quinta-feira, 29 de julho de 2010

CONTEXTO, VALORES E TEMPO


Rever Memórias duma Gueixa, o filme de Rob Marshall produzido por Spielberg (2005), é um encanto.
A história passa-se no Japão dos anos 30-40 do século XX, assente na vivência da menina Chyo, de 9 anos, aldeã, vendida pela família a uma Okya (casa de gueixas) em Osaka.
É neste universo concentracionário, de famílias sintéticas, aparentemente assexuado, destinado a produzir mulheres para agradarem aos homens ricos, muito bem particularizado, detalhes fabulosos, que perpassa uma belíssima história de amor quase impossível. Num clima falsamente tranquilo, tradicional, conservador, sem posições extremas, de contenção na impulsividade e confronto, alheio ao rápido passar do tempo, prevalecem valores intemporais, a honra e o respeito mútuo à cabeça, e a paixão vence os dogmas por entre os escombros da acção punitiva do general McArthur.
Deve haver sempre muita parcimónia quando se avaliam culturas diferentes, porquanto, mor das vezes, é difícil a um Europeu ou Americano compreendê-las. E nesse aspecto o filme não arrasta moralismos fúteis.
A história é o que é. Estaline ou Salazar alteravam-na a seu gosto. É a contextualização dos factos. Nem uma nem outros são passíveis de alteração por decreto. E a comparação crítica entre contextos diversos deve, sempre, suscitar os cuidados mais preciosos de análise.
Todavia, podem sempre evocar-se as memórias públicas dum amigo, que, sobre o avô, dizia, «não fumava, era saudável e detestava o tabaco, mas não os fumadores».
Henrique Pinto
Julho 2010
FOTOS: Detalhe da capa do livro Memórias duma Gueixa na versão inglesa; a personagem da pequena Ghyo no filme de Marshall; Rob Marshall, realizador; Ken Watanabe, actor muito distinguido, personifica O Director, a paixão de sempre da pequena Ghyo; Osaka hoje, o Castelo é o único edifício histórico que resistiu à II Guerra Mundial e aos tempos depois dela.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

PATRIMÓNIO RELIGIOSO EDIFICADO DE SÃO ROQUE DO PICO - IGREJAS E ERMIDAS (2)

IGREJA MATRIZ DE SÃO ROQUE
A primeira edificação é de 1480 como Capela do Bom Jesus, construída pelos fundadores do povoado de São Roque.
Em 1714 começou a erguer-se a actual igreja. É esplendorosa a pintura do tecto. O cadeiral é de madeira exótica, pertença do coro do Convento de São Pedro de Alcântara. Tem uma bela estante doada por frade do mesmo convento, restaurada em 1970.
Guarda espólio de outras igrejas como a imagem da Senhora das Dores, titular da capela do mesmo nome existente junto ao cemitério, entretanto desaparecida, bem como um crucifixo.
A Festa do santo padroeiro celebra-se a 16 de Agosto.

IGREJA DA PRAINHA DO NORTE
Os primeiros povoados desembarcados na Baía de Canas na década de 1500, preferem a Prainha de Cima, onde ergueram uma pequena ermida que foi destroçada pela erupção de 1562.
Paróquia desde 1530, começa a construir-se a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda em 1576. As torres são de 1859.
A Festa da santa padroeira celebra-se a 16 de Agosto.

IGREJA PAROQUIAL DE SANTO ANTÓNIO
Há registos de a ermida de Santo António da Furna já existir em 1609.
Há memória de em 1670 ter sido deixada em testamento a ermida de São Domingos.
Santo António é paróquia desde 1636 mas a igreja só começa a edificar-se em 1692.
Por doação tem dois lustres artísticos, vindos do Brasil em 1886. Tem ainda um belo retábulo na
capela-mor. O seu órgão, em restauro, pertença do Convento do Cais do Pico, era impressionante.
A festa do padroeiro ocorre a 15 de Agosto.
Henrique Pinto
Fevereiro 2010
FOTOS: Vinhedos do Pico, Património da Humanidade (foto Fábio Joel); Igreja Matriz de São Roque do Pico em dia do padroeiro; imagem de São Roque, espólio da Igreja Matriz; Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, Prainha; Casa do Largo, na Prainha; Igreja de Santo António; Casa senhorial de Santo António; Vulcão do Pico visto da lomba da montanha do Pico; Rua Principal do Cais do Pico, à noite (foto de Fábio Joel)

