quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A VOZ E AS PALAVRAS


A autoria dum título assim é apanágio de deuses e poetas. Ouço o muezzin, aquele chorado de ondas graves, sem quebras, apelo à oração, sobe o bairro árabe de Jerusalém ou o casario desfeito do Lahore, afloram-me as lágrimas, que tranquilidade. O cantochão de Alcobaça, os sons enrolados, monótonos do gregoriano, um canto de Amália, o gospel viril da Igreja de Martin Luther King, não carecem do ornamento ou complemento das palavras, tocam-nos no mais recôndito do cérebro, despertam desencontradas emoções. As palavras podem não ter voz, vivem quantas vezes na ponta dos dedos, nos lábios quedos, nas línguas sem ruído. Nem por isso perdem o sabor a beijos, a energia da manada de elefantes, o fel do desdém.
Ao silêncio reconhece-se a voz do garajau, o impeto do fuzil, o nadar num mar de palavras mortas, desprezo, insídia, mal ou bem-fazer, o voar num céu de palavras vivas, incentivo, coragem, patriota e voraz.
A palavra pode não ser ouvida, mesmo que dela se saiba, e ainda assim é capaz de triturar a inocência, bajular os poderosos, ser verdadeira ou mentirosa, sarcástica ou terna, submissa ou autoritária, induzir amor e ódio.
Mas a vós e as palavras estão juntas na Rádio Clube de Leiria como na prosa de Agustina ou Virgílio Ferreira, nos gestos solidários em Abéché e Belém, nos olhos largos, raiva e ternura, da Penélope Cruz em Abraços Desfeitos, nos agudos ferinos de Elisabete Matos em La Scala, no som cavo e doce do conservador Sinatra ou de Bono, homem do mundo. São belas e pouco mais no histriónico de Mick Jagger, visionárias e até horríveis no timbre aflautado, sotaque austríaco, do Marquez de Pombal.
A um tempo, silêncio e palavras, voz e gesto, voz e palavras, qual dialéctica são um caminho e o seu oposto ou confortam-se mutuamente, numa interdependência como só o aleatório dos genes pode cerzir e o cérebro humano interpretar. Juntas ou sós, de pouco valem ou a muito servem. Ao animal mais perfeito da natureza cabe ou não usá-las a talhar as suas imperfeições ou a proporcionar vida digna aos seus pares, tolerante.

Henrique Pinto

Gala do Radio Clube de Leiria 09

FOTO: Penélope Cruz

1 comentário:

  1. Há um erro ortográfico que passou ao lado em:
    A VOZ e as palavras...

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