sábado, 16 de agosto de 2014

A NOITE EM QUE A CHUVA MATOU

Estava agora a olhar para a TV e ouvi a atriz Maria João Luís (aprecio-a muito pelo seu talento), a falar das trinta pessoas da família que lhe morreram nas cheias de 67. E fez-se-me luz na memória. Na manhã de 26 de Novembro de 1967 os estudantes de medicina de Lisboa voluntariaram-se para, junto com os bombeiros e enfermeiros e alguns populares, acorrerem a ajudar no que era possível fazer no rescaldo das cheias resultantes da chuva diluviana que caíra durante a noite. Eu também fui. Remover cadáveres e ajudar a vacinar foram algumas das nossas tarefas. Conto-o muitas vezes a amigos e à família mais recente. Já estive em quase todo o lugar do mundo onde a miséria campeia. Mas não mais vi uma tragédia assim.
Noutro dia ao ouvir o Professor Marcelo Rebelo de Sousa soube que ele também se tinha igualmente voluntariado nesse dia. Não sabia até então que os estudantes de direito também o tinham feito.
Revendo os jornais desses dias, sobretudo A Flama, O Século Ilustrado ou o Diário de Lisboa, fala-se em números quanto a mortos já então impressionantes. Depois, a censura de Salazar não mais permitiu referir tal estatística. Dados recentes apontam para mais de 800 mortos.
Lembro-me de olhar a várzea de Loures, ali de Frielas, e só ver água e lama. As residências daquelas encostas, quais tugúrios, foram arrastadas pela lama. Nunca se devia construir em lugares tais, mas enfim. A pobreza e o clandestinamente de então deram lugar à usura. Anos depois vi um vale semelhante, o que antecede as aterragens no Simão Bolívar em Caracas. Anos volvidos sobre o voo dessa tarde as cheias provocaram lá cenário igual ao de Lisboa mas com um número de vítimas apocalíptico. Com a devida vénia, transcrevo abaixo parte das crónicas, tanto da revista Flama como de O Século Ilustrado, sobre a catástrofe de 1967 no Vale de Loures e na capital. E é possível lobrigar nas entrelinhas e nas fotos (que muitas vezes não se mandavam ao censor) a miséria impressionante da Lisboa de então (sobretudo arredores).
Henrique Pinto
Agosto de 2014

Fim-de-semana trágico: Dilúvio, lama e morte”
“Chovia. Insistentemente. As ruas começavam a transformar-se aos poucos em rios de lama. Nas casas mais modestas, os tectos improvisados já não eram abrigo suficiente. Mas a população de início não se deixou impressionar, dir-se-ia indiferente. “É mais uma cheia”— pensou-se. Mas não tardou que o “passa-palavra” reproduzisse a verdade — havia mortos em Odivelas, na Póvoa de Santo Adrião, Alenquer, Arruda dos Vinhos; uma aldeia perto do Carregado (Quintas) fora riscada do mapa por uma tromba da água. As sirenes dos abnegados bombeiros começaram a entoar o requiem da desgraça tristemente confirmada.
Contrapondo as primeiras informações, sempre contraditórias, às primeiras horas da noite de domingo o ministro do Interior reunia os jornalistas e dava-lhes a versão oficial da tragédia duzentos e cinquenta mortos, alguns feridos, geralmente sem gravidade, muitos desaparecidos em número difícil de estimar. Os concelhos de Loures e Vila Franca de Xira haviam sido os mais atingidos. O governo estava a conjugar todos os seus recursos para assistir aos aflitos e enterrar os mortos. Os serviços meteorológicos entretanto, forneciam uma explicação técnica: fora uma «depressão» que percorrera o território de Portugal numa faixa de cerca de 150 quilómetros sobre o vale do Tejo, do mar para o interior. A nação começava a despertar do pesadelo. Esfregava os olhos ainda sem acreditar.”
“Lisboa mais abastada seguia para o cinema ou refastelava-se na poltrona caseira, assistindo ao famigerado folhetim «Gente Nova» da RTP, à espera de mais uma aventura do «Santo». A Lisboa menos favorecida estava no café para a «bica», ou ficara no bairro suburbano, julgando que o seu fim-de-semana iria ser igual aos outros. Quando o Roger Moore chegou aos receptores, já os tectos humildes começavam a meter água, as ruas pareciam rios, as praças, lagos; e os cinéfilos, bloqueados nos engarrafamentos de trânsito haviam esquecido o Éden ou o S. Jorge e pensavam na melhor maneira de voltar a casa.
Há doze horas que chovia. Os colectores não davam vazão à enxurrada e, logo que a maré do estuário onde eles despejam as águas que vão correndo pela cidade atingiu a sua altura máxima, já não se sabia onde acabava o Tejo e começava Lisboa.
Foi às portas da cidade, em Odivelas, na Póvoa de Santo Adrião, Frielas, em todo o concelho de Loures. Na região de Vila Franca, também, Carregado, Alverca, Alenquer, Arruda dos Vinhos. Homens, mulheres, crianças, muitas crianças, todos mortos. Pontinha, Carcavelos, Paço de Arcos. Muitos casos, um aqui, outro acolá. Lares destruídos pelas águas, pela lama, pelas derrocadas. Luto, dor. Carros voltados. As comunicações por estradas e caminhos-de-ferro interrompidas. Lojas arrasadas, negócios falidos.”

