A armada de Yang Tsé bordejou a costa ameríndia. Décadas corridas as velas lusas enfunadas largaram de Belém seguindo rotas fenícias. Gengis Khan tinha ganho a Ásia. A dimensão das pestes fazia crer no impensável, como hoje a malária. Johannes Gutemberg agiliza a palavra impressa numa dimensão epistemológica. Fidelidades e costumes moldam-se na voz profética. O telégrafo cruza mares. Alexander Bell faz da palavra o começo dum novo mundo, antes de Aldous Huxley o figurar qual utopia.
Porém, nada pôde evitar os holocaustos de Novosibirsk e de Guernica, Auchevitz, Dachau ou Phnom Penh. Milhões de homens e mulheres pereceram em nome da perfeição.
Cultores de boa vontade juntam-se em Londres em pleno
black out, nas raias do impossível para viajar, e criam a
UNESCO, o renascer pela cultura feita universalidade. Logo depois da guerra funda-se em São Francisco a
Sociedade das Nações, o início da inevitável cooperação compulsiva.
Os caminhos encurtaram-se e a riqueza, bem ou mal acumulada, misturou todos os continentes em posições internas e externas assimétricas.
No rescaldo da
Conferência das Nações Unidas sobre Financiamento para o Desenvolvimento, em 2002, emergem metas específicas, incluindo a da redução até 2015 dessa pobreza extrema que atinge mais de um bilião de pessoas.
O mundo confronta-se globalmente com
novas questões sociais. Uma onda jovem, inconformada e generosa, quarenta anos depois de Cohen-Bendit, contesta a nova ordem económica
como se o expansionismo fosse domável, a imagem em tempo útil a poder estar no bolso de cada um. Dois terços da humanidade assistem aos funerais da Princesa de Gales e de Madre Teresa de Calcutá.
Há que ter em conta as novas configurações do social por via do processo de globalização. E bem assim as transversalidades que ordenam o espaço social, desde as redefinições das classes sociais, as relações do género, raciais ou inter-grupos culturais e o dispositivo poder/saber. Ou ainda as relações de sociabilidade, que passam por uma nova mutação mediante
processos de integração comunitária e de fragmentação social – a violência social e política, a selecção e exclusão social e a
massificação e individualização.
Entre as práticas de
violência social e política elencam-se o abandono da agricultura, o declínio das produções tradicionais, o colapso dos programas de modernização, a desconfiança perante as políticas do Estado, a generalização do pessimismo, maior diversidade do modelo familiar, diferente sociabilidade familiar, da afectividade e solidariedade para a violência doméstica, além de funções da sociabilidade partilhadas pela escola e pelos meios de comunicação.
Nesta
nova morfologia dos processos sociais avultam a pluralidade das normas sociais e a negação das formas de exercício da dominação.
As mudanças no mundo rural vão da fome às inovações tecnológicas e a novas formas de organização produtiva.
Há um processo de
integração em oposição à fragmentação: desagregação
dos princípios orientadores da solidariedade, a crise da concepção dos direitos sociais a originar os excluídos e a massificação a caminhar em paralelo com o individualismo e a solidão.
Prevalece mesmo assim uma
maior importância das relações do Homem com a Natureza: a ecologia, tecnologias intermédias e desenvolvimento sustentado.
Também os processos culturais assumem novas formas no mundo globalizado: pela sociedade da informação; na multiplicidade das formas de violência, na dilaceração da cidadania e no internacionalismo fundado em problemas sociais globais (violência, exclusão ou discriminação por género, vários racismos, problemas do meio ambiente, questões da fome).
Colocam-se questões nunca antes tão claras.
Como compatibilizar o maior acesso à educação, à universidade e à ciência com o mérito científico e a qualidade académica? Como enfrentar as noções ou realidades multiculturais na sociedade em processo de globalização?
A história das
250 gerações humanas desde os sumérios tem algumas semelhanças e inumeráveis diferenças. Nunca tantos jovens foram tão conhecedores,
nunca como hoje existiu tanta gente solidária, nunca a arte teve papel tão motivador, nunca a dissuasão operacional teve tanto engenho! Fala-se de Paz nos areópagos de representação diplomática mais ampla.
Mas cada gesto para educar bem uma criança na rua ao lado ou num bairro viscoso de N’Djamena é uma dádiva para a paz. Ao separarem-se os lixos caseiros está a fazer-se o que a cada um compete para conseguir os níveis de Quioto, só há pouco assumidos pela administração dos EUA.
Todas as pessoas que possamos esclarecer sobre Bagdad ou Cabul, a Ossétia do Sul ou a Chechénia, Jebel Moon ou Ramallah - cenários funéreos de grotescas manifestações na disputa de recursos ou colonialismos mal resolvidos -,
são um troféu para a sociedade global, a do nosso tempo.
Ocorre-me por isso uma pequena história a que já antes me referi. Estava em
Salzburgo num Instituto International. Tinha aceitado convite para um jantar de hospitalidade. Na station van que nos transportou desde o hotel soube que me coubera um clube de gente jovem da cidade vizinha, Heillein, centro da antiga exploração de sal sob as montanhas.
Desde que comecei a fazer clínica que as pessoas de mais idade estabelecem comigo rápida empatia. E assim aconteceu com um casal octogenário, duma doçura e simpatia extremas, com quem entabulei conversa. Dei o braço à Michelle, e ajudei-a a andar, tal o seu passo trôpego. Acabámos por nos sentar à mesma mesa, apenas os três. O fascínio da sua história pessoal foi-me envolvendo. Judeus austríacos, tiveram tempo de fugir pela Bulgária ainda em 1939, antes do anchlüss.
Foram fundadores orgulhosos do Estado de Israel ao lado de Ben Gurion. Convivem num clube de Telavive onde judeus e árabes fazem invejável companheirismo. Na sua linguagem não perpassa o menor laivo de fanatismo, entendem o problema da paz entre Israel e a Palestina como uma questão a passar acima de tudo pelo tempo, a economia, a educação e o apoio da comunidade internacional mais esclarecida. Não lhes escapa uma suave censura ao belicismo corrente como alternativa para a paz que o não é.
Fiz constar aos anfitriões quem eram os meus amigos de mesa e, um a um, qual dança índia ou africana, foram-se dispondo em círculo. Com perguntas a borbulhar e
flashes a bulirem. Foi uma fervura até se fazer uma mesa única, rendida ao encanto dos
Buchvald. Dias depois vi os grandes da intelectualidade do mundo curvarem-se em respeito perante tais ícones vivos da tolerância.
Sinto-me hoje
como se as sacerdotisas do oráculo me dessem um bom augúrio. Sei quão incisiva pode ser a força do exemplo. Mesmo que ela seja insuficiente. Em cada emissão da Central FM está
a pujança dum beijo apaixonado num mundo que resiste ao pessimismo. Um pequeno gesto solidário numa rua de comerciantes pobres e nojentos de Islamabad ou a água levada pela poeira de Abéché, no Chade, a quem escapa ao genocídio no Darfur, pode em ambos os casos vir do eco ou ser impacto das decisões de Margaret Chan, Directora-Geral da OMS, ou de António Guterres, Alto-comissário para os Refugiados, num dos salões dos edifícios sede em Genebra. A Paz é uma inevitabilidade.
HpintoAgosto 09
(Adaptado do texto produzido pelo autor para Gala da Central FM)
FOTO: ao fundo os Buchenwald e Henrique Pinto
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