terça-feira, 27 de julho de 2010

SUAVE AROMA FÉTIDO


«Ela achou a pele dele enegrecida, menos escura que outrora, sem brilho.
Ele bocejou como um cão, silencioso, de boca escancarada.
Então, ela teve a certeza que o suave aroma fétido que sentira à entrada provinha da ceiba e, ao mesmo tempo, do corpo do pai, pois todo ele imergia na lenta corrupção das flores amarelas e alaranjadas – este homem, pensou, que tanto cuidara da pureza da sua aparência, que só se perfumara com as essências mais chiques, este homem altivo e inquieto que nunca quisera deixar exalar o cheiro do seu próprio corpo!
Pobre homem, quem teria pensado que se tornaria um velho pássaro gordo, de voo desajeitado e odores corporais intensos?»
Marie Ndlaye
Prémio Goncourt 2009
in Três Mulheres Poderosas
É um extracto dum livro fabuloso, Edição Teorema, 2010 (HP)

segunda-feira, 26 de julho de 2010

PATRIMÓNIO RELIGIOSO EDIFICADO DE SÃO ROQUE DO PICO - IGREJAS E ERMIDAS (1)


Desde os primeiros tempos, no dealbar do século XVI, a cultura e exportação de trigo tornaram-se importantes para as populações da ilha do Pico, Açores, como serviam ainda de padrão de moeda.
Mais tarde o milho substituiu o trigo tornando-se o produto base das comunidades, além do pastel, da vinha e da laranja.
A pecuária desses tempos era apenas complemento da lavoura.
Na segunda metade do século XVIII e ao longo do século XIX, os Açores tornaram-se centro de captura e transformação do cachalote. Progressivamente, a ilha do Pico assume-se como eixo irradiador desta pesca interinsular.
Acontecimentos como as várias erupções vulcânicas (1562-64 e a criação do Mistério da Prainha e 1718 com a extensão do Mistério de Santa Luzia e as escoadas de São João) e sismos, as pilhagens dos piratas, sobretudo ingleses e espanhóis, que no século XVII, perseguiam as naus portuguesas que vinham da Índia e atacavam as populações indefesas, a destruição dos vinhedos pelo oídio e a doença dos pomares de laranjeiras, prejudicaram seriamente a economia dos Açores.
Portadores do sentido religioso e das tradições das suas origens os povoadores ergueram e voltaram a erguer ermidas e igrejas e no culto dos seus santos buscavam protecção e alívio para as extraordinárias dificuldades da sobrevivência.
No concelho de São Roque do Pico permanecem como monumentos de interesse histórico as Ermidas do Cabrito, o Convento dos Frades, com capela (Baía de Canas), Convento de São Pedro de Alcântara, no Cais do Pico, Igreja de Nossa Senhora da Ajuda (Prainha) e Igreja Matriz de São Roque.
Henrique Pinto
Fevereiro 2010
FOTOS: São Roque do Pico, em baixo, com a ilha de São Jorge ao fundo; Mistério de Santa Luzia ( a língua de lava que entrou mar dentro), Pico, a lava enrugando pelo arrefecimento mais precoce das faixas laterais; vinha, milho e casas de lavoura (adegas) no baixio da Prainha, Pico; Adega reconstruída na Prainha; milho na Prainha, a principal produção cerealífera depois do abandono do trigo; a montanha do Pico vista da minha varanda.

domingo, 25 de julho de 2010

O FALSO NOVO

Os conceitos mudam. Nem na liturgia nem na palavra a esquerda e a direita modernas têm algo a ver com o passado. Bastará ler um pouco para tal se ver.
Entre nós não é ainda exactamente assim.
O diálogo político melhorou mas é comummente básico e de pouca educação. E as ideias feitas programa político – até as aceito enquanto tal – ultrapassam pela direita o que se faz nos EUA, nos países nórdicos, na Inglaterra pós trabalhista, conservadora e neoliberal, na Austrália -, com um falso toque liberal, no geral, mesmo se uma ou outra boa ideia de permeio se aceita no imediato.
Será que a história da nossa História e da nossa economia, pelo menos a dos últimos trezentos anos, diz alguma coisa a estes teóricos? Será que o nosso país, donde os melhores em boa idade estão de novo a fugir, com dez por cento de pobres e uma classe média depauperada, suportaria uma agudização tão franca das diferenças sociais?
Nogueira Leite e António Barreto, pessoas cultas e modernas, concordarão com este rosário de incontinências de falsa inovação na política!?
Henrique Pinto
Julho 2010
FOTOS: Nogueira Leite; António Barreto