“Ainda há lágrimas em muitos olhares e a dor continua no coração de todos, mas já é tempo de fazer o ponto desses terríveis dias da grande enxurrada que espalhou pelo Pais a desolação e a morte. As estatísticas, no fundo, pouca importância têm, se pensarmos na obrigação que de momento nos assiste – dar-mo-nos as mãos e, após ter enterrado os mortos, reconstruir com a segurança que nos permita encarar o Futuro sem o receio de uma reedição e ajudar os que sobreviveram a carregar melhor o seu fardo.
Foi só ao cabo de longas horas prolongadas pelos dias adiante que se alcançou o quadro geral da tragédia da noite mais longa de Lisboa. Foi preciso lutar muito para arrancar à lama e aos destroços os corpos sem vida. Houve que trabalhar muito para reanimar os feridos e os que tinham ficado sem o conforto de quatro paredes (por muito frias e humildes que fossem). Nos locais atingidos pela tragédia, vimos gente do povo, militares e bombeiros irmanados num esforço doloroso mas necessário. Por fim, cumprido o dever de enterrar os mortos e tratar dos sobreviventes, deitou-se mãos à obra da reconstrução. Mesmo de lágrimas no rosto, os homens deram-se as mãos para continuar a faina da vida.

Como aconteceu? Como aconteceu? Repete-se a questão. Foi na madrugada de 25 para 26 de Novembro, de sábado para domingo. Chovia. É normal, no Inverno. Poderia ter sido uma chuva benéfica, capaz de abrir em frutos novos muitos campos. Mas não foi. Para muita gente (demasiada gente) ela foi a desgraça ou a morte. Ninguém sabe exactamente a que horas aconteceu a tragédia. Os ponteiros de muitos relógios agora parados indicam vários instantes precisos para diversas localidades.
Duas e cinco aqui, uma e cinquenta e três acolá, três e treze noutro lugar. Poderá ter sido bastante mais cedo: pouco antes de terminar a festa que para milhões de espectadores ainda é a TV.
Hora imprecisa, mas tão fatídica! Aliás nos laboratórios em que se «mede», «pesa» e prevê o tempo já o volume das chuvas se afigurava como prenúncio de grave perigo. Os milímetros de chuva deixavam de ser um pormenor estatístico. Juntamente com circunstâncias várias, eram a denúncia viva (mas que ninguém fez conhecer) da desgraça que momentos depois se abateria sobre a vasta região de Lisboa. Coincidência? Algo mais do que isso? O certo é que desencadeado o processo da calamidade, só muitas horas depois se pode avaliar o seu alcance.
Fora de portas, a tragédia começou por se abater sobre Odivelas. Logo a seguir, ao fundo da Calçada de Carriche, uma paisagem desoladora substituiu os horizontes lavados da várzea. À entrada de Odivelas, a estrada abateu, destruída pelas águas que iam devastando ao mesmo tempo os pobres lares construídos à beira da ribeira ou nas encostas suaves das elevações vizinhas. A ribeira transformou-se em rio, mas não se quedou satisfeita. Queria ser mar, e conseguiu-o.

