Ao dar ao mundo o seu livro Ao Encontro de Espinosa, o mais mediático dos médicos portugueses, António Damásio – pioneiro e, quiçá, um futuro Prémio Nobel – avança com conjecturas que poderão modificar princípios há muito estabelecidos. A ideia de os sentimentos poderem ter uma origem eminentemente física, susceptível de modificar radicalmente até áreas filosóficas e comportamentais como a Ética, maravilha-nos pelo arrojo e pelo alcance. Um outro português de sangue, Greg Mello, americano de nascimento, foi agora Nobel da medicina numa área de investigação conexa.
Aliás, Portugal sempre teve grandes médicos conhecidos mundo fora. Temos serviços de saúde acessíveis a todos e alguns deles de superior qualidade. Mas há inconsistências organizativas resistentes a qualquer cosmética cuja alteração de substância se torna cada vez mais difícil.
A dissociação da arte de curar em dois ramos, a medicina e a cirurgia, vem do final do século XIII. O médico é então um letrado e um sábio que busca a sua ciência nos livros mais do que na observação do doente, inscrevendo-se o seu foro nas «artes liberais». O cirurgião é um prático que por indicação do médico faz sangrias, abre os abcessos, trata das feridas e das fracturas. Coloca-se socialmente ao lado dos barbeiros, situação que suporta mal. Quando se recusa a «barbeirizar-se» e ganha títulos universitários depara com a oposição não só dos cirurgiões barbeiros, ditos de bata curta, mas também com a dos médicos, inquietos com esta promoção a seus olhos escandalosa.
A dissociação da arte de curar em dois ramos, a medicina e a cirurgia, vem do final do século XIII. O médico é então um letrado e um sábio que busca a sua ciência nos livros mais do que na observação do doente, inscrevendo-se o seu foro nas «artes liberais». O cirurgião é um prático que por indicação do médico faz sangrias, abre os abcessos, trata das feridas e das fracturas. Coloca-se socialmente ao lado dos barbeiros, situação que suporta mal. Quando se recusa a «barbeirizar-se» e ganha títulos universitários depara com a oposição não só dos cirurgiões barbeiros, ditos de bata curta, mas também com a dos médicos, inquietos com esta promoção a seus olhos escandalosa.
Como em muitas outras profissões a ironia desta história não perdeu miolo com o tempo. Um país desenvolvido como Portugal continua a ter, apesar de tudo, uma medicina hospitalocêntrica exuberante, perceptível até no discurso de ministros e deputados, que é um estigma dos países subdesenvolvidos. A criação das Unidades de Saúde, por Luís Filipe Pereira e Correia de Campos, chegou muito tarde.
Há poucos anos fui co-autor de legislação regulamentadora da Lei de Bases da Saúde. Cedo me apercebi que os avanços efémeros em matéria de saúde pública estavam irremediavelmente condenados. Quando hoje vejo que, nomeadamente a nível regional, são as mesmas pessoas de sempre que dirimem os problemas da saúde pública em Portugal – quando os governos, quaisquer que sejam, têm a tendência a mudar até os porteiros, o que eu acho lamentável – convenço-me que este ramo da saúde nada diz aos poderes e poucos serão os interessados em alterar este estado de coisas.
Há poucos anos fui co-autor de legislação regulamentadora da Lei de Bases da Saúde. Cedo me apercebi que os avanços efémeros em matéria de saúde pública estavam irremediavelmente condenados. Quando hoje vejo que, nomeadamente a nível regional, são as mesmas pessoas de sempre que dirimem os problemas da saúde pública em Portugal – quando os governos, quaisquer que sejam, têm a tendência a mudar até os porteiros, o que eu acho lamentável – convenço-me que este ramo da saúde nada diz aos poderes e poucos serão os interessados em alterar este estado de coisas.
