sábado, 25 de outubro de 2014

CHARLATANICE PERSISTENTE E LEGITIMADA

Portugal, a exemplo do século XIX, está hoje a ser tomado de assalto por tudo e todos quantos podem explorar exaustivamente as suas gentes. Durante anos os profissionais de saúde e as farmácias hostilizaram abertamente os medicamentos genéricos. Quando, finalmente, foi viabilizada a sua venda e produção, veio o desvario. Até as farmácias associadas passaram a fabricá-los, os laboratórios responsáveis pelo produto A vieram a comercializar também o seu genérico A, e tudo quanto foi produto de candonga, criado como se fosse para vender em África (é irónico mas verdadeiro), veio por aí dentro à socapa. A ponto de muitos dos defensores do produto genérico desconfiarem agora da eficácia terapêutica de boa parte deles.
De Leiria a Lisboa de carro, radio sintonizado, ouço dezenas de vezes publicidade insinuante a uma clínica inglesada de batismo insinuando o atrativo de uma «baleia» a já poder usar bikini ao fim duns tempos. Faz-me lembrar as promessas e o «sucesso» dum tal Tallon de há anos, a transformar por algum tempo em clones do Bradd Pitt ou do Ronaldo a maioria dos supergordos de meia idade, hoje a pulularem o nosso universo. Vi noutro dia uma doente jovem já sem menstruação, com hemorragias rectais e problemas de saúde mental, vinda dum célebre colega da linha do Estoril, de quem se diz ter um conluio com farmácias para lhe produzirem as misturinhas de diuréticos (a malta hoje também anda doida com os abjetos drenantes), ansiolíticos, hormonas (como nas vacarias), etc.
Há uma outra linha de dietas franchisadas, de empresa estrangeira, que já tem 32 clínicas em Portugal. As farmácias hodiernas têm estantes com mais «drenantes» que medicamentos autorizados pelo ministério da saúde, sobretudo depois de deixarem de ter os lucros milionários com a baixa do preço dos medicamentos e a mudança de campo do seu lobista mor, um guerreiro a enfrentar todos os governos.
Pois bem, vejam-se algumas frases dum testemunho que localizei na Internet, a propósito dum desses franchisados da dieta, invasores deste rincão à beira mar, a lembrarem aquele filme do Spielberg sobre os monstros de aço que emergem do solo em Ferry Street, a famosa artéria de Newark. 
Diz-nos a escriba: «a [refere-se a uma conhecida marca estrangeira] resolveu que eu estava uma lontra e vai de me oferecer um mimo: o programa de três meses da Dieta3passos»; «mediante as introduções semanais e graduais de alimentos na Dieta e estimular o metabolismo a esgotar as suas reservas de gordura»; «despedi-me da vidinha boa»; «como só havia fruta e batatas assadas e não posso comer nem uma coisa nem outra»; «devo ter um probleminha de intolerância à lactose»; «não é suposto fazer exercício para não ter que sentir fome a seguir»; «não posso comer fruta (por causa dos açucares)»; «não posso comer sopa»; «beber 1,5 litros de água com drenante»; «a ideia é perder 12 quilos em três meses».
Não é necessário ser vidente para lograr o resultado desta série de disparates contrários à medicina baseada em provas. Será o  retorno mais rápido ao estado de lontra que o tempo levado a perder a dúzia de quilitos citada.
Pior que tudo, num país sem emprego milhares de dietistas e nutricionistas jovens estão como agentes destas empresas, outros trabalham em ginásios, spas, farmácias, consultórios dentários, policlínicas, e por aí adiante, a reproduzirem estes clichés da fruta, da sopa, do queimar a gordura, dos drenantes e quejandos instrumentos, do «mau exercício», das intolerâncias à lactose (coisa rara) ou ao glúten (anda toda a gente a comer sem glúten como se a doença celíaca fosse coisa banal!) ou o adeus à «vidinha boa» para ingressar na dieta. Passam uma mensagem exatamente ao contrário do que aprenderam nas escolas superiores.
Tom Cruise, naquele Guerra dos Mundos, consegue derrotar os monstros à chegada a Boston, cidade do saber, quando (à semelhança do ocorrido na descoberta da América por portugueses e espanhóis), os índios nativos começaram a morrer por falta de anticorpos para as doenças dos descobridores (a começar pelo sarampo, agora já quase inofensivo graças à vacinação massiva). No nosso país, seguindo o padrão do crescimento mundial da obesidade vai acontecer, seguramente, o aparecimento de milhares de pessoas com sobrepeso, desesperadas por correrem todos os caminhos desta charlatanice invasora, a caírem no campo da depressão e do desespero, próprio de quem já não vê o sol por entre as nuvens.
A ocupação espanhola de Portugal ao tempo dos Filipes, no século XVI, foi absolutamente legítima (era herança direta, incontornável), fruto da incúria reinante e da péssima influência jesuíta. Mesmo assim as bravas gentes lusas organizadas rebelaram-se, inconformadas. Hoje será muito mais dolorosa qualquer rebeldia. A invasão é igualmente legítima (só que evitável), mas a mentira e a incompetência públicas e privadas são mais persistentes e legitimadas.
Outubro 2014
Henrique Pinto


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