quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

OS FILHOS DE SONY MORITA


Calhou-me ser membro do júri do concurso para ascensão na carreira médica de um colega mais velho, de Paredes. Mostrou-me um livro seu onde se referia à condição de prisioneiro num campo de concentração em Carachi, Paquistão, em 1961, aquando da invasão da colónia portuguesa da Índia pelas tropas do pandita Nerhu. Aí fora responsável pela saúde e higiene de todo o campo. O seu comandante, cita-o na escrita, terá dito por elogio, «o chão da parada podia lamber-se».
Lembrei-me disso quando tomei contacto com a qualidade dos cuidados na produção animal na Nova Zelândia. Um destes dias atentei na ternura como os responsáveis neozelandeses deram sepultura às cinquenta baleias que acostaram no país, já exangues. Emocionei-me. O cuidado extremo do operador da grua, carinhoso, que acompanhou a deposição dos corpos, enormíssimos, no fundo da vala, e as flores tombando em triste veneração, tomo-os por exemplos de cidadania dum povo culto.
Além do mais todos os seres da natureza são credores do maior respeito.
Pela mesma altura deu também à costa no santuário de baleias dos Açores outro destes gigantes dos mares, jovem e moribundo.
Não posso deixar de pensar na forma como japoneses e russos, por exemplo, sem qualquer sanção moral do mundo, caçam diariamente dezenas destes animais, perseguindo-os por todas as águas com os efeitos vibratórios de elevadas frequências de todo um equipamento de detecção. Conheci de perto o whale watching, safari fotográfico para turistas no itinerário dos cetáceos, praticado em muitas rotas do seu habitat migratório. Não há hipótese de tréguas, quanto mais de perto melhor. Todos se julgam o capitão Ahab a bordo do Pequod, tresloucado, no intento de vingar-se de Moby Dick, o cachalote branco que lhe roubara a perna, glorificado por Herman Melville. A ânsia de colocar no álbum a melhor imagem de barbatana caudal em mergulho malabar alimenta este negócio. Não sei o que é mais vil, se os leões do circo Cardinali, tratados com doçura, ou estes atentados à natureza, quase endeusados.
Ninguém conhece ainda as causas destas derivas nos oceanos. Ninguém sabe as razões da mortandade. Há quem a tenha por suicídio colectivo. Sobram também os que comparam esta onda de corpos aos cemitérios de elefantes, o rumo dos paquidermes ao sentirem o bafo da negra megera. Porventura estes heróis dos mares também adoecem.
A sua raridade e grandeza podiam ser apenas alguns dos motivos capazes de suscitarem uma regulamentação internacional mais apertada, em respeito para com tamanha beleza. Os filhos de Sony Morita, desgostosos como quaisquer órfãos, não permitiram mesmo assim que se cumprisse o último desejo do pai, o de levar na urna Os Girassóis, de Van Gogh, que pagara com o seu dinheiro. Seguramente não terá sido pelo valor monetário, uma fortuna que lhes é supérflua. Imperou o sentido de Obra da Humanidade, pertença de todos os olhares curiosos, sedentos do belo.
Henrique Pinto
Janeiro 2010
FOTO: transporte de cachalote morto, dado à costa na Ilha do Pico (cedida por Andreia Pinto)

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