Um exemplo claríssimo reside no facto de Portugal não fazer vigilância sistemática sobre qualquer produto alimentar. É grave e os portugueses desconhecem-no! Quis-se dotar o país com uma agência da qualidade alimentar, douta recomendação da União Europeia. O que seria óptimo se esta criação viesse a funcionar com efectividade. Mas a ASAE estava já a a ter bons resultados e por via disso a incomodar muita gente, se bem que a ganhar contornos militaristas. Cortou-se-lhe o gás! Acabou-se com o exíguo mecanismo de controlo existente. Tanto pior quanto às autoridades de saúde não foi possível atribuir capacidade dissuasora e a inspecção económica está em definitivo condenada a avaliar a contrafacção de camisolas pelos ciganos. Quando antes melhor ou pior ambas as instituições se completavam preenchendo o vazio que ora voltou a imperar.
Bem gostaríamos se uma ou duas andorinhas fizessem a primavera. Portugal é dos países mais atentos e seguramente melhor preparados no respeitante à gripe H1N1. A tal não é alheia a circunstância de ter uma excelente pediatra e médica de saúde pública com capacidade política, Ana Jorge, independentemente de ser ministra, a dirimir a questão. Nem a tal é estranho o termos um dos melhores directores gerais da saúde de sempre, Francisco George.
Dentro de poucos anos também não haverá médicos de família. O mesmo mecanismo corporativista da emancipação dos cirurgiões, mas agora com a cumplicidade dos ministérios da saúde (e educação, depois ensino superior), advinda duma impotência crescente, prolongou o numerus clausus nas universidades para além do limiar de perigo. Valer-nos-ia o facto de haver milhares de médicos espanhóis e italianos desempregados (a carência médica voltou a estes países, precisam dos seus profissionais e pagam melhor), e depois os dos novos países comunitários, que os portugueses aceitarão com uma dose maior ou menor de chauvinismo.
Mas é ainda a mesma perspectiva apressada que leva a que a situação evidente requeira, por regra, o iniciar o diagnóstico pela tecnologia de ponta – como se alguém curasse imagens digitais em vez de pessoas –, e quase se abandone em definitivo o apalpar dum corpo doente e quantas vezes a solução óbvia ou a visão do irremediável que tal palpação mostra.
Ao lidarmos com a emigração portuguesa no mundo, quando nos dizem «eu voltava sim, mas o meu doutor! Como é que passo sem o meu doutor?» vem-nos o arrepio da espinha, um desencanto frio.
Henrique Pinto
Bem gostaríamos se uma ou duas andorinhas fizessem a primavera. Portugal é dos países mais atentos e seguramente melhor preparados no respeitante à gripe H1N1. A tal não é alheia a circunstância de ter uma excelente pediatra e médica de saúde pública com capacidade política, Ana Jorge, independentemente de ser ministra, a dirimir a questão. Nem a tal é estranho o termos um dos melhores directores gerais da saúde de sempre, Francisco George.
Dentro de poucos anos também não haverá médicos de família. O mesmo mecanismo corporativista da emancipação dos cirurgiões, mas agora com a cumplicidade dos ministérios da saúde (e educação, depois ensino superior), advinda duma impotência crescente, prolongou o numerus clausus nas universidades para além do limiar de perigo. Valer-nos-ia o facto de haver milhares de médicos espanhóis e italianos desempregados (a carência médica voltou a estes países, precisam dos seus profissionais e pagam melhor), e depois os dos novos países comunitários, que os portugueses aceitarão com uma dose maior ou menor de chauvinismo.
Mas é ainda a mesma perspectiva apressada que leva a que a situação evidente requeira, por regra, o iniciar o diagnóstico pela tecnologia de ponta – como se alguém curasse imagens digitais em vez de pessoas –, e quase se abandone em definitivo o apalpar dum corpo doente e quantas vezes a solução óbvia ou a visão do irremediável que tal palpação mostra.
Ao lidarmos com a emigração portuguesa no mundo, quando nos dizem «eu voltava sim, mas o meu doutor! Como é que passo sem o meu doutor?» vem-nos o arrepio da espinha, um desencanto frio.
Henrique Pinto
Setembro 09
Adaptado de texto homónimo in Diário de Leiria 2009
FOTO: Francisco George, um dos melhores directores gerais da saúde de sempre em Portugal