quinta-feira, 19 de março de 2015

OS MENINOS DE BHICHAI

1 Literacia, chave do mundo

Bhichai Rattakul (1), enquanto presidente de Rotary International (RI) iniciava todos os seus discursos com a história duma criança cujo comportamento e conhecimento eram a base duma lição para a vida. Refiro este facto sempre que abordo o tema Literacia. Exemplo melhor não há para incorporar toda a abrangência do conceito.
Num primeiro olhar «Literacia» parece ser um termo que toda a gente é capaz de compreender. Mas provou-se, Literacia como conceito, pode ser a um só tempo coisa Complexa e Dinâmica, continuando a ser interpretada e definida numa multiplicidade de formas.
As noções alimentadas pelas pessoas quanto ao que significa ser literato ou iliterato, são influenciadas tanto pela pesquisa académica, como pelas agendas institucionais, o contexto nacional, valores culturais e experiências pessoais. Para a comunidade académica, as teorias da Literacia evoluíram desde as focadas somente em mudanças nos indivíduos, até visões de maior complexidade, acompanhando os contextos sociais mais amplos (o «ambiente literato» e a «sociedade iliterata»), que encorajam e tornam possível ocorrerem atividades e práticas de Literacia.
Como resultado destes e doutros desenvolvimentos, a compreensão nas políticas comunitárias internacionais, também se expandiu: desde o ver a Literacia como um processo simples de aquisição de capacidades básicas cognitivas (do saber, aptidões ou «skills»), capacidades para serem usadas sob formas que contribuam para o desenvolvimento socioeconómico, para o desenvolvimento da capacidade para o conhecimento das sociedades e da reflexão crítica como base da mudança pessoal e social.
Somente a partir do século XIX o conceito de Literacia passou a referir as capacidades de ler e escrever, mantendo o seu principal significado de ser «entendida ou conhecedora», educada num ou mais campos em especial.
A Literacia a ser entendida como o cenário de aptidões alcançáveis – particularmente as cognitivas, de leitura e escrita –, independentes do contexto em que são adquiridas e do background de quem as adquire.
Os académicos discordam sob a melhor forma de adquirir literacia, uns advogando a aproximação fonética e outros a «leitura para o significado». A competência para a Numeração é muitas vezes vista como uma inerente à Literacia.

2. Alfabetos na vida

O sentido em que RI interpreta a Literacia é exatamente o que inclui estas capacidades ou competências mas também todas as que permitem descodificar o mundo para o reconstruir. E daí o abarcar uma série vasta de aptidões (ou alfabetos), desde a cultura em todas as asserções, à cidadania, à informação (média), para o comunicar público, etc., das primeiras letras, qualquer que seja a via, aos alfabetos do sexo, da saúde, condução automóvel, informática e digital, do amor, da escrita/fala jornalística e de tantos outros.
Todavia, como a generalidade dos tradutores para português, no One Rotary Center em Chicago, é do Brasil, eles utilizam mais a forma de ver a Literacia como Alfabetização, assim arrastando outros e aumentando a confusão. Mesmo se na verdade do dia-a-dia ambos os conceitos sejam usados indiferenciadamente.
No entanto o que nos interessa, basicamente, é ensinar pessoas que possam ter um papel social importante nas suas comunidades e de tal forma a comunicação e a cidadania, a literacia afinal, as possa ajudar a serem felizes. Ou seja, desde logo, a generalização da ideia de o acesso à cultura dever ser parte constitutiva da cidadania contemporânea. Essa ideia segue naturalmente de par com a prevalência de estilos de vida e das expectativas das classes médias urbanas, mais escolarizadas, que veem o investimento público e privado na cultura, no lazer e na estetização dos ambientes em que circulam, como ingredientes importantes da sua integração sócio espacial.
Nas últimas décadas no mundo ocidental e na Europa em
particular, a cultura foi ganhando maior relevo nas políticas urbanas e nos modos de conceber e planear a vida nas cidades.
Deste modo, a conceptualização das cidades e a da cidadania (uma e outra tão mais consolidadas quanto maior o grau de Literacia), são, respetivamente, as carpetes douradas e as lantejoulas do fenómeno cultural. A montante e a jusante têm a máxima relevância todos os alfabetos da vida, a literacia no seu auge
Mas como tem sido doloroso este caminho.

3. O défice literato

Utilizando Indicadores com inclusão de critérios de literacia, desde a alfabetização básica (escrita, leitura e contas) até aos mais elaborados, refletindo a capacidade de construção do mundo social ou a sua desconstrução (descodificação), podemos fazer uma escala comparativa país a país.
Vejamos assim alguns dados (2) referentes aos últimos anos para a Iliteracia (o défice literato). Saliento que, para EUA e Reino Unido, entre outros países de primeira linha, tampouco existem dados publicados pela UNESCO para Iliteracia.