Flama de 1 de Dezembro de 1967.

“A Noite em que a chuva matou”

“Noite de pesadelo numa cidade em pânico”

“Sepultados os mortos e socorridos os vivos, subsistem a consternação e uma dorida perplexidade: a imaginação vê-se impotente para reconstruir, em toda a sua medida, o pesadelo que foi aquela noite de 25 para 26 de Novembro. Mais de três centenas de mortos deram dimensões de catástrofe nacional aos efeitos da tempestade que martirizou a região de Lisboa nesse fim-de-semana. Milhares de pessoas sem abrigo, milhares de pessoas a quem as enxurradas e os desabamentos, quando não roubaram familiares e amigos, levaram pelo menos casa e haveres (e de gente pobre se tratava na esmagadora maioria dos casos), acrescentam o seu drama a prejuízos materiais ainda impossíveis de calcular.
De facto, Lisboa, irmanada no infortúnio com toda a vasta região que se estende dos concelhos de Sintra, Cascais, Loures aos de Vila Franca de Xira, Alenquer e Arruda dos Vinhos, passando pelos de Almada e Barreiro, acaba de sofrer um dos seus maiores desastres de sempre.
E subitamente abriram-se de par em par as comportas do céu. A chuva, que naquela noite fustigara Lisboa sem maior violência do que a normal, redundou em dilúvio ao fim da noite. Com uma violência avassaladora, passou a castigar, durante horas, madrugada fora, a capital e os arrabaldes. Derrubou carros, muros, fez aluir enormes massas de terra. Removeu o calcetamento das ruas, o asfalto das grandes praças, e as primeiras foram rios, as segundas lagos. Habitações submersas. Automóveis abandonados como brinquedos inúteis. Estabelecimentos desventrados, destroços levados pelas águas. Destroços e cadáveres: a catástrofe cobrou à cidade um pesado tributo em vidas humanas.
Pouco passava das 17 horas de sábado, quando os acontecimentos começaram a precipitar-se: a chuva fustigava a cidade com uma inclemência cada vez pior: os quartéis de bombeiros municipais e voluntários viam-se praticamente desertos com os seus homens dispersos pela cidade.

Os sítios do costume

Às 19:35 um clarão rasgou o céu no centro da cidade acompanhado de um trovão prolongado e ensurdecedor: para as bandas do Governo Civil, em pleno Chiado, uma faísca marcava como que o começo do último e mais dramático acto da catástrofe.
De facto, àquela hora, já as águas se acumulavam nos locais do costume: ainda e sempre a Avenida 24 de Julho, o Poço do Bispo, Santa Apolónia. E também todo o percurso desde a Junqueira a Algés. E também o Campo Grande e a Avenida da República. E também Benfica. Nenhuma zona da cidade foi poupada.
Cerca das 22 horas, elevava-se já a algumas centenas o número de carros eléctricos e outros veículos imobilizados pelas águas. Em Alcântara o espectáculo do Éden Cinema foi interrompido a meio do segundo filme, por a infiltração das águas ter provocado um curto-circuito no quadro eléctrico. Mas a assistência nem teve tempo de se manifestar, pois a cheia invadiu também a sala e começou a subir com rapidez. Os espectadores da plateia tiveram que se retirar para o balcão e ali permaneceram até serem socorridos pelos bombeiros com barcos de borracha.
À meia-noite em Algés a baixa encontrava-se totalmente submersa, com água pela altura dos vidros dos automóveis. Na avenida 24 de Julho a cheia tomou aspectos assustadores, dos carros aí estacionados só se viam os tejadilhos. Um carro eléctrico ficou com água a rasar as janelas e os passageiros tiveram que ser retirados pelos bombeiros.
A zona de Benfica foi muito sacrificada pela chuva. A água atingiu mais de um metro de altura, o que tornou intransitável todas as artérias. Os automóveis chegaram a estar quase cobertos pela água e só se viam os tejadilhos.” 

Século Ilustrado 2 de Dez 1967



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