sexta-feira, 23 de julho de 2010

EM MOUNTAIN SIDE


Estive há pouco por duas vezes em Newark, hóspede, sempre, de amigos do peito como o António e a Isabel. Na sua mansão de Mountain Side alivio canseiras, cogito no devir, damos cor aos anos, rimos com a curiosidade de filhos e noras, observamos os pássaros.
Numa das ocasiões almoçámos em Elisabeth, entre dois voos, o Restaurante Olivença tinha a portugalidade irreversível de Jorge de Sena, o odor almiscarado da ilusão do que é vizinho, tal o
empate com a Costa do Marfim de Erickson e Tony, e o nervosismo encapotado da conferência ao outro dia no Canadá.
Noutra das vezes cirandámos pela Pensilvânia, o verde inebriante, escorrido por milhas, sedativo. E a evocação do mourejar de gerações lusas na Betlehem Steel. Palpámos uma vez mais o frenesim de
Nova Iorque a partir da rua 44, O Fantasma da Ópera e American Idiot, espectáculos dejá vues, Times Square inigualável, um Ronaldo feliz a sair dos ecrãs, a Broadway a fervilhar e o circuito do Hudson e do East, do Harlem até à George Washington, ainda por experimentar.
 Lanchámos naquele bar jovem à saída do Lincoln. Dali fotografei em tempos as Torres Gémeas, antes do fanatismo de todas as raízes e desta remake do capitalismo mais selvagem que nunca, nos empurrarem umas décadas não sei em que sentido, como na série televisiva Flashforward.
Os Europeus olharam de soslaio a erupção asiática, a nova ordem monetária que em nada inova, espalham-se como poeira de antraz os sinais de intolerância, da não inclusão social e da aversão à cultura como herdeira dos valores do espírito livre e solidário.
New Jersey foi e é o Estado Americano da esperança de futuro para gerações de portugueses. E ver Portugal dum outro ângulo, ainda que cena repetida, nunca deixou de ser-me esclarecedor. Por isso admiro a juventude que viaja mundo fora sequiosa da diferença, e a que evolui estudando em
universidades estrangeiras, não tanto pelo conhecimento mas pelo mérito reconhecido. Gosto do Gonçalo Cadilhe exaustivo, pedagogo entusiasmado.
Mas o skyline de Manhattan afigura-se-me cada vez mais irrecusável, íman duma cultura jovem na multiplicidade estética e étnica, mesmo que sobranceiro, como se o humor elaborado de Woody Allen
há muito deixasse Greenwich Village e o Theater Row e o rosto feito máscara de Gertrude Stein na obra de Picasso, o Metropolitan Museum of Art, para serem manto salvífico, inspirador.
Henrique Pinto
Julho 2010
FOTOS: Times Square 1, Nova Iorque; Henrique Pinto e António Oliveira na Pensilvânia; a Estátua da Liberdade vista do Hudson; a igreja em Mountain Side; uma fábrica de aços em Betlehem;
Times Square 2; a Ponte de Booklyn; monumento evocativo do 11 de Setembro em Mountain Side, lugar onde residiam alguns dos muitos mortos; Bronx; skyline de Nova Iorque a partir do Hudson; edifício das Nações Unidas; Ponte George Washington, entre Manhattan e Newark; António e Isabel Oliveira; nos dois espaços maiores do skyline fica o Ground Zero, local das Torres Gémeas;

