domingo, 26 de dezembro de 2010

A CADA UM SUA VERDADE E A MUTABILIDADE DO SOCIAL


Lá bem no fundo aquela frase – pena era ter pertencido a Maurras, o poeta integrista francês da «política primeiro» - «se a verdade não estiver de acordo com os factos, tanto pior para os factos», era comummente apropriada no seu sentido último por muito bons sindicatos de interesses, mesmo se aparentemente inofensivos, tão próximos de quantos cirandam em seu redor.
Sentia os calores da vergonha por, dizendo de suas verdades, as pessoas fingirem acreditar, e, logo depois, numa pequena frase ou interjeição, despojarem-se desse peso. A verdade oficial – do partido, da religião, do negócio, das conivências – vive para além dos seus intérpretes, como realidade social independente.
Na «twinn towers», pequena loja de recordações ao fim dum largo corredor do aeroporto Kennedy – dali viam-se as torres gémeas, ainda sem a névoa do ódio – comprara aquela gravata listada, por cá só a viam a locutores da TV por certo mais viajados. O cartão «gold» não passou na máquina, a idosa senhora insistiu. A dada altura, ante o fracasso da ligação, tirou da gaveta a impressora manual de cartões e sancionou o pagamento. Como podia ela ter tanta fé em não estar a ser enganada, num lugar daqueles e se nunca o vira antes?
Esta percepção está para lá dos sentidos, reporta-se à subjectividade da realidade, cobre-a o tom afectivo particular do indivíduo. Se os factos não atentam contra as suas crenças, o seu mundo de interesses e afectos, maior a facilidade em ganharem estatuto de verdade.
Percebera já tarde esta subjectividade, descoberta da psiquiatria moderna. Estava seguro dos malabarismos do superior hierárquico com os resultados científicos, da sua perícia em manusear dados e contornar os interesses sociais mais ínvios, mesmo se atentados mesmo contra o bem comum, para sustentar o estatuto perante o ministro, o partido, e poder continuar a nutrir o ego.
De nada lhe valera contrapor o rigor das análises, falar do seu trabalho específico mundo além. O trafulha foi até várias vezes preiteado pelo seu amor à causa política, aos interesses da terra. Mesmo se se dizia sotovoce tratar-se dum patifório de mãos ao peito, carácter assaz clonado. Por ironia, como se os contrários sobrepostos se fundissem, muitos desses crentes na trafulhice do chefe pareciam-lhe também sinceros no admirar o empenho humanitário e profissional dele próprio, o sofredor da verdade. Durkheim dizia haver primazia das idéias socialmente elaboradas sobre as individuais, o social a ter poder coercivo sobre o sujeito da acção. Moscovici vai um pouco mais longe, tem em conta a perspectiva individual das consciências, unindo-a à experiência e visão de mundo construídas pelo todo social. Por isso, atribuamos a cada determinismo o seu peso específico, pior seria acreditar na imutabilidade do social.
Henrique Pinto
Dezembro 2006
FOTOS: As Twinn Towers no dia do ódio; Sandrine Maia, verdades que são futuro; Serge Moscovici, as representações sociais; o futuro no feminino


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