Quadro 1 Iliteracia Nalguns Países

País
Ano
% de Iliteracia
Portugal
2011
42,8
Angola
2011
63,4
Espanha
2010
37,7
Itália
2011
46,8
Cabo Verde
2011
23,5
Grécia
2011
53,6

Em todo o caso a discrepância no género ou na idade abrangida pela não literacia é atros: maior nos jovens, 65% em Portugal até aos 15 anos (3) e nos idosos que na idade madura, maior nas mulheres que nos homens.
De acordo com a UNESCO, as taxas de literacia para adultos e jovens continuam a crescer. Tomamos em conta os países onde é possível, sob qualquer forma apropriada, com indicadores normativamente construídos, ter dados credíveis sobre este assunto. As mulheres jovens dos 15 aos 24 anos têm os maiores ganhos em Literacia, mas mesmo assim abaixo das taxas para os homens da mesma idade.
Em 2012, 87% das mulheres jovens tinha Capacidades básicas de Literacia contra 92% dos homens jovens.

Quadro 2 Iliteracia, Europa Central e de Leste (em percentagem)

                           Anos
Ensino
2003
2012
Pré primário (total)
  57
  74
Primário (total)
105
100
Secundário, todos os programas, total
  93
  93
Acima do secundário
  92
  89
Crianças que não frequentam a Escola primária na idade certa
  0,7
  0,8

Apesar destes ganhos importantes, 785 milhões de adultos não sabiam ler ou escrever e dois terços destes, 496 milhões, eram mulheres.

 4. Dolly Parton e a Biblioteca da Imaginação

Eis dois projetos de alfabetização/literacia de grande impacto em regiões importantes do mundo. Constituem a minimização de qualquer das duas tendências principais, opostas até, na concetualização de Literacia, atrás presentes.
Desde logo o da Biblioteca da Imaginação, da atriz e cantora norte americana Dolly Parton, com quem tive o gosto de contactar em Montreal 2010, a Convenção de RI. A Dolly Parton Foundation tem uma parceria estratégica com RI. 
Em 1995 Dolly lançou a sua Biblioteca da Imaginação no intuito de beneficiar as crianças do seu condado em Tennessee, EUA. A visão de Dolly era alimentar o amor pela leitura entre as crianças pré escolares e as suas famílias, providenciando-lhes o presente dum livro selecionado em cada mês, endossado a suas casas. Para além de querer deixar as crianças excitadas sobre os livros e sentir a magia que os livros podem criar, ela queria assegurar que todas elas tivessem livros independentemente do rendimento familiar.
 A Fundação tornou-se tão popular que o programa passou a atender todas as comunidades interessadas. E caminhou de apenas umas poucas dezenas de livros para mais de 60 milhões, enviados por correio para as crianças dos EUA, Canadá e Reino Unido. Presentemente, cobre mais de 1600 comunidades e mais de 750.000 crianças, uma a uma, todos os meses.
No lado oposto o efeito dos Programas CLE, Concentration Language Encounter Method, no desenvolvimento das capacidades do conhecimento das palavras, entre os alunos do Ensino Básico.
Trata-se de ensinar um pequeno número de crianças, ou, nalgumas estratégias, de mulheres. Utiliza a repetição das palavras (hoje pode fazer-se igual com a música nos melhores conservatórios), com maior relevo nas necessidades locais (usando períodos de tempo variáveis mas curtos). Rapidamente se identifica a grafia dos termos mais comuns e do meio de as ligar. Este grupo, avaliado, passa rapidamente a ensinar outros, sob controlo dos responsáveis pelo ensino/aprendizagem. Seguem-se novas sequelas mas num grau superior.
Foi assim que, nos tempos que correm, países como a Turquia, muitos africanos, comunidades étnicas nos EUA ou no Japão, o Brasil e outros países sul-americanos, ganharam rapidamente um nível de educação básica (continuada, obviamente), muito razoável.
E, em cada um dos projetos, locais ou regionais, a primazia na aprendizagem é dada à mulher. Mais próxima dos filhos e da comunidade, ela tem maiores possibilidades de replicar os programas, logrando-se uma cobertura mais célere da população alvo.
Em qualquer destes programas exemplo, como nos de toda a espécie, RI e a UNESCO estão dando apoios muito substantivos, no primeiro caso através da Rotary Foundation, em ambas as situações em colaboração com as comunidades.
Um mundo melhor passa seguramente, por ganhos maiores em Literacia. Uma criança letrada não se deixará escravizar.

Notas:
(1) Presidente de RI em 2002-03, Vice-Presidente do Conselho de Segurança das Nações Unidas; Ex primeiro ministro (11 anos) e ministro dos Negócios Estrangeiros (3 anos) da Tailândia; Conselheiro do Rei
(2) Todos os dados aqui citados foram extraídos das publicações 2014 do Instituto de Estatística da UNESCO e tratados por mim
(3) Conferência Internacional de Ministros e Altos Responsáveis pela Educação Física e Desporto, Baku (Azerbaijão), Março 2013

Henrique Pinto
Ex Coordenador de Zona de Países africanos  francófonos, de língua portuguesa e Nigéria e depois da Zona que vai da Palestina e segue, bordejando o Mar Negro, até à Turquia 
Março 2015




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