbria e expressiva de muitos mas sobretudo de Jeremy Irons em o Papa Rodrigo Bórgia que contactou Maquiavel e Leonardo da Vinci. Vale a pena fruir este entretenimento de qualidade. E pensar.

Henrique Pinto

Dezembro 2011