segunda-feira, 7 de setembro de 2009

CAÍA O TRIGO NOS ESPINHOS E NASCIA


O céu desaba em cada dia num aguaceiro inclemente. De repente a vida retoma o seu ciclo. As gentes perderam o ritmo de cronos. Marcam encontros para depois da chuva. É assim em Belém do Pará. Onde pontificam os Círios de Nossa Senhora da Nazaré. Poderia eu imaginar dois milhões de fiéis marcharem sobre a Basílica da padroeira! Uma pintura mural que encima a fachada caricatura a chegada dos ricos da borracha. Entre índios nus, soldados e padres, o autor fez sobressair dois homens de cartola e casaca.
Navegando em frágeis canoas pelos veios do Amazonas aqui chegou o Padre António Vieira vindo do Maranhão, incumbido por D. João IV da organização de missões em defesa dos índios. Vieira fizera-o antes a favor dos judeus, pregando ser «certo que heresia é pior que o judaísmo; antes o judaísmo não é contagioso, e a heresia sim e muito, como se experimenta em todas as nações da Europa, onde tantos se fazem hereges e nenhum judeu». E ali penou a oposição dos esclavagistas.
Quatrocentos anos depois do nascer de tão notável prosador, o nosso mais conhecido orador religioso e o melhor do seu tempo, acorda-se para a tristeza de pouco se conhecer hoje um dos mais requintados escritores portugueses. A prosa é vigorosa e lógica, a construção frásica ultrapassa o mero virtuosismo barroco. A riqueza e propriedade verbais, os paradoxos e os efeitos persuasivos sobre o leitor, a sedução dos raciocínios, o tom combativo e as subtilezas irónicas, fazem a sua arte admirável.
Há homens que vivem à frente dos tempos. Numa época em que por via das mudanças advindas duma primeira globalização, povos e culturas se confrontavam, o Padre António Vieira lutou por uma cidadania global.
Sempre se quis um homem de fé. Porém, este jesuíta de ascendência nobre, de inimaginável talento oratório e de convicções humanistas, teólogo, evangelizador tanto quanto político, patriota se necessário a inculpar Deus, a quem acusa no sermão contra os holandeses de «ter abandonado os seus fiéis que pela fé tantos sacrifícios fizeram», é um homem capaz de dizer tal e em tempo breve o seu contrário, um diplomata diletante. No caminho pregando o amor gerou tais hostilidades como se não conhece mais alguém.
Ao desembarcar em Peniche – vem saudar o obreiro da restauração da linhagem monárquica –, chega a sofrer a ira dos concidadãos porque mãe e irmãos, que residiam no continente, tinham aderido à soberania de Castela.
De amigo dilecto e protegido de monarcas, que apoia e defende em chancelarias e sermões – o de Santo António aos Peixes, «vós sois o sal da terra» porque Deus quer dos pregadores que «façam na terra o que faz o sal», foi pregado quando estavam reunidas as Cortes em Lisboa, pretendendo de nobreza, clero e povo o pagamento de impostos para acudir ao perigo geral –, sofre depois vezes várias a torpeza de ostracismos régios.
É na dolorosa apatia de D. João IV que aporta a Cabo Verde – conta-mo o antigo ministro e embaixador do arquipélago em Lisboa, o intelectual Onésimo da Silveira – e a população não o deixava voltar a partir, tal o impacto dos seus sermões.
A opinião a respeito dos cristãos novos vale-lhe anos depois a ira do Santo Ofício, que o condena e arresta. Não se livraria da fogueira se a Companhia de Jesus (que lhe não perdoava igualmente o fervor político), o tivesse abandonado. E se o papa Alexandre VII não lhe exigisse a retratação.
Como é actual no século XXI a vida do Padre António Vieira!

Hpinto

Escrito nas celebrações dos 400 anos do nascimento do Padre António Vieira
Adaptação, Setembro 09

FOTO: Padre António Vieira, por Arnold van Westerhout (1651-1725)

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