terça-feira, 21 de dezembro de 2010

INSANA VOLÚPIA, NATAL SEM TEMPO CERTO

Não fora intencional. Mas ao colarem-se-lhe os lábios naqueloutros, carnudos e húmidos sob o nariz levemente empinado, olhos rasgados de mulher linda quase adolescente, qual Angeline, o corpo inteiriçou-se-lhe, grato. Agora não era só pelo ser distraído, o elevador lento permitia entrecruzar as mãos, dedos presos, os lábios tocavam-se de mansinho, num canto, noutro, esvaíra-se o significado do estarem ali, pouco importava.
O mundo é hoje menos seguro, os homens multiplicaram-se ao ritmo das gaivotas neste cosmos ilhéu, Berlengas sem fim, todos o sabem, e o homo sapiens, único produto espiritual da criação, do big bang, sem ar ferino, é o maior responsável por tal intranquilidade, o único animal que persiste na sua autodestruição, fazendo-o mesmo ungido de divindade, quase apostando na finitude do paraíso habitado por inocentes belos tigres, peixes multicores, ágatas e xistos, anémonas e hortênsias.
E a cada vez que tenta pensar em dez pessoas boas e outras tantas más a lista das últimas completa-se mais célere, por vezes tão depressa a ponto de se surpreender. Bonomia, carinho, verdade, atenção discreta, respeito, amor, ética, fidelidade, elevação, música, lembrança, o bem do Outro, atributos sérios, podem vulnerabilizar-se perante insolência, oportunismo, mentira, jogadas de casino, de bastidores, maledicência, intriga, manobrismo, vaidade, traição, ruído, egoísmo. Eis mesmo quando, deus e diabo num só corpo, se nos mostram no mesmo rosto diáfano, na mesma cruzada, no convés e velame daquele barco aproado.
O velho companheiro de marear cutucáva-lhe o espírito, o problema, dizia, está em permitirmos que entrem para o ventre deste corpo social «as pessoas sem qualidades para tal». Nada tão verdadeiro quanto falso. Os instrumentos de vida em sociedade reagem como as plantas e os organismos unicelulares, nascem, crescem e morrem, só varia o tempo de vida e o grau de inevitável degenerescência a assolá-los num instante qualquer. Se míngua o conhecimento e o controlo interpares a imunidade fenece mais apressada, qual espadachim entre anticorpos e antigénios, o viçoso murcha e o trevo medra.
Ante a lembrança dos que intentaram passar-lhe a perna, usurpar-lhe méritos e deméritos, dos mãos no peito chacais de dentes tão cortantes, ágeis sanguessugas e carniceiros da verdade e de profissão, só dois intentos o perpassam, estar-lhes um passo na dianteira do fazer e no saber não ostentado, enquanto, entretidos, trepam a mente de distraídos e preguiçosos que antes abjuraram, e o viver sempre bem entre os que precisam ou é socialmente útil, fazendo sobretudo o que quer. Sentia-se com vocação no papel sem nunca haver representado. Um Deus qualquer, o de todos os homens, permitia-lhe ser feliz num Natal sem tempo certo e poder a todo o instante corresponder ao amor dos seus, aos princípios herdados de pais tão prendados na sua simplicidade e querer, e à volúpia insana, memória perene, daqueles lábios carnosos, febris.
Henrique Pinto
Dezembro 2010
FOTOS: olhares de Ana Guiomar e Alexandre Lencastre; trepadeiras dos Açores

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