A cronologia da minha vida apressa-se a mudar de década. A ternura dos 40, cantada pelo Paco Bandeira, estender-se-á pelos 60?
Esquecer o presente para ter vivo o passado é sinal de senilidade, arteriosclerose ou coisa pior. Ter memória de elefante a partir do presente é um dos meus factores de auto-estima.
Minhas lembranças mais recuadas, nebulosas, são pontuadas por ciclones arrasadores, naufrágios, a «mulher da máquina», crimes horrendos da ladainha dos ceguinhos, a visita da Senhora de Fátima, o gato Neptuno, a brincadeira com os primos, o inaugurar da Igreja com o cardeal, o amor da querida avó Margarida, de minha mãe, do tio Armando, namoradeiro de quantas saias havia, léguas em redor e a continuar na Índia. Sabia ler e escrever aos cinco anos, uso óculos desde os seis, tínhamos de ir à capital a comprá-los. A descoberta de quanta falta me faziam nasceu no professor Amável, violenta estalada a marcar-me o rosto por dias, não conseguira reconhecer as letras na negra ardósia. Fui a segunda pessoa do concelho a licenciar-me, fiz a admissão ao liceu com quem foi o primeiro, o Cagica Rapaz, curso mais curto, meu ídolo na Académica.
Meu pai visitava-nos ao fim de semana – a vida exigente de marinheiro tolhia-o – até morarmos todos juntos em Cascais. A PIDE prendeu-o numa noite de breu, ia buscar-me mel para a constipação interminável. Prendeu-o, como a centenas de pessoas, apeadas em Lisboa, na noite da fuga de Álvaro Cunhal do Forte de Peniche. Só grande cunha e maior estima o safaram em dias. Os mesmos encómios anos depois furtaram-me à inopinada chamada a Mafra. Prossegui o curso, ansiava exercer medicina. Regressou da Guiné em caixões de chumbo quem não me pôde acompanhou naquele dia.
Em verdade, foi aquela bronquite de tristeza que ditou o meu futuro. A respirar o ar fresco de ser livre, meu pai levou-me ao Dr. Machado Macedo, amigo da família Espírito Santo. Estavam a abrir os túneis para o metro na avenida. Fascinou-me a palavra e o ar, bata branca e quadros das paredes, a certeza tranquila. Desde esse dia quis ser médico, contei-o anos volvidos ao colega ilustre, então já um amigo, melómano, um exemplo de carácter, que saudade...! Ao padre Vieira, magnânimo com todos, ajudei-o desde catraio no distribuir leite e queijo da Caritas, a catequista a perguntar-me «um dia não queres ser padre?», a heresia saiu-me inocente, sem nunca a ter ouvido em casa. A rapaziada dizia amiúde «governam-se com a mulher dos outros…», pois foi a minha deixa, óculos de tartaruga rachados, sorrisos brincalhões na vizinhança, caldinho do cura.
A professora da admissão ao liceu mostrou o texto redigido a toda a gente. «Quando eu for grande» tinha imaginação, pus-lhe palavras caras, meu pai comprava o Diário Popular e eu sorvia-o, gostava de desenhos e histórias de O Fotógrafo Não Estava Lá. Quando a minha filha Andreia redigiu «se eu fosse um peixe» aconteceu-nos o mesmo, babosos, ainda nos alegra hoje a lembrança.
E o tempo passou, o ciclo da vida torna a colocar-nos num patamar de que estivemos próximos, quase todos partiram, à dor sobrepõe-se saudade imensa, revemo-nos em quem nos retoma os passos, do sonhado há tanto ainda por fazer, as coisas novas nascem debaixo dos pés, fascinantes, à música do embalo nem a negra megera porá fim.
Henrique PintoSetembro 09
FOTO : Augusto Oliveira, Bernardo Espírito Santo e Cândido Pinto (meu pai), nos anos 50, todos já falecidos, no lindíssimo iate
Senhora do Carmo, ao largo de Cascais (foto cedida por António Oliveira)
Cascais menino é uma expressão do teu amigo Pedro Falcão, que trabalhou contigo no Jornal. Mas tens todo o direito a usá-la, sempre gostaste muito do Cascais da tua meninice e adolescência, antes de te tornares um homem do mundo. Foste um dos melhores alunos na ESSA há 50 anos, deixaste saudades até hoje. Gosto muito, a título de exemplo, do modo como ligas o Rei D. Carlos desde a ilha do Pico - a familiaridade dele com as pesquisas científicas do Príncipe Alberto I do Mónaco, com quem esteve em visita oficial por aí - até à sua vida como monarca e artista, vivendo metade do ano em Cascais. Afinal, tu escreves sobre tudo, continuas bom em História, és um grande apreciador de arte, a música está no teu sangue como a paixão pelo hóquei. Que bom podermos saber de ti! Que bom sermos amigos há tantos anos! Um abraço cá da casa.
ResponderEliminarJoão Carlos
Olá pá! Quando li o teu texto O menino do Senhor Doutor não apenas identifiquei o nosso colega salesiano como apreciei a forma como contaste a história, com discrição e carinho.
ResponderEliminarOlha, tenho apreciado muito o teu Blog pela diversidade e qualidade dos textos, mas também pela imensidão de trabalhos que tens publicado. Tenho a certeza que não consegues manter esse alto rítmo mas desejo que tal possa ser possível.
Mas hoje voltas a escrever sobre uma das tuas terras, Cascais, que é o meu ninho de sempre.
Termos uma boa parte da Colecção de Paula Rego permanentemente exposta é um privilégio.
Em 2010 Cascais poderá usufruir livremente da sua Cidadela como nunca foi possível. Se a utilização puder ter a abrangência da Casa das Histórias, entrada gratuita como poucas colecções a têm, a vila terá um valosíssimo upgrade cultural. Se pudessemos contar contigo e com o teu trabalho aqui, quão bom seria!
Um grande abraço.
J. Fava
Nesta passagem de "década", que bom poder relembrar os tempos e as pessoas que são a âncora que lhe permite pensar e agir para o futuro.
ResponderEliminarEspero, como todos os seus amigos, que haja ainda várias décadas para a sua entrega às instituições e às causas a que se encontra indelevelmente ligado.
Um grande abraço de parabéns
Maria Adelaide Pinho