quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O MENINO DO SENHOR DOUTOR


Quem sabe o que nos reserva o tempo? Assisti agora ao lançamento duma escola Salesiana em Cabo Verde, incitado por uma diplomata amiga de longa data. Se existem memórias indeléveis, para além da dos avós, pais, primeiros beijos e amores, «cinco violinos», Coluna e Eusébio, então os Salesianos, o padre Miguel e o hóquei patinado estão nessa linha.
Frequentei pouco tempo a escola do Estoril. Tempo suficiente para enrijecer a mente e ser cúmplice no amparo sólido, sem olhar a quem, em patamares diversos da vida.
Enquanto governador de Rotary International cruzei-me com Ximenes Belo, então Bispo de Dili. Comovi-me ao ouvir num inglês patusco da sua entrada nos Salesianos em 1960.
Evoquei-o ainda no seu desassombro quando visitei oficialmente Timor, a inalar então o horror que se seguiu à vitória incontornável da independência, para lá inaugurar o primeiro Centro de Emprego do país e uma aldeia típica reconstruída, frutos do apoio dos Rotários do mundo.
A um outro colega amigo nesses tempos do Estoril perdi-lhe o caminho. Dizia ser sobrinho de Salazar, vivia no forte de Santo António em S. João do Estoril, todos os padres e docentes o tratavam por «o menino do senhor doutor».
Sempre houve quem tudo julgasse saber e o ocorrido frente aos olhos lhos tornasse turvos. Até há pouco a história do Estado Novo registou ideias e petites histoires contraditórias. Invariavelmente «os lingotes de ouro acumulados», que Vasco Gonçalves estropiou num só ano, branquearam um dado sociológico irrefutável, o acentuar do entorpecimento intelectual dos portugueses em mais de quarenta anos. A ponto de perdurarem marcas visíveis no comportamento colectivo. E ouvia-se o eco da solidão pateta do ditador. Pessoas como José Pedro Castanheira e Joaquim Vieira têm desnudado esses artifícios. Salazar, que tinha de facto uma pequena prole a rodeá-lo, esteve no cerne do atavismo prevalente.
Esse outro amigo surgiu-me agora do nada! Uma instituição séria distinguiu-o como profissional de mérito. Se mais alguém sabia desse seu ascendente a ninguém importou. A vida passou por ele em quase 50 anos sem que o nome sobressaísse, tal a sua discrição. E a sociedade fica a dever-lhe um trabalho de mérito na comunicação social regional. Um papel tão socialmente útil que mereceu o imenso respeito dos pares, num perfil de inequívoco democrata.
Orgulhei-me ao recordar alguns dos condiscípulos e reviver esse espírito virado para a vida e para os outros, livre e fraterno, da escola que tem o santo João Bosco por patrono.

Henrique Pinto

In Diário de Leiria 09

FOTO: caricatura de António Oliveira Salazar, de Pedro Ribeiro Ferreira, com a devida vénia, in Blogue Traços Gerais

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