AINDA UM PRIVILÉGIO


Golfinhos, vejo-os passar da minha varanda. Seguem em fila, longa, um e outro a rodopiarem, círculos perfeitos, como se a animarem a caravana, esperam pelos mais retardados.
Vistos de perto, em pleno mar, entre as Ribeiras e a Calheta de Nesquim, onde nasceu e morreu Dias de Mello, brancos, riscados, cinzentos escuro, nadam velozmente, mesmo os filhotes de dias, esgrimam cabriolas no ar, divertidos.
Anda cachalote por perto, a espécie de baleia mais comum nos Açores, migra entre Outubro e Março rumo a Cabo Verde ou à Islândia.
As velas estão tensas como os olhares, ouve-se uma frequência de rádio de empresa de vigia, quase cheira.
Uma manta escura, raia gigante, brilha preguiçosa, indiferente, na luz da manhã. Agudiza-se a atenção, expectante entre um e outro esguicho, sobe, não sobe. E ei-lo por instantes na passerelle aquosa, imponente, tranquilo, como se soubesse, ali só querem admirá-lo na sua perene grandeza, no respeito pela lei internacional.
Mergulha sem avisar, não dá tempo a ver-se-lhe a cauda. Um outro soprará dali a pouco.
Qualquer dia pôr-se-á fim aos locais para observar de perto os animais, onde quer que estes estejam prisioneiros, em sofrimento. Em muitos casos encerram por igual egoísmo e crueldade de quem se crê rei do universo. Vê-los no seu habitat natural, e não apenas no mar, é ainda um privilégio. Todavia, é
um exemplo cívico ímpar em todas as idades, esplendor da vida, convívio inesquecível duma existência não rude e espiritualmente mais complexa.
Henrique Pinto
Julho 2010
FOTOS: veleiros na Marina da Cidade da Horta, ilha do Faial (foto HP);  golfinhos ao largo da povoação das Ribeiras, ilha do Pico (foto Fábio Joel); Henrique Pinto (foto Fábio Joel); golfinhos entre as Ribeiras e a povoação Calheta de Nesquim, no sul da ilha do Pico (foto Fábio Joel); Ponta dos Capelinhos, ilha do Faial, as baleias circundam-no para rumarem ao sul da ilha do Pico (foto HP); Cachalote, frente às Ribeiras, ilha do Pico; Cachalote, frente à Calheta de Nesquim (foto Fabio Joel); Praia de Almoxarife e Ponta da Espalamaca, lado norte da ilha do Faial (foto HP); ilha do Pico vista da marginal do Lagido (foto Fábio Joel).

terça-feira, 20 de julho de 2010

CAUTELA E CALDOS DE GALINHA...


O Bispo fazia a prédica da janela da matriz antes da saída da procissão. Acolhia-o um silêncio de reverência. Não era difícil imaginar pelo ar tão terreno do discurso que defendia os padres da região de quaisquer críticas mais contundentes, a palavra de tão ilustre prelado é normalmente de consolo espiritual.
Havia moiro na costa. Não que se soubesse de assédio às mulheres bonitas e jovens, quase todas estudantes do superior. As citações maledicentes dirigiam-se mais para a quebra inopinada dos costumes, as «festas» populares teriam o seu cunho exclusivo, incluindo as «sopas» do Espírito Santo, funerais com acompanhamento só se o cura estivesse para aí virado, coisas cedo nem pensar que o sono faz falta. E até uma pequena história de laivos trágicos e hilariantes saltava das bocas. Ao ser baptizado um nascituro quase sufocara, foi premente levá-lo ao hospital tal o rio que sobre ele desabou em plena unção, de padre mais desastrado ninguém se lembrava.
Lia o jornal no avião e a notícia espicaçou-me, um funcionário camarário levanta centenas de milhar duma conta municipal e nem o banco, normalmente tão exigente em depósitos de cêntimos, nem a autarquia, se lembram das duas assinaturas de segurança.
Estava ainda longe de saber, um ano volvido, que o mesmo cura remodelou a casa paroquial, jacuzzi e outras mordomias não faltaram. O pecúlio recolhido pelos paroquianos a pensar na festa do padroeiro deu para pagar aos pedreiros e fornecedores de obra tão pouco espiritual. Quanto à festa logo se vê.
Bispo e autarca devem estar a pensar que nestas coisas o povo é mesmo soberano, e se há queixas é bom que sejam consideradas como objecto de estudo. Cautela e caldos de galinha, lembra o povo…
Henrique Pinto
Julho 2010
FOTOS: procissão; um curso recomendado ao chico-espertismo nacional, de qualquer índole; aos monges do Tibete não lembraria o Jacuzzi...