terça-feira, 16 de setembro de 2014

DESGRAÇAS E VENTURAS DE 35 ANOS DA SAÚDE

Eu sempre exerci funções públicas e privadas. Hoje é mesmo este último setor o único berço da minha prática. Posso assim dizer aquilo que tenho por útil sem qualquer pedra no sapato. Ao evocar os 35 anos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) vêm-me à memória episódios burlescos do seu lançamento. Eu participei ativamente nessa construção. Mais do que ideológicos os entraves 
começaram por estar no juntar dos diferentes serviços. A um lado reinavam os poderosos serviços médico-sociais (SMS, herdeiros da antiga Caixa de Previdência), no outro sobrevivia a Direção Geral de Saúde (a ostentar a bandeira dos cuidados de saúde primários, recém hasteada em Alma Ata). De dentro dos corredores do governo chegavam à periferia ordens contrárias, impeditivas, umas, proactivas outras.
O liberalismo médico, corporizado na figura dum colega ilustre, bastonário – dou-me muito bem com ele, não me interpretem precipitados -, defendia então outros modelos de inspiração para o sistema, eminentemente centrados no lucro. O ramo farmacêutico, liderado por um interveniente meu conterrâneo, labutador e ousado, mesmo se de espírito social controverso, que praticamente tomou o Estado nas mãos (medicamentos cada vez mais caros, travão aos genéricos, dívidas do ministério às farmácias na ordem dos nove meses de atraso, rígida regulamentação para a abertura de farmácias, formação dum Banco à custa destes retardamentos), arruinava qualquer orçamento.

À medida das nossas possibilidades (e não das seletivas Holanda ou Alemanha, onde os idosos não têm qualquer apoio, regimes musa para a oposição ao SNS), ergueu-se um sistema universal e quase gratuito, a que o tempo conferiu caraterísticas singulares de gigantesco avanço social histórico.
Praticamente todos os nossos governos (não me citem exceções!) tentaram destruí-lo. Tal desiderato só não terá vingado por inteiro porque a generalidade das opções alternativas era bastante mais cara. As taxas moderadoras introduzidas, retiradas e novamente ativadas, tinham, de início, como o próprio nome sugere, uma intenção boa, a de frear o imenso consumismo de consultas advindo das «consultas a metro» dos SMS. Nos dias que correm, em que os consultórios estão às moscas e as consultas hospitalares em queda, essas taxas são um imposto direto.
Poderia ter havido um melhor entrosamento dos setores público e privado e simultaneamente uma separação das águas ao nível da prática profissional (o pleno emprego da classe médica em Portugal, algo bom, era em paralelo um obstáculo, os profissionais não eram suficientes). Esse entrecruzar acabou por fazer-se da maneira mais ínvia e sobretudo no âmbito financeiro. Hoje, mais de 70% do rendimento com exames complementares, subvencionado pelo Estado, vai para a área não pública. Alguns hospitais públicos são administrados pelo setor financeiro/segurador. E o receituário oficial generalizou-se. Mas continua a não haver médicos. E, quando temos à volta de 1,5 enfermeiros para um médico (longe dos 7,5/1 dos países do norte, o desemprego campeia nesta área.
Henrique Pinto

Setembro 2014

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